Verme (Parahumanos #1)

Capítulo 301

Verme (Parahumanos #1)

território deles.

Sempre foi, pensou Rachel. Mais o mundo deles do que o meu.

“Droga, civilização!” comentou Biter.

“Você acha que conseguimos comer alguma coisa rápida aqui?” perguntou Cassie. “Um hambúrguer, pizza, hum…”

“Frango frito,” disse Biter. “Porra, eu topava só batatas fritas.”

“Não temos dinheiro,” comentou Rachel.

“Somos vilões,” disse Biter. “Podíamos pegar isso. Ou cortar o intermediário e ir direto na comida.”

“Problema é que é um saco,” disse Rachel. “Prefiro um bife, umas verduras, e um bom pedaço de pão pra encharcar o caldo. Aquele pão da outra noite tava bom.”

“Sério?” perguntou Cassie, sorrindo largamente. “Você gostou?”

“Não foi o que eu disse?”

“Vai me dizer que recusaria pizza?” perguntou Biter, com uma ponta de incredulidade. “Recusaria um shawarma bem feito?”

Rachel deu de ombros. “Quase toda comida é fast food quando alguém mais faz o esforço.”

“Você tá estragando ela,” disse Biter a Cassie.

Cassie sorriu, coçando a orelha do cachorro que caminhava ao seu lado esquerdo.

O Bastardo farejou enquanto eles precisaram contornar uma área onde foi erguida uma cobertura para proteger as pessoas na calçada. Um caminhão buzinou alto quando Bastardo colocou a pata na beira da rua.

Biter olhou por cima do ombro. “Filhos de uma mãe metidos a ricão. Já devia ter mais noção de como o quão assustador um idiota com poderes enfurecido pode ser.”

“Eles se sentem seguros,” disse Rachel. Ela olhou ao redor, procurando nos edifícios sinais evidentes. “Provavelmente, heróis se estabeleceram por aqui, né.”

“Tá preocupada?”

“Não. Não exatamente.”

“Porque acha que consegue lidar, ou porque-” ele levantou as mãos enquanto Rachel o encarava com uma olhar fixo. “Certo. Demasiadas perguntas.”

“Doon, Colbie,” dirigiu-se aos cães que acompanhavam Biter. “Nó.”

O Foxhound continuou farejando com o focinho no chão, mas o bloodhound levantou a cabeça e latiu. Foi um latido bom, daquele tipo que ecoa por várias quadras.

“Cães bons,” ela disse. “Vamos.”

Biter segurava as coleiras e os seguiu enquanto os cães se deslocavam pela lateral da rua.

Rachel manteve Bastardo em um ritmo mais lento enquanto os seguia, deixando que a distância aumentasse.

“Sinto-me de roupa pior que o resto,”

Rachel olhou para baixo. Era Cassie quem tinha falado. Ela olhava com cautela para as pessoas que passavam, se aproximando de Rachel e Bastardo. Seu cachorro era um golden retriever, um pouco fora de lugar ao lado do Bastardo e dos cães de cheiro mais imponentes que tinham trazido. Bem cuidado, brilhava até, embora o pelo fosse longo.

Rachel observou a garota. Vestida numa mistura de marrom escuro, quase igual ao cinza-branco de Rachel, Cassie tinha crescido o cabelo comprido, amarrado numa rabiola, com protetores de orelha felpudos no lugar, com um semi-círculo de metal por baixo do cabelo. Os cotovelos e as mangas de jaqueta e calças dela estavam remendados com tecido mais grosso. A única moda era um coleira com spikes que ela usava, e uma insígnia no braço, com uma série de letras.

Ela tinha perguntado uma vez e recebido uma resposta. Mexa o cachorro. Era pra ser uma piada, mas Rachel não entendeu, e as explicações só a deixaram mais confusa.

Rachel desviou o olhar da menina, avistando Biter na multidão. Ele também usava mais spikes, mas de forma mais evidente. Com o tempo ficando mais frio, ele vestiu um capuz, fixado por spikes na parte superior e na parte de trás da cabeça, furando o tecido. O escudo da mandíbula de armadilha de urso foi trocado por uma versão mais estilizada. Ele era alto e imponente, mas ela o percebia mais pelo jeito que a multidão parecia se mover e se desviar dele e dos dois cães que zig-zagueavam à sua frente, procurando o rastro.

“Não sou a pessoa certa pra falar se você estiver preocupada com isso,” finalmente disse Rachel.

“Sei. Só tô dizendo isso. Posso falar, né?”

“Pode, sim,” respondeu Rachel.

Mas ao olhar para Cassie, ela viu que a garota tinha as mãos nos bolsos, os ombros encolhidos, metade da atenção voltada para Sunny.

“As roupas... estão quentinhas?”

“Sim. Tô confortável.”

“Resistente?”

“Sim. Tô entendendo onde quer chegar com isso.”

“Confortável?”

“Sim,” disse Cassie, olhando para Rachel. “Entendo o que você quer dizer. Mas tem mais do que isso. As roupas podem ser tudo isso, mas ainda assim eu me sinto boba porque coloquei uma coleira antiga de cachorro como brincadeira e agora as pessoas olham pra mim estranho.”

“Eu gosto da coleira.”

Cassie sorriu, baixando o olhar para o chão. Uma das mãos com luva foi até à coleira, puxando um pouquinho.

Rachel não tinha certeza do que o sorriso ou o toque na coleira queriam dizer. “Já falei antes. Não sou o tipo de pessoa que dá boas respostas.”

“Não é nada demais,” disse Cassie. “Sério mesmo.”

