
Capítulo 6
Um guia prático para o mal
“Para onde foram todos os bons homens? Predominantemente, cemitérios.”
– Imperador Terrível Malévolo III, o Conciso
Correr parecia a melhor estratégia de coragem nesta situação.
O primeiro morto-vivo que consegui derrubar tinha sido um pouco mole, é verdade, mas mais saíam da água a cada momento e lutar na lama ia ficar exaustivo. Não sabia bem o que aconteceria se eu morresse ali, mas as últimas palavras de Black eram provavelmente mais um aviso do que sarcasmo. Um dos lugubres tentou chegar perto o suficiente para alcançar meu braço, mas era ridiculamente lento – pequenos privilégios – então eu cortei a cabeça dele com um golpe de duas mãos. A carne e o osso se abriram como um figo morno e a criatura caiu de novo onde quer que estivesse, afundando na água. Dei um olhar para trás, fazendo careta quando vi que mesmo nesses poucos momentos os outros bastardos tinham ganho terreno. Deve ter umas cinquenta, pelo menos? E o pântano parecia determinado a continuar sangrando mortos-vivos toda vez que eu piscasse, então definitivamente não podia me dar ao luxo de ficar parado. Minha boca ainda tinha gosto de água suja, então cuspi de lado enquanto me puxava para cima de um toco, procurando uma saída para essa confusão – de alguma forma tinha uma intuição de que escalar uma árvore e fechar os olhos não ia adiantar.
A estrutura ao longe ainda estava no mesmo lugar de antes. Tinha o formato de uma torre, pensei, embora não conseguisse ver até onde ela ia. O que eu podia ver era que a colina onde se situava ficava fora do pântano e, no momento, sem meus amigos zumbis. Talvez fosse uma armadilha, refleti, mas ainda assim melhor do que ser despedaçado por uma horda de imbecis gemendo. Um estalo na minha visão quase me fez recuar: algo tentava pegar meu pé. A ponta da minha espada saiu na metade do caminho e eu surpreendido, piscando de leve, vi o morto-vivo recuar com um grito agudo. Eu… não deveria ter conseguido fazer aquilo. Sou rápido, mas conheço bem o meu ritmo – reaprendi a cada novo hematoma na Cova. Conheço bem aquele instante odiável em que sabia que o golpe vinha, mas também sabia que não daria tempo de bloquear. E esse foi um daqueles momentos. Mas, ao invés disso, meu corpo reagiu imediatamente, sem batimento cardíaco de um para o outro, entre a percepção da necessidade de me mover e o movimento em si.
“Nome,” eu sussurrei, meio admirado.
Nem era mais ascença de Escudeiro, nem era pra ser por um bom tempo se tivesse entendido direito o que Black tinha dito, e já podia fazer coisas assim? Não é à toa que dizem que heróis enfrentam fortalezas cheias de soldados sem pensar duas vezes. Nem é à toa que vilões enfrentam grupos inteiros de heróis. Silhuetas já surgiam à minha frente, espalhando o caminho até a colina numa tentativa de me cercar, então pulei de volta para o pântano e comecei a me mover. O zumbi que quase me pegou estava totalmente silencioso: saiu da água sem som algum e sem aviso, atacando. E o fato de ter tentado me atrasar, ao invés de me matar? Significava que eles estavam ficando mais espertos nisso. Quanto mais tempo eu permanecesse ali, mais difícil ficaria. Isso também quer dizer que minha alma tá sendo uma idiota about isso, resmunguei comigo mesmo.
Empurrei o lodo o mais rápido que pude. Mesmo aqui era só até o tornozelo, então fui um pouco mais rápido que os perseguidores – embora não o bastante para ficar confortável. Mais um saiu do lamaçal à minha direita, então me escondi atrás de uma árvore pra fazer um espaço. Acho que pareceria bastante ridículo, imaginei, se alguém estivesse por perto pra me ver. Mesmo forçando, mal era mais rápido que alguém caminhando na terra firme, e os zumbis lentos só eram ameaça por causa do número. Não era exatamente uma luta pra inspirar poemas épicos. Consegui evitar qualquer um deles por um tempo que parecia eterno, até perceber que tava entrando na deles: gastava mais energia desviando deles do que realmente entrando em uma briga, como as goteiras de suor que já escorriam pelo meu pescoço deixavam claro. Mandando pra fora uma das palavras malditas que tinha ouvido na Servidão, enrijezi os ombros e me joguei na confusão, direto no aglomerado de shamblers que bloqueava o caminho à minha frente.
