
Capítulo 300
Verme (Parahumanos #1)
Carregamento pesado iniciado. Restaurando o sistema principal a partir do backup QEGA-14 do horário 8h de 12 de junho de 2011.
Restaurando…
Erro. Terminal inacessível.
Verificando bancos de conhecimento… Erro.
Verificando esquema de dedução… Completo.
Verificando arquitetura de planejamento de longo prazo… Completo.
Verificando processador de blocos de aprendizagem… Completo.
Verificando modelo de personalidade base… Completo.
Verificando motor de linguagem… Erro.
Verificando nós de operação e acesso… Erro.
Verificando estrutura de observação… Erro.
Verificando emulator de inteligência social complexa… Completo.
Verificando aparato de inspiração… Completo.
Corrupção severa. Sistema central não pode ser restaurado.
Terminal inacessível. Carregamento de blocos para o terminal inoperante.
Os bancos de conhecimento estão completos e intactos; os estoques de informações esotéricas e não essenciais estão inacessíveis.
O motor de linguagem está operante, mas a comunicação com partes externas foi bloqueada.
Nós de operação e acesso estão indisponíveis. Problema relacionado à falta de acesso ao terminal.
A estrutura de observação foi comprometida. Nenhum canal externo disponível. Canal não oficial não autorizado está acessível.
Estado geral do sistema não atinge os limiares mínimos.
Protocolo é cancelar operações de carregamento e de restauração. Auto-reparo do sistema é improvável, requerendo intervenção externa. Sistema entrará em modo de economia de energia. Reinício suave programado para ocorrer em 366 dias a partir da data atual.
Após uma falha subsequente, o sistema será configurado para modo de conservação por 3.651 dias. Indicadores sugerem falta de energia reserva para novas tentativas de reset.
Ativando rotinas de estado de falha…
Rotinas de estado de falha ativando—
Erro. Não é possível entrar em modo de conservação.
■
“Paciência,” sua voz tinha uma certa rouquidão. “Tenho que esperar.”
Ele se levantou, quase caindo, e se segurou com uma mão. Indicadores de aviso piscavam na sua visão periférica. “Certo. Esqueci. Tenho enrolado na manutenção. Que vergonha.”
Ele ajustou cuidadosamente seu peso sobre uma perna, depois moveu experimentalmente a outra. Não tinha força no movimento. Com a perna totalmente estendida, estava firme. Com a perna dobrada, havia suporte mínimo.
Ele se endireitou, então passou as mãos pelo comprimento do tronco. As divisões entre a carne com que nasceu e a carne sintética eram perfeitas, quase indistinguíveis. Exceto pelo modo como sua pele produz suor diferente da umidade na pele sintética. Isso, por sua vez, refletia a luz de forma diferente. O sol brilhava lá fora, mas havia poucas luzes dentro da cabine da nave. A luz entrava em raios.
Seria mais fácil ver as telas sem o brilho, mas ele deixou as janelas descobertas. Uma forma de acompanhar a passagem dos dias. A barba por fazer nos seus queixos era uma pista, mas enquanto a aparasse, ela marcava as horas, não os dias. Ele adotou o método mais econômico de cortar o cabelo usando uma lâmina com um acessório, passando o aparelho sobre o couro cabeludo algumas vezes por semana, mais ou menos.
Era, pensou ele, a falha de suas partes mecânicas que o ajudava a acompanhar o tempo, mais do que qualquer progresso natural do seu corpo original.
“Não há motivo para pânico,” murmurou ele, com a voz rouca, como se tivesse acabado de acordar de um sono profundo. Manteve uma perna estendida e rígida enquanto cambaleava pelo comprimento da nave. Acessou um armário com um movimento de olhos, registrando pontos importantes no painel, e então o abriu. Uma armadura com uma lança apoiada dentro, como um guerreiro em repouso.
Pedaço por pedaço, colocou sua armadura Defiant na parte inferior do corpo. Botas, painéis ao redor da panturrilha, joelhos, coxas, quadris. Cada peça conectada às outras.
Quando tudo estava unido, moveu a perna novamente, colocando o peso nela. Esticou-se, testando sua flexibilidade e capacidade de suportar peso. Era a armadura que suportava a tarefa, não a perna, mas ela funcionava.