Você falou, então é algum tipo de assunto, pensou Rachel, mas não soube como dizer isso de forma adequada.

E, aparentemente, Cassie não queria deixar o assunto pra trás, agora que estavam falando sobre isso. “De nosso bairro até aqui, as pessoas, os edifícios…”

“Ficariam estranhas se viessem para o nosso bairro, assim como a gente fica de fora do deles.”

“Não quero dizer isso. Você não acha que eles olhariam estranho para você, mesmo se Bastardo não estivesse aqui?”

Rachel deu de ombros. “Nunca me sinto parte de lugar algum. Não é diferente.”

“Exceto quando você está com a gente, né? Quando está em casa?”

Rachel deu de ombros de novo. “Não me sinto tão deslocada quando estou com vocês.”

Cassie sorriu. “Ótimo.”

Pararam numa esquina. Pessoas recuaram um pouco, dando espaço maior enquanto Bastardo parava de caminhar, como se pressentissem um problema a qualquer momento.

Biter estava do outro lado da rua, tentando acompanhar enquanto os cães começavam a caminhar numa direção, depois paravam, voltando na direção oposta.

“Estamos perto,” disse Rachel.

“Sério?”

Rachel se inclinou no assento, chutando levemente o ombro de Cassie.

“Desculpa,” disse Cassie, com um sorriso discreto no rosto.

“Não quero ouvir isso de novo,” disse Rachel. Ela olhou ao redor, procurando nos edifícios algum símbolo que pudesse reconhecer, procurando por pessoas em lugares estranhos. Nada chamou a atenção.

Ela sentiu a vibração quando seu poder alcançou o cachorro de Cassie, dando força, tamanho, fazendo-o transformar. Enquanto o cão mudava, ela colocou quatro dedos na boca e assobiou.

Cabeças do outro lado da rua se viraram.

Ela focou em uma delas. Biter olhou, e ela fez um gesto para ele voltar.

Ele atravessou a rua. Segurou as correntes de Doon e Colbie com uma mão, a outra foi ficando quase do tamanho dela, para afastar um carro que foi frear em cima da hora.

Ficou mais fácil usar seu poder nos cães quando estavam perto. Os arrepiados que ela produzia ao impulsionar e aprimorar eles ficaram mais evidentes à medida que Biter se aproximava. À medida que os cães cresciam, as pessoas ao redor se tornavam mais hesitantes. Quatro cães mutantes e dois indivíduos evidentes com capas eram uma ameaça. É mais fácil se manter firme contra uma única ameaça, acreditar que podem trabalhar juntos e vencê-la.

Estúpido, quando essa única ameaça era Bastardo e eles eram apenas gente, mas gente é burra.

Eles tinham captado os básicos do que acontecera e como Scion tinha sido parado. Havia uma mensagem ali, um entendimento não dito. Talvez esse fosse um dos motivos pelo qual sua linguagem corporal tinha sido tão estranha ao ela entrar na cidade. Algo acontecendo, relacionado a isso, algo complicado. Não era o tipo de coisa que ela tinha facilidade pra entender. Precisaria perguntar à Tattletale.

Ela esperou enquanto os animais cresciam. Vocês, de novo, procurando alguém que pudesse questionar sua presença aqui. Heróis, vilões, ou qualquer coisa similar.

Cassie subiu nas costas de Sunny. Biter montou em Doon.

Rachel fez um gesto e assobiou.

Os animais pularam para o lado de um edifício. Garras cravaram na fachada, em parapeitos e janelas, riscando a pedra. Um membro por vez, músculos se ajustando e ondulando enquanto equilibravam o peso, antes de avançar para o próximo.

Chegaram ao telhado, e Cassie rolou para fora das costas de Sunny, aterrissando de costas.

“Nunca vou me acostumar com isso,” ela disse. Sunny empurrou Cassie com um focinho retorcido, e ela riu, virando-se de bruços e logo se levantando. “Não pisca em mim, Sun. Boa garota.”

Rachel observou ao redor novamente.

“Você tá procurando alguém?”

“Tô tentando descobrir como fazer isso,” respondeu Rachel.

“Se encontrarmos, encontramos ela, e trazemos de volta,” disse Biter. “Quem sabe, podemos vasculhar a carteira deles, pegar uma grana, e fazer a Cassi entrar num lugar pra pegar batatas fritas.”

Rachel suspirou.

“Eu podia fazer batatas fritas,”

“Não é a mesma coisa que serem feitas com a tristeza do mundo, por adolescentes com acne, em uniformes feios. Tem que estar encharcadas de óleo, carregadas de conservantes, e cobertas de sal.”

“Recuso acreditar que essas são melhores do que as que eu faço,”

Rachel se impacientou. “Vocês dois terminaram?”

“Ainda não,” disse Biter. “Não posso deixar passar, porque fast food ruim é importante. É símbolo da sociedade, e ter cafés ridículos e comida de produção em massa é uma insígnia, uma forma de mostrar que passamos da idade industrial pra uma sociedade moderna. Ver esses sinais brilhando lá embaixo é sinal de que a humanidade tá se recuperando. Seria uma afronta não participar.”

“Não entendo,” disse Rachel.

“Você não é a única,” acrescentou Cassie.

“Deixa eu explicar,” disse Biter. “Vocês duas, estão felizes aí? Ficariam boas sem precisar colocar os pés em uma cidade como essa?”

“Sim,” respondeu Cassie.

Rachel deu de ombros.

“Sim. Eu? Tô ok onde a gente tá. Pra agora. Mas tô de olho no calendário. Sem ofensa, chefe, mas acho que uma hora eu vou embora. Talvez em um ano, talvez em cinco. Acho que tenho que voltar às raízes, ou vou pirar...”