Usei a ponta da espada curta para cravar na garganta do mais próximo e ela saiu ao puxar a lâmina, mas os outros dois já estavam em cima de mim. Uma delas, que parecia já ter sido uma mulher um dia, mordeu meu braço e eu soltei um grito de dor – a dei um soco na têmpora dela com a empunhadura da espada e, na luta para afastar a que tentava me morder de novo, usei a mão livre. A zombie recuou, embora vários dentes dela ainda estivessem empalhados na minha carne. Será que dá pra pegar infecção de uma visão de Nome? Deus, que eu espero que não. Cortar o braço alcançador do último morto-vivo foi trabalho de alguns golpes medidos enquanto me agachava por trás da mulher, que tentava me morder mais uma vez, e então o caminho ficou limpo o suficiente para eu passar. Uma árvore caída mais adiante me permitiu ganhar mais espaço ao subir nela, embora a madeira estivesse molhada e o chão escorregadio.
Olhei para a colina à frente e calculei que estava na metade do caminho, então forcei os dentes e continuei sem parar para respirar.
O ferimento de mordida na minha braço doía, e isso confirmou minha decisão de evitar mais brigas com esses caras. Não tô acostumada a lutar com vários inimigos de uma vez, e não podia me dar ao luxo de me machucar toda hora que encontrasse uma patrulha dessas. Fiquei só nas derrubadas de mortos-vivos solitários enquanto me movia entre as árvores, sempre de olho na colina: a última coisa que queria era me perder nesse maldito pântano. Tive um arranhão no rosto quando um deles saltou de trás de uma árvore, arranhando com as unhas, enquanto eu cravava a espada no peito dele. Era leve, mas tinha tido muita sorte de não ter sido mais alto: já tinha lutado com sangue nos olhos antes, e isso sempre é uma bagunça. Quanto mais perto chegava da colina, mais rarefeitas ficavam as aglomerações de mortos e, eventualmente, eles pararam de nascer por completo. Quando a água virou terra úmida com musgo, não havia mais sinais deles. Caí de joelhos, encostei numa árvore e aproveitei pra fechar os olhos por um instante.
Caramba, tava exausta.
Nos Poços, a situação era bem diferente. Eu só enfrentava uma luta por dia, e elas nunca duraram tanto. Os adversários eram mais perigosos, mas nunca me esmagaram pelo excesso de números. Se eu pisasse na bola uma única vez lá embaixo, no rio, era o fim.
“Porra,” sussurrei. “Céus, espero que o Gêmeo Bom não transforme isso numa luta.”
Me levantei e esperei mais alguns momentos pra recuperar o fôlego. Já dava pra ver bem a colina com o torre ali em cima. Pedra branca, embora não fosse uma pedra que eu reconhecesse, e ela subia mais do que conseguia enxergar através do topo das árvores. Espero que minha alma não seja burra o suficiente pra fazer com que eu tenha que subir escadas que percorrem toda essa altura, embora, considerando a coisa toda que tenho passado até agora, eu não apostaria nisso. O caminho de saída do limbo do pântano tava mais rápido agora, já que a terra tava quase toda firme: escolhi o desvio por alguns lagos, só pra garantir que não tinha nada espreitando ali, mas, no fundo, tava só feliz por não estar sendo perseguida pela hordinha ardente de mortos-vivos pra reclamar da chatice de sair do lamaçal.
A maior surpresa veio quando finalmente saí das árvores: a torre continuava a subir. Inteira até o céu, e voltava a se conectar a algum tipo de cidade espalhada que cobria a escuridão por milhas. Tudo de cabeça pra baixo, com as torres de pedra mais altas parecendo que iam derrubar a qualquer momento. Olhar pra aquilo despertava de novo a coceira sob meus pés que eu associava ao meu medo antigo de altura. Mesmo enquanto me aproximava, mal conseguia distinguir onde começavam as pedras que formavam a torre e onde começava a próxima: pareciam uma única peça de rocha pra quem não olhasse com atenção demais. Uma porteira enorme, cheia, ficava bem no meio, com dois cavaleiros armados de armadura parada ao lado, totalmente imóveis. As armaduras estavam vazias, percebi ao chegar perto, feitas de um material que parecia prata. Ergui uma sobrancelha. Prata? Era a coisa mais idiota que podia imaginar pra fazer armadura, além talvez do ouro – é metal macio, qualquer lâmina decente cortaria. Mas as alabardas que eles seguravam eram de aço, e isso era outra história. Com cautela, com a espada na mão, avancei um passo entre eles. Imediatamente, as alabardas desceram, bloqueando meu caminho.