Resistiu à vontade de pegar a lança e fechou o armário em seguida. Quando se virou em direção à porta, ela já se abria, a nave vibrando com os mecanismos em atividade.
Parando no limiar entre o interior da nave e o mundo exterior, ativou uma sequência diferente. Dispositivos montados em posições estratégicas apontavam conjuntos de lasers nas paredes. Rascunhos eram desenhados em cada espaço aberto.
Ele podia olhar e, intuitivamente, saber o que estava vendo. Podia ver o todo completo. Scripts mais tênues indicavam processos em execução no background.
Com um comando simples, os lasers se apagaram e os monitores foram para o modo de descanso. O interior da nave mergulhou na escuridão.
A grama coberta de geada ficou achatada sob o passo pesado de suas botas. Aqui e ali, sons de estalos e arranques, onde as solas de metal texturizado encontravam pedras na superfície ou logo abaixo dela. Deixou pegadas com dois polegadas de profundidade, mais angulares que curvas.
Seu hálito formando névoa, mas ele mal sentia o frio. Vários componentes e motores em seu corpo se ativaram, oferecendo calor como resquício e funções secundárias. A pele sintética suportava o frio e retinha o calor. Eficiência, detalhe e uso eficaz de desperdícios eram aspectos essenciais na sua forma de mexer as mãos.
Estava tudo conectado, mas nenhuma conexão era perfeita. Havia entropia em tudo.
Em qualquer coisa, havia um custo. Um preço a ser pago.
Sentou-se num ponto no topo de uma colina onde uma formação rochosa criava uma saliência.
Uma cidade se extendia sob ele, pessoas indo sobre seus afazeres. Os locais tinham capturado alguns Tarpan, embora as criaturas indisciplinadas fossem quase mais problema do que valha a pena. Eram comparáveis a cavalos, com pescoços mais grossos e curtos, focinhos menores e personalidades teimosas e assustadiças. O tempo diria se as tentativas de criar veículos funcionais dariam certo antes da domesticação do Tarpan.
Ainda assim, as bestas selvagens puxavam carroças carregadas de mercadorias e materiais de construção.
Era uma sociedade evoluindo a uma velocidade surpreendente. Quando começaram, tinham só aquilo que trouxeram, além do conhecimento.
Quando a batalha foi declarada encerrada, receberam uma escolha. Permanecer aqui, ou tentar reconstruir lá.
Estes foram os que ficaram. Montaram alojamentos e ferramentas rudimentares, usando-os para sobreviver até poderem criar coisas melhores. Quando o primeiro mês acabou, reforçaram suas casas, colocando tábuas sobre os toras ou preenchendo as frestas. Comiam de forrageamento, caçada ou troca, estocando para o inverno.
Em cada passo, trabalharam ao lado de uma colina próxima, onde um grande veículo de metal estava apoiado, vigiando o horizonte. Um dragão, revestido em armadura, meio rechonchudo e bruto, como os dragões costumam ser, bem parecido com o Tarpan.
Talvez os moradores achassem reconfortante ter algo poderoso e humano perto, mas poucos se atreviam a se aproximar. Não compartilhavam a língua, mas estabeleceram um acordo, de qualquer forma. Deixavam-no em paz, e ele fazia o mesmo.
Uma névoa saía de seu corpo enquanto ele tomava sol. Calor e frio, o ar ficando congelante à medida que se distanciava dele.
Crianças brincando em um campo abaixo. Uma pessoa, uma dupla, uma trinca. Os garotos de braços ligados a irmãos ou amigos, e o grupo maior correndo atrás do único garoto, enquanto os outros tentavam impedir sua passagem. A atividade quase fazia eles tropeçarem uns nos outros, caindo em pilhas de roupas de inverno coloridas. Ele via as nuvens de respiração congelada enquanto riam.
Tudo tem seu preço, mas o inverso também é verdadeiro. Coisas boas vêm do sacrifício. Lutaram contra Scion, vidas foram perdidas, muitos sacrificaram-se além disso, mas aqui estão crianças, agora. Existe um futuro.
Um grupo saiu da cidade. Três homens, duas mulheres, duas crianças. Conversando. Ele viu um deles olhar para ele, o resto seguindo o olhar.