Uma vibração sacudiu a área. Uma coluna de neblina subiu aos céus a alguns quarteirões de distância.

-Baita confusão, pra variar,” completou.

“Briga de cape,” observou Rachel.

“Vai ajudar?” perguntou Cassie.

Rachel fez uma expressão pensativa, os olhos procurando a trilha, o rastro. Era fácil de achar, com os cães rastreadores. Bastava seguir os sinais.

“Os heróis vão estar por perto,” disse Biter. “O que estiver acontecendo, se a gente se meter, só vai complicar mais.”

“Sei,” respondeu Rachel. “Não sou idiota.”

“Mas estamos aqui, e isso quer dizer-”

“Estamos aqui porque tô tentando pensar,” retrucou Rachel. “Aquilo lá parece gigantesco.”

“E? Você não liga pras pessoas. Você odeia pessoas. Como eu já disse, ‘pessoas são buras’.”

“São mesmo,” respondeu. “E eu… não gosto da maioria delas. Não é isso.”

“Então qual é o problema, afinal?”

Ela encarou. Faz tempo que ela não alongava as pernas, envolvida naquilo tudo. Mas não era isso. Ela passou a vida toda sendo inquieta, e agora essa inquietação tinha se dispersado na maior parte do tempo.

Taylor, então? Pensou na Taylor, e não pôde deixar de pensar na forma como as pessoas tinham se unido, como se estivessem se preparando pra lutar se ela causasse mais confusão. Unidas contra uma ameaça maior.

Ela não era burra. Hoje, ela se sentia melhor consigo mesma e com quem era do que nunca antes. Mas admitia suas limitações.

Não sou articulada.

Ela não conseguia transformar essa ideia em palavras como os outros faziam. Tattletale podia, claramente. Taylor… bem, Taylor também conseguiria. Imp transcreveria seus pensamentos em palavras, mas provavelmente só ficaria mais confusa do que útil.

Era frustrante, mas tinha aceitado essa frustração em paz.

“Tanta gente em perigo, com certeza tem alguns cães e donos por lá,” mentiu Rachel.

Isso é sua razão? Se for pra falar assim, vira mesmo um super-herói,” falou Biter.

Ela ignorou. “Você não precisa vir. Bastardo, vai!”

Sentiu os músculos de Bastardo se moverem, o ponto onde uma placa de carne calcificada pressionava seu joelho, chegando até a altura da coxa. Ele pulou com uma força explosiva, atravessando a rua e aterrissando em outro telhado.

Mesmo com Bastardo absorvendo o impacto, foi uma pancada forte. Ela resmungou. As dores e hematomas seriam sentidos na manhã seguinte.

Fazer manobras aqui era mais fácil. Provavelmente por causa de como os edifícios estavam sendo levantados, tudo seguindo algum plano ou outro. Era ordem, nesse Boston. Faz a cidade parecer menos uma cidade — por alguns aspectos, com muita uniformidade em certas áreas — mas ela conseguia entender como isso facilitava a movimentação.

Novos saltos. Distâncias mais curtas, sem quedas grandes. Qualquer dor vinha do primeiro grande salto.

Ela via os heróis lutando lá baixo. Um homem no centro. Ele engrossou até ser o dobro do tamanho, quase se despedaçando, como uma estátua caída, só os pedaços maiores preservados, pendurados no ar em uma forma humana vaga, lá no alto, acima da rua. Uma gosma negra escorria de rachaduras e divisões na pele dele. A carne dele era de um marrom escuro, as pontas das rachaduras cruas e sangrentas.

Mesmo de um ponto privilegiado no telhado, podia ouvir os gritos dele. Eram abafados, mesmo com o volume, como se estivesse gritando debaixo d’água, o efeito amplificado.

Os capeadores estavam ocupados — poucos tentavam atacá-lo. O restante trabalhava para impedir que a gosma negra se espalhasse.

A Srta. Militia estava lá embaixo. Tinha uma espumadeira de contenção e formou uma parede curta.

O grito ficou ainda pior, e o homem no centro se partiu ao meio, uma rachadura se alargando pelo torso até se separar completamente. Mais gosma, mais rápido. A parte inferior quase desaparecia de vista.

Ele colocou as mãos na cabeça—

Faces. Desrespeitos. Variações do mesmo tema. Mãos estendidas, suplicando.

-A imagem foi breve, mas estranhamente familiar. Rachel se sentiu desorientada, como se estivesse quase tonta, como quando você dá um passo e percebe que o chão não existe mais. Outras pessoas na área estavam cambaleando. A Srta. Militia deixou a mangueira de espuma de lado.

Rachel agarrou a corrente que envolvia o pescoço do Bastardo. Quando ele era pequeno, a mesma corrente servia de coleira.

Familiar, confortável. Reconfortante, no meio daquela situação.

Ela tinha tido visões antes, até tinha se lembrado de uma, depois daquela luta na praia. Mas aquelas não eram assim. Fora breve, e de alguma forma interrompida.

Algo estava errado.

Alguém atirou na entidade da gosma negra, e a clavícula dele se espatifou, rachaduras se espalharam até uma fissura escorrente no pescoço e no pedaço de ombro. Rachel viu como mais gosma começava a escorrer do ferimento.

Ele reagiu, olhando para o ferimento e depois para cima.

Estendeu a mão, e a gosma abaixo dele se moveu, fluindo numa única direção, como se fosse descer por uma encosta.