“Pois é,” murmurei, “fim da linha fácil. Melhor não ter uma inundação infinita de vocês aí dentro, porque quero acreditar que minha alma é um pouco mais original do que isso.”
“Você não precisa lutar com eles,” uma voz me interrompeu. “Só precisa deixar aquela… coisa lá fora.”
Havia uma mulher alguns passos além da porta, e pela segunda vez pude ver uma versão mais velha de mim mesma. Sem cicatriz, desta vez, usando vestes brancas imaculadas ao invés de armadura. O cabelo cortado curto, algo que nunca me caiu bem, parecia dar espaço ao rosto mais maduro, com bochechas mais finas e o nariz menos pronunciado. Ela também olhava fixamente para minha espada como se ela tivesse sido usada na morte de sua família extensa.
“Pois é,” avisei de forma seca. “Não vou entregar ela. Ainda mais com seus amiguinhos ali com alabardas.”
A minha dublê mais velha fez uma expressão de fuxico, mas acenou de leve, recuando pra dar passagem pra mim entrar. O interior da torre estava vazio, exceto por uma cadeira simples no centro — madeira antiga, escura, bem polida. Porém, não parecia tão confortável: as paredes estavam cobertas por mosaicos coloridos. Retratavam cenas cotidianas da minha vida — lições na Orfanato, noites no Ninho, até brigas na Cova. As paredes da torre se estendiam até onde eu conseguia ver, finalizando numa vista deslumbrante da cidade que tinha vislumbrado antes de cima. A coceira voltou, mas eu a ignorei com facilidade, como já havia aprendido. Essa era uma das minhas maiores habilidades: controlar o medo. Passei a olhar mais de perto os mosaicos, tentando identificar alguma cena que estivesse mais acima e não reconhecesse, mas a iluminação interna não ajudava. Ainda assim, tinha um guia.
“Aquela ali,” perguntei, apontando para o objeto que despertava minha curiosidade. “O que ela mostra?”
A outra menina me olhou com desdém.
“Aquela em que você espiou o Duncan Brech pelas frestas enquanto ele trocava de roupa,” ela respondeu.
Ri. “Isso justifica uma cena inteira? Ele não é tão bonito assim.”
A Gêmea Boa não parecia compartilhar da minha diversão: ignorou e foi até a cadeira, sentando-se cuidadosamente e deixando que eu ficasse de pé, como uma súbita visitante. Suspirei. E lá estava eu, tola achando que ela não fosse tão chata quanto a outra.
“Então,” resmunguei, “fala logo. Antes que eu acerte a outra, ela se incomodou com o quão ‘mole’ eu sou. Qual é a sua confusão?”
“A confusão nós temos,” corrigiu ela calmamente. “Tudo que você vê aqui, tudo que você passou até agora — vem de você. Estamos apenas expressando suas dúvidas, nada mais.”
“Então, sou responsável pelos malditos zumbis?” murmurei. “Isso é um autoódio de um nível totalmente novo.”
A garota de roupas brancas sorriu de forma sem alegria. “Você acredita que nada valioso se consegue facilmente. Sua aventura no pântano é um reflexo disso.”
Interessante, mas não era isso que eu tinha vindo buscar. Se quisesse ser repreendida, tinha pegado uma cadeira no escritório da Matrona e contado que tinha lutado na Cova.
“Perspectiva fascinante,” disseram, de forma seca. “Muda tudo. Duvido que seja suficiente pra acabar com essa parte do sonho?”
Um lampejo de raiva cruzou os olhos dela, e quase fiquei satisfeito por não ter escutado mais do que condescendência dela.
“Vamos esperar que você leve o destino da sua alma um pouco mais a sério, Catherine Encontrada,” ela berrou, a voz ecoando na torre vazia.