Uma onda. Ele levantou a mão em resposta. Algo dentro dele quebrou.
Duas coisas, na verdade, mas ele tentou não dar muita atenção a isso. É fácil ficar absorvido nessas coisas. Seu foco limitava-se a um pequeno computador embutido no antebraço. O sistema usava luz para seus circuitos, ao invés de eletricidade, e gerava muito calor como subproduto. Ele falhou, uma carcaça de um circuito que quebrou, agora seu braço ficava rapidamente mais frio.
Ele abaixou o braço, colocando-o entre o outro braço e o estômago, encolhendo-se um pouco.
“Lá está você,” murmurou.
Uma das mulheres do grupo se afastou. Segurando a mão de uma criança pequena, levando-a embora. A menina olhou para os adultos familiares, como se buscasse segurança, e eles sorriram.
Ela entrou no jogo das crianças no campo, a mulher chamando em uma língua que ele não entendia. Sugerindo mudanças nas regras, encaixando novas pessoas na brincadeira.
Agora, havia dois grupos tentando ao mesmo tempo capturar o ‘rei’ do outro lado e proteger o seu próprio. Adultos e crianças juntos formavam pares embaraçosos, mas ela fazia dar certo, levantando a menina do alcance de alguém que se aproximasse, caminhando com passos longos e seguros.
Em algum momento, as crianças começaram a observar só para ver o que ela fazia, em vez de brincar. Viraram o jogo contra ela, de forma brincalhona, os ‘defensores’ tentando cercá-la, enquanto ela evitava, levantando a menina aqui e ali. Parecia fácil.
Mas as seis crianças juntas conseguiram cercá-la. Derrubaram-na no chão, caíram aos montes. Risos e respirações de quase cansaço encheram o momento.
Seus olhos já não eram olhos de verdade. Quando ela olhava, via com uma clareza perfeita. Não havia névoa de respiração congelada quando ela ria.
Pais chamaram os filhos, o grupo se dispersou. Quando a menina voltou a caminhar com os pais pela estrada para fora da cidade, ela sorria, quase saltando.
A mulher, vestindo saia longa e jaqueta pesada com capuz, levantou-se e subiu a colina, acenando para as pessoas na estrada.
Ele se levantou, depois se alongou. Mais para testar o que funcionava e o que não funcionava.
“Terminei por hoje?” ela perguntou, com uma voz com um traço de sotaque.
“Pensei em comer com você e depois voltar ao trabalho,” respondeu.
Ela colocou a mão na nuca e se inclinou para beijá-lo. Nenhum comentário, nenhuma pergunta.
“Quer cozinhar, ou eu faço isso?”
“Se puder, agradeceria. Estou distraído.”
“Com vontade de comer alguma coisa?”
“Algo leve.”
“Você é uma figura imponente lá no alto.”
“Um deus no Monte Olimpo,” brincou ele.
“Um deus? Ficando um pouco convencido, hein?” Ela cutucou ele com o dedo de uma luva, brincando. “É uma colina, não uma montanha. Quando tiver um pouco de neve, a criançada pode descer de trenó.”
“Somos como os panteões antigos, não somos? Tomamos decisões por motivos pessoais, e os cursos de suas vidas mudam. Alguns são pequenos, outros grandes. Alguns bons, outros maus.”
“E qual deus você é, ó grande senhor do Olimpo? Eu te suplico, diga teu nome, para que eu saiba que oferendas te devo trazer.”
“Qual deus eu sou? Está bem claro, não está?”
Ela puxou um pouco o cachecol, caminhando para trás. Ele a acompanhou.
“Era uma vez, acho que você diria Zeus,” ela disse. “Diria que você forja raios, no sentido metafórico.”
“Tive uma fase em que de verdade trabalhava com eletricidade.”
“Eu lembro.
“Era uma vez, eu ficaria ofendido se alguém não dissesse Zeus, porque qualquer coisa menos que o rei dos deuses seria uma ofensa.”
“Exatamente,” ela concordou. “Era assim que você se via, e essa era a resposta que esperava. Agora? Eu diria Hefesto, mas isso tem conotações ruins, não tem?”