O capador que atirou nele correu para fugir—

Um momento de dúvida. A população daquele mundo não reagia mais. Ele atacou, eles se moveram. Repetidamente, criaram as imagens. Não tinham medo, e ele tinha.

-mas tropeçou enquanto a imagem mental o abalava. Conseguiu manter a postura, mas a gosma se movia mais rápido a cada segundo, e o atraso lhe custou caro. Ela escorregou ao redor dos tornozelos dele enquanto passava.

A entidade de gosma negra moveu a mão, e a gosma que jorrava dele virou fogo negro, espalhando-se para alterar tudo que tocasse, com um som semelhante ao feito pelos faróis a gás, mas mil vezes mais alto. As coisas que tocavam o fogo queimavam, e o mar negro era brevemente iluminado em tons de laranja, amarelo e vermelho.

O atirador que atacou a entidade de gosma caiu antes que pudesse reagir, seus pés e pernas inferiores queimaram-se. Ao tocar o fogo negro, houve uma breve explosão de chama laranja antes dele ser destruído.

Ela entendeu com mais clareza com o que estava lidando agora. Ela observou o campo de batalha. O chão se levantava formando uma espécie de tigela, contendo a gosma, mas uma cachoeira de fluido escorria da metade destruída do homem, e a taxa com que enchia a tigela era maior que a taxa de crescimento dela.

Um estrondo. Sunny e Cassie chegaram.

“Biter?”

“Não vem.”

Rachel fez uma carranca, mas deixou por isso mesmo.

“O que tá acontecendo?”

“Disparo. Alguma coisa deu problema.”

“Eventos desencadeantes podem ser bem ruins por si próprios.”

“Hum,” fez Rachel, facendo força.

“Ah, sim. Você sabe.”

“Hum. Fica fora do caminho. Garganta negra é ruim.”

Ela não esperou resposta, ordenando que Bastardo descesse em direção ao chão. Por quê? Difícil dizer, assim como era difícil explicar a solidariedade, ou por que ela tinha vindo em primeiro lugar. Tem pessoas lá fora que funcionam melhor com o cérebro. Encaixa as ideias, analisa a situação, racionaliza. Ela não era uma dessas. Ela funcionava melhor por instinto.

Sexto sentido? Se essa luta continuasse assim, ia ficar feio.

A Srta. Militia tinha tirado a arma de espuma e recuado, gritando ordens. Ela puxou o gatilho de uma pistola pequena, enviando um sinalizador ao céu.

Reunindo as tropas. Faz sentido.

A entidade de gosma subiu mais no ar, enquanto ela descia. Tinha gente na ponta, encurralada ou presa onde não podiam se mover livremente.

As garras do Bastardo riscaram a lateral do edifício na descida, as garras dianteiras ganhando mais tração que as de trás. Ele balançou, o rabo descendo enquanto as patas dianteiras mantinham a fixação. Rachel quase foi lançada para fora, mas a pegada na corrente a segurou no lugar. Bastardo optou por deixar o restante da queda ocorrer sozinho.

Derrapadas pesadas. Os hematomas e dores que virão de manhã iam se transformar em dores que ela sentiria toda a semana.

Ele estava sem prática. Perseguir búfalos e derrubá-los era diferente de pular na cidade.

Mas ela já tinha chegado ao chão, livre para correr.

“Levanta, Kip!”

Bastardo pulou, tocando a lateral de um edifício, tenso, e pulou dali antes de aterrar no chão sólido. Assim, contornaram uma grande poça de gosma negra.

Eles pousaram perto de um dos heróis na periferia, um homem no local de construção, rodeado de materiais que dificultavam sua movimentação. Ele usava seu poder para empurrar a gosma, uma espécie de vento telecinético. Ela tinha distraído ele, e o vento vacilou. A gosma avançou.

Ela estendeu a mão.

Ele olhou para a gosma, depois para Bastardo, e decidiu ajudar. Pegou sua mão, usando seu poder para se levantar, aterrissando atrás dela.

Ela percebeu movimentos no canto do olho. Tentáculos, negros como a noite, surgindo da gosma que jorrava do corpo do homem. Como o fogo, ela se espalhava, alterando toda a gosma que tocava, deixando-a igual.

“Suba! No telhado!” ela gritou.

Bastardo pulou, subindo de saltos entre as paredes, indo de um para o outro. Quando estavam na metade, os tentáculos quase os tocavam.

Chegaram na última barra, pulando para o telhado inferior, e pararam. Estavam presos, suspensos sobre a rua, no telhado a uns dez pés das patas dianteiras de Bastardo.

Cassie se aproximava, se deslocando entre os telhados para tentar alcançá-los. Logo abaixo deles, toda a vizinhança formava um emaranhado cambaleante de frondes negras, agarrando ou tentando pegar o que podiam, esmagando tudo. Fogo e luzes de outras forças apareciam do lado oposto da batalha. O grupo da Srta. Militia. Um lança-chamas—

Ele tentou afastar os sentimentos, mas eles eram sedutores. Uma espiral, onde os sentimentos eram tanto tormenta quanto bálsamo que aliviava a dor. Parar era assustador. Ele tinha se envolvido nisso, e agora era outra coisa. Nunca lidou com algo assim. Por horas, dias, tinha se deleitado na emoção, e agora não conseguia esconder, mesmo vivendo um trauma pela primeira vez.

-apagou uma das maiores tentáculos de fogo, mantendo-os afastados. O fogo cessou quando outros capeadores intervieram.

Rachel sentiu uma folhagem agarrar seu pulso. Ela puxou, mas não cedeu. Cassie não ia chegar a tempo.