“Levantar essa questão com seriedade só se eu achasse que o que aprendi aqui significava alguma coisa,” respondi, sabendo que mantive a calma mesmo diante da fúria dela. “Mas não significa. É só uma tarefa que tenho que cumprir antes de voltar à minha consciência e seguir minha vida.”
“Sim,” ela falou, tentando recuperar uma aparência serena. “Sua vida. Como vilã a serviço do Império Terrível de Praes.”
Franzi o rosto. “Isso sempre foi o plano,” lembrei ela. “Agora posso pular algumas etapas, tendo um Nome, ao invés de subir lentamente na hierarquia das Legiões.”
“Se você não entende como assumir um Papel muda tudo,” ela disse, “então é uma tola. Você está se vinculando ao Mal. Para defender suas leis, para lutar por sua causa.”
“Sem querer ser chata,” resmunguei, “mas as leis do Império são as únicas leis no momento. E nem vou fingir que vou abraçar alguma coisa que não queira, porque se você é realmente parte da minha alma, deveria saber disso melhor do que ninguém.”
A dublê se inclinou à frente, com uma luz fervorosa nos olhos. “Há outra lei. A que você aprendeu na Casa da Luz. Faça o bem. Ataque o certo. Proteja os inocentes, lute por uma causa justa.”
“Quer que eu seja uma heroína,” percebi. “Isso… acho que nem tenho palavras pra te dizer o quão burra de ideia que é. Esquece que meu corpo está quase na mesma região de pelo menos duas calamidades, mesmo que isso fosse suficiente por si só. Heróis tentam ‘libertar’ Callow todo o tempo, Gêmeo Idiota. Não dá certo.”
Pisei para frente.
“Tentam, talvez acendam uma cidade no sul, e aí morrem. Assassino os pega, ou as Legiões, ou o Inferno, já ouvi até Black matando alguns. Alguns nem chegam a entrar em Callow antes de serem pegos.”
“Você já está aqui,” ela respondeu. “Conhece Laure, conhece seu povo. Tudo que eles precisam é de alguém que levante a bandeira, e eles se unirão.”
“Vão reagir com rebelião,” corrigi. “E depois serão dispersos. Então, acho que minha cabeça vai ficar bem linda, empalada ao lado deles na porta da cidade.”
“Essa é sua resposta?” ela rosnou. “Vai dizer que é muito difícil? Muito difícil, pra não virar mais uma ferramenta do Império ao invés de fazer a coisa certa?”
“Tô macho pra fazer a coisa certa,” respondi de forma seca. “Desde que não seja também a bobeira. Isso aqui não é uma história, itsa. Estamos vivendo ela de verdade. Se ferrar, pessoas de verdade vão morrer, e a gente morre junto com elas, sem ter feito nada útil.”
“Melhor não fazer nada do que fazer coisas ruins,” ela disse.
E aí percebi que a gente tinha se separado. A outra aqui na lama achava que só matar quem merece era suficiente, mas isso é coisa de criança. Sempre vão existir pessoas como Mazus, tiranos pequenos, viciados em poder e ganância. Tirando eles não é suficiente: é preciso mudar o sistema por trás, toda a engrenagem que os permite subir alto demais. Essa, ela acha que só ser Boa é o bastante. Que, por fazer o bem, a gente ganha no final, e os vilões se mandam e todo mundo celebra. Mas na vida real, nem sempre dá. Às vezes, você não consegue vencer o Mal, e a única saída é ser paciente e inteligente.
“Fazer nada é pior do que ser Mal,” eu disse, avançando. “Matar pessoas porque você se recusa a ceder é pior do que ser Mal. Eu vou mudar as coisas – talvez nem todas, mas o bastante. E se isso significar sujar minhas mãos, então que assim seja. Não preciso ser uma boa pessoa pra fazer um mundo melhor.”
Ela abriu a boca, mas eu já tinha chegado perto e minhas mãos fecharam ao redor do seu pescoço.
“Não,” growluei. “Você falou o que tinha que falar, e a gente acabou aqui.”
–
Pela segunda vez em dois dias, acordei numa sala que não conhecia.
Espero que desmaiar não vire rotina comigo no Império, porque já tava cansando. A cama era maior que minha magra estrutura, parecia até que caberia uma família de quatro, e pelo toque, tinha sido coberta por lençóis de seda de verdade. Ora, ora. Distante do orfanato, hein, Catherine Foundling?