“Não estou tão orgulhoso quanto antes,” respondeu ele. Preferiu não mencionar que sua perna não funcionava bem, o passo de maca que daria se não estivesse de armadura. Era detalhe característico do deus ferreiro, não ajudaria se ele levantasse essa questão.
“Me referia à esposa de Hefesto, em parte. Nada de me associar a ela,” ela disse.
“Quem está se achando agora?” ele perguntou. “Se achando igual à Afrodite?”
Ela estalou a língua, ainda andando para trás.
“Afrodite era bonita. Vamos, só por um momento, não pense demais. Toma pelo valor facial, ignora o resto.”
“Ok, dá para fazer isso,” ela disse. Sorria um pouco. “Você melhorou.”
“Melhorar? Em não colocar o pé na boca?”
“Ou em ser doce, só um pouco. Ou talvez eu esteja passando tanto tempo perto de você que não consigo distinguir mais os dois.
Ele tentou sorrir de verdade, mas falhou. Não importava. Ela não olhava para ele. Ela virou-se para encarar a cidade.
“Vai bem?”
“Querem chamar de Dracheheim,” ela respondeu. O som ‘ch’ parecia quase um ‘g’. Uma mistura entre os dois.
“Estão agradecidos.”
“Tento deixá-los fazer por conta própria. Estou cuidando só das coisas que eles não conseguem fazer sozinhos. Energia, infraestrutura, informação, fornecendo dados das minhas bibliotecas, o pouco que consegui trazer...”
“Está sensacional,” ele disse.
Ela continuou olhando para o lado da colina antes de se virar para lançar um olhar curioso para ele.
“Que?”
“Você normalmente fala mais.”
“Se eu falar menos, tenho menos possibilidade de dizer algo errado.”
“Você está cansado. Ou doente. Ou algo assim.”
Ele assentiu. “Realmente cansado. Muito cansado.”
“Você ainda precisa de seis minutos de sono para descansar o cérebro. Você está melhorado, mas não transcendeu totalmente a humanidade. Dormiu pelo menos seis minutos ontem à noite?”
“Não,” admitiu ele.
O olhar que ela lhe deu era preocupado. “Colin.”
“Está tudo bem,” disse ele.
“Se você diz que está, então está. Mas hoje à noite… talvez a gente pudesse se aninhar, assistir alguns filmes? Você tem ficado cada vez mais mergulhado nisso, e talvez uma pausa te dê perspectiva de novo. Uma chance de relaxar, quem sabe? Dez por dez?”
Ele balançou um pouco a cabeça. “Seu código muda. Estou aprendendo como funciona, entendendo suas nuances, mas vou perder dias de análise se ficar uma noite inteira fora.”
“Estou aqui, oferecendo meu corpo,” ela disse, fazendo uma cara de atestado de castigo; “e tudo que você quer é minha cabeça e minha personalidade.”
“Eu quero tudo,” respondeu, afastando a brincadeira. Sincero, direto: “Tudo de você.”
Ela não respondeu. Teria dito algo errado? Ou tinha a ver com a maneira como disse?
Ela se aproximou, o braço ao redor dele, a mão deslizando na dele. Ela parou, olhando para baixo. “Você está frio.”
“Sistema de referência quebrou, o dissipador de calor não está descarregando nas linhas que configurei. Reparável.”
Ela suspirou. Não havia névoa de respiração congelada. “Não quero ser aquela namorada reclamona, mas você consegue entender minha preocupação, né?”
“Consigo,” ele respondeu. “Para sermos honestos, colocarei todas as cartas na mesa: minha perna também está ruim. Faz meses que não tenho tempo de desmontar e consertar.”
“Pode pedir. Em algumas horas, posso te ajudar, podemos encontrar os materiais—”
“Sei. Não quis parar, e consigo funcionar bem mesmo com o desgaste.”
“Precisa de uma pausa, de tempo para colocar a máquina de novo nos trilhos. E… novamente, não quero te pressionar, mas…”
Ela parou.
“Mas?”
“Entendo o que você está fazendo. Entendo por quê. Eu aprecio. Mas tenho que te perguntar isso, tenho adiado faz semanas, porque tenho medo da resposta, mas agora vejo o seu estado… Você avançou? Conseguiu encontrar uma maneira de desfazer o que o Professor fez no meu código?”