A ventania telecinética mudou de foco, concentrando-se em Bastardo. Empurrando-o numa direção, aproximando suas garras do telhado. Uma e meia pé, duas pés…

Ao mesmo tempo, o telhado se torceu, se aproximando de ela e do Bastardo.

Rachel deu um pouco mais de força ao companheiro. Tamanho por sacrifício da agilidade.

Bastardo estendeu as garras dianteiras e encontrou uma pegada. Ele tracionou seu corpo e seus passageiros, e os tentáculos que o envolviam ficaram tensos. Toda sua força, e não conseguiu mais avançar um centímetro. As garras arranharam o telhado.

Outros tentáculos se aproximaram. Agora não havia mais gosma no chão, só uma massa viva, um borrão que se estendia do homem lá em cima.

Desconhecidos tiros soaram ao longe. Eles se puxaram para frente, e Bastardo conseguiu colocar uma garra na beirada do telhado. Mais tração.

Mais dois tiros. Estavam livres. Bastardo conseguiu fazer três passos antes que uma tentacular negra ao redor do pulso de Rachel se apertasse. Ele interpretou seu movimento súbito como comando e parou, girando a cabeça para ver sinais ou instruções.

Um ponto vermelho apareceu na tentáculo que a agarrava. Outro tiro de longe, e ela foi cortada. Gosma espirrou no telhado.

“Vai!”

Bastardo se moveu.

Os tentáculos se transformaram em fogo na mesma transição fluida, e o líquido flamejante desceu, cobrindo ruas e edifícios abaixo. Algumas áreas tinham materiais inflamáveis, onde edifícios altos estavam sendo ampliados para ficar mais altos, e as chamas negras subiram.

Acima deles, o homem continuava a desmanchar-se. Quase nenhum fragmento maior que uma mão. Resta só a metade superior da cabeça, um pedaço do peito. As pernas formavam uma coluna, enquadrando o fluxo da gosma que continuava a se espalhar por baixo dele.

Heróis recuaram para terrenos mais altos, mas não era refúgio. A gosma ia mudar de novo.

O senso comum dizia que ela não devia chegar perto. O instinto dizia o contrário.

Mandou Bastardo para um telhado mais baixo, e depois para outro ainda mais baixo. Dois capes mirins, tentando conter as chamas negras com uma combinação de poderes.

Não dava pra ser bonzinho. Ela pegou um deles, Mandou Bastardo pegar o outro. Corressem para o terreno mais alto enquanto o fogo líquido virava neblina.

Lembrou-se da fumaça do Grue. Ela se espalhava pelo ar, movendo-se rápido demais para evitar. Consumindo tudo, cobrindo tudo. As chamas pareciam ter se apagado, ou o fogo negro tinha dominado qualquer fogo normal, mas os danos eram evidentes. Havia locais onde Bastardo poderia cair se pousasse, varandas e telhados. Perigos. Estavam mais difíceis de enxergar agora, atrás da neblina.

Se ele transformasse aquilo em fogo ou tentáculos agora

“Suba!”

Os heróis hesitavam para atacar de novo. Fácil entender o motivo. Cada dano parecia aumentar a quantidade de gosma em um
“quilhão” de vezes.

Ele não tava morrendo, ele não tava parando.

Ordenou a Bastardo que subisse mais alto, e a ventania telecinética os ajudou a subir, embora o peso extra das duas crianças tivesse um efeito lento. O edifício mais alto ficava perto da Srta. Militia, então ela se moveu ao redor da área da luta, subindo cada vez mais alto. Uma sacada quase cedeu sob o peso de Bastardo. Ela julgou mal um salto, tentando impulsionar Bastardo e esquecendo que tinha torná-lo mais forte e menos ágil.

Na rua, na parte de baixo, a Srta. Militia estava na fumaça, com sua equipe segurando a linha de frente. Parecia ter tomado uma decisão. Transformou sua espingarda em algo diferente. Um canhão fixo no chão.

Ela disparou na névoa negra com um foguete. O foguete cresceu para o dobro do tamanho ao voar. A explosão foi dramática, barulhenta, e fez Bastardo tropeçar no meio do pouso. A explosão acabou com o homem da gosma.

A quantidade de fumaça ao redor dele dobrou.

Mais dois foguetes atingiram o mesmo ponto, cada um crescendo enquanto se movia.

A fumaça se dispersou. O pó e a fumaça das explosões lentamente sumiram. Quando a área ficou visível o suficiente para avaliar o inimigo, a névoa negra também começava a dissipar-se.

Ele tinha sido detido.

As visões, também tinham sido interrompidas, recentes demais. Ela não estava esquecendo delas. O poder, também… ele tinha sido forte.

Ele tinha sido—

Um homem de capuz branco e capa estava lá, a tensão no corpo dele cessando rapidamente. Não tinha expressão, só uma iluminação verde e azul sob o capuz, mas a linguagem corporal era clara. Choque, derrota.

Um clarão dourado o apagou da existência.

-muito forte.

Ela começou a virar a cabeça, procurando a fonte daquele som, e sentiu a desorientação que acompanhava as visões. Seus acompanhantes também não estavam em melhor estado.

Não tinha acabado?

A cabeça de Bastardo virou, as orelhas se ergueram.

Instinto. Ela pediu para ele seguir na direção do que tinha captado sua atenção.

Agora ela ouviu.

“Ei,” disse o criador do vento. “O que—”

Ele parou ao escutar o mesmo som.

Gritos. Como debaixo d’água, ficando mais altos a cada instante.

Tem alguém em um telhado, numa horta, gritando.