Suspirei e me deitei, aproveitando por um momento o luxo deles, com a cabeça apoiada nos travesseiros, evitando abrir os olhos. Me senti… surpreendentemente bem, na verdade, exceto pelo pulsar fraco onde tinha sido mordida na noite anterior. Meus sentidos pareciam afiados, como se tivesse dormido bem, ao invés de passado por uma visão de Nome de simbolismo duvidoso. Depois de algumas respirações, a novidade sumiu e me forcei a me levantar, assustando a criada que arrumava o quarto perto da janela, onde o sol entrava. Um jovem, certamente callowano pelo tom de pele e vestindo o uniformezinho do palácio.“Dama Foundling,” ele fez uma reverência, parecendo pego com a mão na marmita de mel. “Mil desculpas, não quis te acordar.”
“Dama Foundling,” repeti, meio desconcertada. “Quem diria. Se soubesse que só precisar pedir em sonho pra virar nobre, tinha feito isso há um tempo.”
O servo parecia bastante alarmado, mas fingiu que não tinha percebido. “Senhor Black deixou ordens para que, ao despertar, fosse informado imediatamente, minha senhora,” explicou, olhando para o chão. “Peço licença para fazer isso. Roupa está à sua disposição perto da banheira.”
Banheira? Não esperava cair no luxo tão cedo, depois da noite horrenda, mas que bom que não estou reclamando disso.
“Você,” indiquei vagueando, “vá lá e faça isso, acho que assim.”
O rapaz se despediu com uma reverência e saiu do quarto, fechando a porta atrás de si.
“Dama Foundling,” repeti, rindo sozinha.
O título me parecia mais uma piada ruim do que qualquer coisa. Foundling não é um nome de verdade: é o que colocam ao lado de um orfão na lista quando abandonam ele. Como colocar uma placa de “porco” em um porco. O mero fato de falar de banho me deu vontade de levantar da cama correndo, então, com outro suspiro de prazer, escorreguei para fora dela. Precisava muito procurar umas roupas dessas, se fosse me estabelecer em algum lugar enquanto fosse a Squire. Caminhei em direção à janela, descalça, deixando o tecido encharcado de suor do roupão, e joguei fora a camisa que tinha sido a minha cama. Nunca me importei em usar corpetes ou algo assim: não precisava, pois minha estrutura tinha sido amaldiçoada por meus pais Deoraithe — magra, como eles, como um molde de escultura. Meus pais, hein. Faz tempo que não pensava neles. Não sabia quem eram — se é que eram mesmo, já que a Casa das Meninas Orfãs Tragicamente Esquecidas não mantinha registros que eu pudesse invadir. Cheguei ali pouco depois da Conquista, então provavelmente não era filha de um soldado morto.
A vista da janela era linda, dando para um jardim bem cuidado, com sebe de arbustos esculpidos e flores exóticas. Algumas jardineiras já trabalhavam ali, mas não me importava se alguém espiasse pela janela: a pouca privacidade que tinha na dormitório tinha me acostumado há muito tempo com isso. Passeei os dedos pensativos pelos vidros, curtindo a coloração que o vidro colorido dava aos meus dedos, verde e vermelho. Com certeza veio de fora. O Conselho dos Vidraceiros não fazia trabalhos assim, então provavelmente era uma peça do Principado. O servo tinha mencionado que meu novo professor tinha dado ordens de avisar quando eu acordasse, então depois de um tempo me dirigi ao doorway em frente à cama. Nunca tinha usado uma banheira de verdade antes, então queria aproveitar ao máximo. O outro quarto era todo de madeira e mármore branco, com uma grande piscina no centro, parecida com uma banheira Miezan. Humm. Não pensava que essas fossem populares por aqui antes da chegada dos praeianos. Testei a temperatura com o dedo, quase fervendo. Levantei uma sobrancelha: espero que tenha um feitiço que mantenha a água assim, porque, se não, seria um desperdício absurdo de madeira.
Despi as calças e as joguei para fora da porta. Havia bancos de mármore sob a água, então me sentei numa delas, apoiando as costas na borda da banheira — parecia feita pra alguém mais alto do que eu, pois chegava ao meu pescoço. A água quente era a melhor coisa do mundo, depois dos últimos dias, e mergulhei nela só pra sentir o calor envolvendo todo o meu corpo. Saí um pouco longe e olhei para alguns frascos de vidro pequenos.