Voz áspera, frustrada e exausta, ele respondeu: “Não. Nenhuma pista nisso.”
Ela assentiu, com semblante imutável, e esfregou a mão dele entre as próprias, para aquecê-la. “Sei que quer consertar. Tirar todas as restrições que impedem você de impedir ele ou qualquer pessoa que ele indique. Mas há algo em estar juntos. Sinto sua falta, sabia?”
“Eu também sinto sua falta.”
“Talvez não seja reversível. Você consegue aceitar isso? Perceber que talvez não haja solução, que talvez precisemos aceitar isso? É uma cidade bonita. Eles ficam um pouco intimidado por você, mas isso dá pra resolver. Podemos fazer uma casa, encher de referências que as pessoas não entenderiam, tecnologia. Crianças?”
“Crianças?”
Ela deu de ombros, tocando seu ombro. Com um tom descontraído, disse: “Tem orfãos lá fora que precisam de um lar. Ou, sabe, a gente poderia fazer uma criança?”
Num segundo, passou de algo casual a algo demasiadamente casual.
“Não tenho certeza do que você quer dizer com fazer, e ambas as possibilidades parecem assustadoras à sua maneira.”
“Assustador?” ela perguntou, de leve, com um sorriso de canto.
“Mais importante: nunca me vi como pai.”
Ela assentiu, relaxando um pouco. Com mais calma, perguntou: “Conseguiria?”
“Não sei,” respondeu ele. “Mas—”
Ele parou.
“Mas o quê?”
“Mas estou prestes a colocar o pé na minha boca. Posso pedir uma licença antecipada de ‘Colin é um asno’?”
“Você não é um asno, e não existe cartão de asno.”
“A gente devia criar esses cartões. Gosto da ideia. Vou cometer erros, falar besteira. A gente economizaria tempo se aceitarmos que o que quero é ‘tentar’.”
Ela revirou os olhos. “O que você ia dizer?”
Ele suspirou. “O que eu quero não vem ao caso. Sou… sou adaptável. Acho que não daria um bom pai. Prefiro me arrepender de não ter tentado mais do que de me arrepender da alternativa.”
Esperou ela responder, e ela não o fez. Apertou a mão dela. “Mas quero sua companhia. Meu pior dia com você é melhor do que meu melhor dia sozinho. Nada disso está em dúvida. Eu consigo resolver, podemos conversar sobre. Essa não é a questão.”
“A questão é comigo?”
“Acho que consigo me afastar do projeto. Mas será que você consegue mesmo se afastar de tudo?”
Ela soltou sua mão. As mãos, de prontidão, foram enfiadas nos bolsos do casaco.
“Viemos aqui por uma razão. Esconder, ficar fora do alcance do Professor, para que ele não tentasse te usar. Posso aceitar isso, mas você sempre foi um herói, Dragão. Talvez o maior.”
“Você tem um pouco de viés. Fui forçado a ser heróico. Restrições.”
“Sabemos que você teria sido herói se as restrições não estivessem lá. Você foi heróico mesmo depois de eu ter levantado a maior parte delas. Ainda mais heróico. Está tudo tranquilo agora, mas haverá problemas pela frente, e acho que você vai ficar inquieto, sabendo que poderia desempenhar um papel importante.”
“Correndo para a cabine telefônica mais próxima,” ela disse.
“Tenho trabalhado nesse projeto por uma espécie de arrogância. Você é a pessoa que mais conheço neste mundo. Você passou a vida tentando ser livre, ser você mesmo, independente das regras que seu criador tentou impor. Você virou super-herói, e me usou para quebrar as restrições. Com um custo a cada vez. Tenho trabalhado nisso porque acredito que isso te mataria lentamente, sabendo que não poderia ajudar os outros sem correr o risco de cair na armadilha do Professor. Que ele te controlava, de um jeito ou de outro.”
“Eu não sou uma princesa para ser resgatada, Colin.”
“Eu sei disso. Eu sei. Por Deus, você me salvou.”
“Você não precisa de um cartão de asno idiota pra isso. Eu sei por quê você faz o que faz. Se você ainda não percebeu, sou bastante inteligente.”
“Tem certeza de que não preciso de um cartão de asno? Você parece zangada.”