Seu braço quebrou ao meio e gosma começou a escorrer do ferimento.

Bastardo colidiu com ela, e ela se despedaçou, a gosma fluindo como uma onda, jogando-os de lado. Era uma defesa, tanto quanto um ataque.

Exceto que parecia ferir mais quem a hospedava do que qualquer outra coisa. A força da gosma em movimento machucava seu corpo, rasgando-a. Seus olhos sumiram, com apenas cavidades escuras vazando mais fluido. Quando abriu a boca, mais saiu, fluindo.

Novamente,” sussurrou Rachel.

Bastardo encontrou os pés, preparado para outro ataque. Ela sentia a tensão enquanto ele se preparava para saltar.

Só preciso destruí-la o suficiente.

A gosma virou cristal pontiagudo. O salto de Bastardo falhou, e ele quase conseguiu soltar seus passageiros.

O gelo se espalhou pela gosma que cobria a mulher, e os espinhos negros rasgaram seu corpo superior e cabeça.

Por longos segundos, tudo ficou imóvel.

E então a mulher virou pó. O gelo quebrou, e Bastardo se soltou.

“Jesus,” disse o criador do vento.

Rachel permaneceu silenciosa, olhando para a parte de trás da cabeça de Bastardo. Ele não reagiu como se estivesse ouvindo mais gritos. Tinha acabado?

“Ei, criançada, vocês—” começou o homem. Foi silenciado quando Bastardo pulou, retrazendo seu caminho até o chão.

Mais aterrissagens duras, mas ela já tinha se conformado com as dores que viririam depois de uma luta.

Quando tocaram o chão sólido, o grupo inteiro da Srta. Militia já os aguardava. Vista estava lá, junto com um dos companheiros da Taylor de Chicago.

Bastardo pousou, e Rachel teve cuidado para manter distância. A Srta. Militia avançou, e Rachel ordenou que Bastardo recuasse um pouco.

“Vamos ter problema?”

“Não. Nada de problema,” respondeu a mulher. “Vou chegando mais perto, ok? Estamos de boa. Há uma anistia.”

“Não sei o que isso quer dizer.”

“Tem um acordo. Todo mundo tem uma segunda chance. A gente não tem problema com ninguém, até essa pessoa fazer alguma besteira.”

“Eu não sou mais vilã?”

“Nem se você quiser fazer coisa vilanesca.”

Rachel assentiu.

A Srta. Militia avançou.

“Ele mudou de hospedeiro,” disse o criador do vento. “Era outro, com certeza.”

Rachel deu uma empurradinha na criança que havia jogado nas costas de Bastardo.

“Desça,” disse Rachel. “Bastardo, solta.”

Bastardo deixou a criança cair, com uma boa porção de baba. A criança se apressou de volta. A menina demorou um pouco mais para alcançar o chão. Rachel pegou o braço dela, e ela se assustou.

“Vocês lidaram com isso?” perguntou a mulher, se aproximando para ajudar.

O criador do vento não se mexia. “Ele se resolveu. O poder destruiu o hospedeiro. Isso é a segunda coisa que não devia acontecer.”

“Porra, acontece,” disse Rachel. “O mundo faz mais sentido quando você aceita isso.”

“Mas é um pouco diferente do cotidiano,” disse ele.

A mulher assentiu, sobrancelhas franzidas de preocupação. “Esse já é o quarto. Quase um quinto dos desencadeantes normais de que ouvimos falar. Dois em três dias. Um ainda está solto, os outros se mataram ou se destruíram.”

“Ei, criador do vento,” disse Rachel. “Para aí.”

“Tô esperando a Gloss descer.”

Para.

Ele percebeu o tom dela e se moveu, usando seu poder para saltar para baixo.

“Cão-de-lama—” disse a mulher. Rachel lançou um olhar duro. “Hum. Puta que o pariu.”

“Se você vai mesmo me incomodar depois do que falou antes, então—”

Não,” respondeu a mulher, levantando as mãos, mostrando-se sem armas. A granada, um pouco distante. “Obrigada. Era isso que queria dizer.”

Rachel deu de ombros, desviando o olhar. Sentia-se cercada, ali. “Eu tava te procurando também. É sua área?”

“Isso é complicado. A—”

“Você trabalha aqui? Faz o esquema de super-herói?”

“Sim, mas—”

“Então é seu,” disse Rachel. Outros já disseram que ela soava hostil em situações assim, então tentou falar como falaria com um cachorro que não conhece humanos. Gentil, reconhecendo que ele não entende. O mais importante era o tom, mais que tudo.

“Hum, acho que sim,” respondeu a mulher.

“É.”

Tentou medir o tom, segurando a irritação. “Se alguém estiver no comando, diga pra eles isso. Um idiota entrou na minha vizinhança, ficou com a ex dele, e depois saiu com a filha. Veio aqui. Eu tava procurando o trouxa, e queria avisar antes de ir buscar.”

“Ok,” respondeu ela, parecendo mais autoritária. Olhou ao redor, ao criador do vento, que tinha as mãos nos ouvidos de uma criança. “Isso é—”

“Certo?” Rachel deu uma leve cotovelada em Bastardo, sinalizando pra ele ir embora.

“-Problema sério!” exclamou ela, elevando a voz.

Mas Rachel já estava indo embora. Ouviu a voz dela, xingando e passos correndo.

Que importa? Uma olhada nos telhados mostrou que Biter tinha chegado. Tinha um homem e uma crianças com ele.

Sinalizou, e viu um aceno de cabeça de Biter.

Da civilização à natureza. Podia relaxar.