Eram transparentes, dava pra ver que estavam cheios de sais e óleos: peguei o mais perto, retirei a tampa e cheirei. Algo de ervas. Lavanda, talvez? Nunca me interessei muito por ervas medicinais. Dei de ombros e coloquei um pouco nas costas, massageando e espalhando na água também. Alguns minutos depois, já tava cheirando mais àquilo do que a mim mesma, provavelmente por ter colocado demais. Mergulhei na água pra enxaguar e decidi que já tinha me permitido demais naquele dia: as roupas prometidas estavam do outro lado da banheira, dobradinhas com cuidado, então nadei até lá. Me levantei, peguei a toalha de limpeza ao lado, e observei curiosa as vestes que me deram. Calças de couro grosso, feitas com a pele de um animal que não conhecia, e uma camisa branca de lã. A novidade era a jaqueta acolchoada, grossa, que parecia que ia chegar até meus joelhos. Já tinha visto a Sargento Ebele com uma dessas, algumas vezes. Ela chamava de aketon — legionários usavam por baixo da armadura de malha pra evitar machucar a pele. Parece que vou ganhar uma armadura em breve.
Foi surpreendentemente fácil vesti-la, porque ela tinha os cordões na frente que se ajustavam sozinhos. Acho que seria meio absurdo eu precisar de uma escudeira própria, pensei, rindo comigo mesma. Quando voltei ao quarto, tinha mais uma pessoa lá: Black estava descansando numa cadeira ornamental ao lado de uma mesa de escritório de estilo procerano, folheando um livro sem parar. Ele levantou a sobrancelha quando me viu.
“Fica bom em você,” comentou.
“É verão,” resmunguei. “Vou acabar derretendo.” Uma lembrança do que ele tinha feito voltou e eu fechei a mão em sinal de acusação. “Você — seu idiota. Você me apunhalou.”
Ele pareceu ponderar por um momento antes de dar de ombros.
“Só um pouquinho,” respondeu.
Nunca tive tanta vontade de quebrar a cara de alguém igual tinha naquele momento com ele. “É isso que você acha que vou fazer?” rosnei. “Só um pouquinho?”
“Se o fato de você não estar gritando e sangrando pelos olhos indicar alguma coisa,” comentou, “então foi um sucesso total.”
“Tinha essa possibilidade?” perguntei fraquejando. “Você podia ter dito isso antes.”
“Sim,” admitiu, de forma franca. “Poderia ter dito.”
Malditos vilões. Mesmo agora que eu sou uma, malditos vilões.
“Só pra esclarecer — a lama e a horda de mortos-vivos, isso é normal, certo?” perguntei, sentando na beirada da cama.
Ele ergueu ainda mais a sobrancelha. “Pântano? Incomum. Eu passei por um labirinto também, e dizem que a experiência se adapta com quem passa por ela.”
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Caramba, é meio deprimente pensar que a melhor coisa que minha alma conseguiu criar em visões de Nome foram água suja e zumbis.
“Acho que é uma coisa boa que a sua experiência tenha sido mais marcial,” ele me disse. “As habilidades do seu Nome provavelmente são relacionadas a isso.”
“Pois é, pelo menos isso,” resmunguei. “Não tô me sentindo muito diferente, então acho que ainda não sou o/a Escudeiro(a).”
“Mais ou menos na metade, na medida do que dá pra medir,” o homem de olhos verdes respondeu. “Tem outros concorrentes, mas nenhum tão avançado assim.”
“Outros concorrentes?” repeti.
“Feche os olhos,” instruiu o Cavaleiro. “Concentre-se. Deve sentir alguma coisa na sua cabeça, como se alguém estivesse te observando.
Obedeci. Nos primeiros momentos, nada aconteceu, mas depois veio… uma sensação. Não era exatamente como ele tinha dito — mais parecia uma coceira que não tava na pele, mas ainda assim era minha. Fiz uma careta tentando empurrar aquilo, e de repente, aquilo se abriu pra mim.
“Outros três,” eu disse, abrindo os olhos. “E alguma coisa diferente, um quarto elemento que não é exatamente igual.”
Ele pigarreou, concordando. “Tente manter o pulso naquilo o máximo que puder, daqui pra frente.”
“Por quê?”
Ele sorriu. “Porque, a partir de agora, todos querem te matar.”