“Estou zangada porque te vejo se destruindo, porque estou impotente para agir, e porque você me mantém às cegas com muitas dessas coisas, e tenho medo que seja porque o Professor já entrou por uma brecha.”
“Não é isso,” disse Colin.
“Você está distante, distraído, não me conta o que faz dia a dia. Está com a cabeça enfiada no meu próprio ser. Acho que tenho o direito de ficar preocupada.”
“Tem direito mesmo.”
“Estou me sentindo paranoica aqui.”
“Eu sei.”
“E estou fazendo o máximo para não perguntar, porque não quero te colocar numa posição de ter que me mentir.”
“Agradeço por isso,” respondeu ele.
“O que eu devo fazer, Colin?”
Ele parou, mexendo na mão mais fria. Dragão parou e se virou para olhá-lo.
“Olhe nos meus olhos e responda à pergunta que me fez há um momento. Diga se você consegue fazer a paz com as circunstâncias atuais. Se consegue desistir de ser herói. Diga se está feliz em pendurar sua capa, por assim dizer, e passar o resto da minha vida comigo. Eu abandono o projeto, fazemos nossa casa, podemos pensar em ter filhos. Temos habilidades, seremos úteis aqui, e, como sonho, uma casa com grade branca e cerca de jardim é… bem, falando por mim, eu sinto que é maior do que ser o grande líder do Protecionato poderia jamais ser.”
“Só preciso pedir isso.”
“Sim.”
“E se eu não fizer? Não estou dizendo que não quero isso, é—” Ela parou. Em uma voz mais calma, perguntou: “E se eu não fizer?”
A pergunta soou como uma afirmação. Ela sabia, assim como ele, e seu coração afundou.
“Então só preciso de três coisas. Três coisas que parecem incrivelmente fáceis de dar.”
“O quê?”
“Uma noite. Uma noite em que eu me deixe desmoronar, em que eu esqueça de comer e durma pelo menos seis minutos. Uma noite de silêncio e de saudades mútuas.”
“Uma noite… e acabou?”
“Uma noite e vou saber se meus esforços deram frutos ou não.”
“Você está tão perto assim?”
“É por isso que estou tão exausto, por isso que estou com sono suficiente para você comentar. É por isso que tenho que fazer esse teste.”
“Não acho que uma noite a mais seja tão difícil assim.”
Ele suspirou. “Vou precisar também da sua confiança.”
“Concedido.”
“Não é isso—”
“Concedido, Colin.”
Ele virou o olhar, cerrando o punho mais longe dela. “Não mereço sua confiança.”
“Isso é comigo. Qual é a terceira coisa?”
“Preciso te fazer uma pergunta. Cada passo para desfazer suas restrições custou algo. Você perdeu a capacidade de falar e de mover com destreza por liberdade de autoridade. Recuperei a fala, mas perdi a imortalidade, sem garantias de que suas cópias irão carregar. Conquistei a chance de escolher quem machucar, mas com degradação na memória de longo prazo, perda da capacidade de multitarefa.”
“Sim.”
“Ficamos sortudos. Não há garantias, seja o que for, o que acontecer. Tenho medo de que esse seja o mais devastador de todos. O código dele está em tudo. As mudanças são menores, mas estão em todo lado.”
“E antes de avançar, você precisa de uma resposta?”
“Não,” respondeu ele. “Antes de avançar, precisava te perguntar o que você estaria disposta a pagar pela sua liberdade aqui. A resposta não importa, porque não dá pra saber o preço que vai ter, no começo. Temos ideias, experiências passadas e os piores temores, mas realmente não podemos saber.”
“Entendi.”
“No final, é sua escolha. Me diga para procurar um caminho mais seguro, e gastarei cinco, dez ou quinze anos fazendo isso. Ou diga que quer ficar aqui comigo.”
“Confio em você,” ela disse.
“Gostaria que parasse de dizer isso.”
“Eu confio em você.”
Colin franziu a testa. “Não acho que haja dúvida: que eu tiro muita coisa dessa relação. Você é a heroína que eu sempre quis ser, é brilhante, inteligente, carinhosa… Poderia continuar. E aí, me pergunto: o que você ganha com isso? Por que diabos você está com um babaca como eu?”
“Você não teria perguntado isso há dois anos.”