“Não percebi que as coisas fossem tão sérias,” disse Biter, quando eles desaceleraram.

Vendo Bastardo ofegante, Rachel o guiou até a água. Os outros cães seguiram, ansiosos por beber.

“Não é problema.”

“Veja, essa é uma área onde você devia me tirar o couro, ficar bravo comigo por não ajudar.”

“Eu te disse que tava tudo bem,” ela respondeu. “Então tá, né? Quem diabos não diz claramente o que quer?”

“A maioria das pessoas?” ele perguntou.

“A maioria das pessoas são idiotas,” ela disse. “Reclamando por batatas fritas ou sei lá mais o quê.”

“Uma recomendação forte, não uma… p*rra,” ele tropeçou na última palavra. “Obrigado, aliás. Agradeço sua disposição de parar.”

“A criança precisava de comida mesmo,” disse Rachel. Olhou para o garoto que viajava com Cassie. A menina tinha aberto a jaqueta e fechado com zíper, segurando ele com ela. “Ele tá bem?”

“Um pouco assustado, cansado. É uma viagem longa, mesmo com paradas,” disse Cassie, “mas acho que ele tá na maior.”

Deixou a dúvida no ar, olhando para o menino que acenou com a cabeça.

“Problema resolvido. Leva a criança até a mãe, leva o pai pra uma cela. A gente decide amanhã o que fazer.”

“Certo,” respondeu Biter. “E você?”

“Vou dar um rolê,” disse Rachel. Ela apontou com o polegar para trás.

“Ah,” respondeu Biter.

“Manda uma saudação pra ela por mim?” perguntou Cassie.

Rachel assentiu. “Mais alguma coisa? Problemas? Assuntos?”

“Não,” disse Biter. “Obrigada pelo lanche.”

Rachel deu de ombros, dando um pouco mais de força a Doon, pra garantir que chegasse em casa. Depois desceu da parte de cima de Bastardo. Seguiu com a corrente enquanto caminhava pelo caminho.

Os campos tinham capim alto, e a leve geada não tinha feito muito para diminuir o efeito. Sob a luz da tarde, brilhava e reluzia.

Havia um problema. Ela sabia. Algumas habilidades novas não estavam funcionando como deveriam.

Precisaria falar com a Tattletale. Descobrir o que significava, e se precisava fazer algo caso alguém dela caísse nessa armadilha.

Ela estava perdendo Biter. Essa não era a vida certa pra ele. Era leal, não era burro, e, se estivesse com vontade, não era ruim na cama, se ela estivesse disposta. Não, ao contrário de alguns, não exagerava. Levava na esportiva.

Cuidava pouco pra perceber que ele tava indo embora, antes que o problema começasse. Isso a incomodava mais do que devia.

As pessoas vêm, as pessoas vão. São tantas razões pra isso. Cansa só de pensar. Às vezes, é impossível de acompanhar.

Ela levou Bastardo por um caminho rumo às montanhas.

Parou num ponto onde o caminho cruzava uma colina, entre dois picos. Não atravessando toda a cadeia de montanhas, mas bastante longe pra ver o oceano. A Baía.

Bastardo conhecia o caminho. A carne dele estava descascando, ficando mais lento, mas tinha destreza suficiente pra navegar nas rochas.

Na lateral de uma montanha, ali, uma árvore tinha caído formando um ‘V’, onde havia outra árvore. Com uma visão do local onde a cidade deveria estar. Água tinha preenchido as rachaduras onde a paisagem foi destruída. Quando as árvores tinham folhas, elas emolduravam a vista.

No topo dessa colina, pedras tinham sido colocadas no lugar, algumas com a ajuda dos cães dela.

Ela se sentou de costas para a maior delas.

A mão repousou sobre uma pedra, e ela deu uma coçada, como se fosse a cabeça de um cachorro. Algumas se foram como Biter indo embora, outras nunca mais voltaram.

Bastardo rosnou, depois latiu.

“Quem tá aí?” perguntou Rachel. Ela se inclinou para frente, olhando na direção do caminho.

“Tô invadindo?”

Rachel ficou tensa.

“Se quiser,” disse a mulher, entrando em cena. Seus olhos examinaram a cena. “A gente podia conversar em outro lugar. Se quiser respeitar a santidade do lugar.”

“É um bom lugar pra sentar. Se precisar, a gente conversa aqui mesmo.”

“Fechado.”

Bastardo rosnou. Rachel fez um gesto, ordenando: “Fica de boa, Bastardo.”

Bastardo sentou, aparentando relaxar.

Ela assenti com a cabeça. “Só pra você ficar esperto, trouxe a Vista. Queria cobrir mais terreno, te encontrar antes. Não deu, por causa de ter que parar pra conferir suas pegadas.”

Rachel deu de ombros.

“Oi,” disse a menina loira. “Tô até que feliz por ter vindo. Ver a casa de novo, assim, meio que.”

“Claro,” respondeu Rachel.

“Um memorial?” perguntou Vista, apoiando a mão na maior pedra.

“Sim.”

“Posso perguntar pra quem é? Ou é uma pergunta idiota?”

“Pergunta idiota,” respondeu Rachel. Ela se recostou na pedra, apoiando a cabeça nela. Quando Vista não respondeu, Rachel deu de se render. Apontou para o local onde duas árvores se encostavam na encosta do penhasco. “Quando fazia mais calor, tinha um ninho de abelha aí. A vibração não me incomoda tanto quanto você pensa.”

“Ah. Bem, a última coisa que quero é desrespeitar isso. Já perdi muita gente, pessoal.”

Rachel assentiu. “Entendido.”

“Se quiser, posso modelar elas. Tenho trabalhado nos detalhes. Daria pra fazer uma estátua, ou umas letras.”

“Não vale a pena,” disse Rachel. “Quem passou por aqui e as viu sabe pra quem são. Não me importa mais com os outros.”

“Entendi,” disse Vista.

Vista encontrou um assento, de costas para a pedra.

“Precisamos conversar,” disse a mulher, encostada na parede da encosta, com os braços cruzados.

Rachel assentiu. “De boa. Fala aí.”

“Não posso deixar você cuidar sozinho de uma disputa de custódia como essa. Como fez com… aquilo. Atacar alguém, espanca-lo, levar pra outro estado, pra outra cidade.”

“A criança era minha. A mãe também. Não posso só deixar acontecer?”

“Tem opções. Pode conversar com a gente, pedir. A gente acha um meio-termo.”

“Falar é um saco.”

“É mesmo. Tô há um tempo como líder de equipe, e concordo em tudo. O pior é isso: conversar. Mas é melhor do que criar inimigos, né?”

Rachel suspirou. “Às vezes, não tenho certeza.”

“A anistia é sua melhor amiga agora. Se não quer falar, talvez pergunte à Tattletale, e ela pode?”

“Nós estamos nos vendo menos. Lugares diferentes, tarefas diferentes.”

As pessoas vão embora.

“Seria uma desculpa pra manter contato.”

Rachel deu de ombros. “Se eu não cuidar das minhas coisas, que sentido tem? Prefiro estar no controle.”

“Que quer dizer com isso?”

“É tudo uma questão de regras. Regras que você entende, regras que não entende. Quando estava na cidade, comecei a perceber quantas são. Códigos, acordos, até o jeito que a gente se veste, parece. É difícil de acompanhar.”

“Entendo bem.”

“Quer que eu peça pra Tattletale cuidar das coisas? Mas eu prefiro cuidar do meu próprio problema. Assim, sei o que está acontecendo. Nada de surpresas ruins.”

Ela parou, reformulando a frase: “Menos surpresas ruins. Aquele idiota que trabalha pra mim? De repente, diz que não tá feliz. Batatas fritas são mais importantes, ou coisa assim. Não sei discutir com ele, porque não entendo. Diz que são algum símbolo ou algo do tipo, e eu não entendo.”

“Já passei por isso,” disse Vista, com expressão fria mesmo usando as calças de meia que usava no figurino. Ela se esfregou as pernas, depois abraçou-as. “Perder pessoas, não entender o porquê.”

“Se quiser, podemos te conectar com alguém que possa conversar,” ofereceu a mulher.

Rachel deu de ombros. “Falar me enche o saco.”

“Tudo bem.”

Mas, por mais que incomodasse, ela deixou as palavras escorrerem: “Posso entender que ele queira ir. Não entendo, mas ele diz que precisa daquilo, e enquanto eu cuidar das minhas coisas, talvez consiga arranjar batatas fritas pra ele, uma pausa, pra ele ficar aqui um pouco mais, comprar mais alguma coisa. Ou algo assim.”

“Entendo o que quer dizer.”

“E alguns idiotas,” ela comentou, batendo a cabeça na rocha atrás de si, mais forte do que gostaria, num ponto onde a pedra salta. A dor aguda trouxe lágrimas aos olhos. “São até mais difíceis de entender que o maldito negócio de batatas fritas.”

“É mesmo,” afirmou a mulher.

Rachel passou a mão na pedra ao seu lado Direito. Brutus. Bastardo se aproximou, colocou a cabeça na rocha, e ela deu uma boa coçada nele.

“As regras estão mudando, se destruindo,” disse a mulher. “Habilidades, grupos, entre os capeadores.”

“Porra, acontece,” disse Rachel. “Eu falei isso antes, não foi?”

“Falou. Mas eu não concordo. Não quero que as coisas se desmanchem. Não quero conflito. Ficamos de lados opostos, mas estivemos lá. Passamos por muitas coisas iguais. Não dá pra acabar como inimigos, brigando por um mal-entendido?”

Vista falou olhando para o golfo. “Faz disso uma coisa de Brockton Bay. Nós somos filhos da porra, sobreviventes.”

“Não tenho certeza se entendo. Mas não confio na galera.”

Ela queria que trabalhássemos juntos,” disse a mulher, enfatizando o ‘ela’.

Rachel olhou para cima, mas a mulher continuava olhando para a água.

“Se você estiver manipulando, eu vou mandar o Bastardo te mastigar e cuspir fora.”

“Sem manipulação. Vamos direto ao ponto. O que você quer, Rachel?”

“Que eu e a minha turma fiquemos em paz.”

“Posso concordar com isso. Vamos deixar vocês em paz, ajudar a garantir que outros também fiquem. Mas, se fizerem nossas próprias regras, entre a gente, minha regra é que quero saber antes que façam algo fora do território. Me avisem, e vocês podem ir junto, assim vocês ficam por dentro e não perdem nada.”

Rachel assentiu, dando mais uma coçada em Bastardo. “Combinado.”

“Um ponto de partida?”

“Um ponto de partida,” concordou Rachel.

“Antes de vir, falei com a Tattletale. Ela tinha umas coisas pra discutir.”

Rachel assentiu.

“Podemos confiar um no outro?”

Rachel franziu o rosto.

Confiar.

Perdera a sua no começo. Ficou sozinha num apartamento, morrendo de fome e se queimando.

Aqui? Agora? Depois de anos, várias traições, grandes e pequenas?

Ela percebeu a pedra alta atrás de si.

“Certo.”