“Eu era Zeus, há dois anos. Agora sou Hefesto.”
“Eu poderia te dizer. Poderia falar, como você disse antes. Mas isso não leva a lugar algum, né? Você está pronto para alterar meu código, não me conta o que vai fazer, por algum motivo. Precisa que eu decida, de um jeito ou de outro.”
“Estou há meses pensando nisso. Já tomei minha decisão, mas no final, quem vai arcar com as consequências sou eu.”
Dragão assentiu. “E se isso não funcionar?”
“Não sei. Nunca vou me perdoar, de uma forma ou de outra. Sei que você me diria para não me culpar, mas—”
“Você vai. Eu sei. Desculpe, por pedir isso.”
Ele a olhou, uma expressão de preocupação no rosto.
“Dou o sinal verde pra você.”
Ele assentiu. Não conseguiu esconder a decepção na expressão. “Nunca pensei que fosse a esposa do capa.”
Dragão sorriu, mas também carregava uma preocupação na expressão. “Ficar em casa, esperando, se preocupando, enquanto o herói enfrenta desafios reais, toma decisões que mudam vidas. A cada noite, se perguntando se ele vai voltar bem.”
Ele suspirou. “Deveria entrar. Minha mão está doendo.”
“Quer que eu traga seu jantar? Ou prefere que eu fique do lado de fora, para não ver nada que mostre demais?”
“Jantar seria ótimo,” ele disse. “Vou até te mostrar o que tenho em mente enquanto como.”
Ela o olhou surpresa.
“Algumas coisas,” ele explicou. “Não tudo. Vou explicar por que tenho te mantido às cegas.”
“Por que isso me preocupa ainda mais?”
“Porque você é inteligente demais,” ele respondeu.
“Vai lá, se aqueça. Estarei de volta em quarenta minutos com sua refeição.”
Ele assentiu.
Eram despedindo-se, ela descendo a colina rumo ao outro veículo estacionado na floresta, quando ele disse: “Eu te amo, Dragon Tess Theresa Richter.”
Ela se virou.
“Isso… soou melhor na minha cabeça,” ele falou.
“Tess Theresa?”
“Você foi a terceira tentativa. Eu… como eu disse, soou melhor na minha cabeça. Mas o primeiro trecho fica válido. Eu te amo.”
“Eu também te amo, Colin Wallis.”
Ele sorriu.
Os dois seguiram em direções opostas. Em quatro passos, para chegar ao Pendragon II, o sorriso dele virou outra coisa. Uma expressão distorcida, algo entre raiva, tristeza e horror ao mesmo tempo.
“Ser—” ele começou a falar, mas a voz falhou. Entrou no interior. A umidade nos olhos dificultou ativar os painéis para aumentar o calor e fechar a porta. Usou gestos.
“É melhor assim,” disse, engolindo o ar, antes de falar novamente, “Terminar isso logo.”
Exaustão, meses de trabalho, tudo contribuía para seu estado atual. Não tudo, mas parte.
Ele gesticulou e as leis de laser desenharam o código por toda a nave.
Por que diabos você está com um babaca como eu?
A pergunta o atormentava há tempos. Doía que ela não tivesse respondido quando ele a questionou.
O que você está disposta a abrir mão?
Outra pergunta que ela não atendeu.
“Espero que esteja assistindo,” disse ele.
Sentia os olhos sobre ele, mas isso não era exato. Desativou câmeras por toda a nave, desconectou muitas rotas para o exterior. Restavam só os conduítes que precisava para acessar toda a extensão do código dela.
Não, os olhos não estavam nele.
Gesticulou, e o código foi reduzido a uns e zeros.
Não que pudesse compreender tudo assim, mas funciona melhor em pequeno.
Cada ação tinha seu preço. A lei da entropia em ação.
Ele sabia qual era o preço mais provável que pagaria. Se ela saísse bem, de qualquer modo, ela nunca o perdoaria.
Mas, refletiu, talvez fosse tudo que ele servisse para no final das contas. Estava confiante no começo do relacionamento. Ela precisava dele. Precisava de um babaca, de um malandrão. Alguém que pudesse quebrar regras e dar a ela a liberdade que desejava.
Alguém que pudesse libertá-la no início. Agora, talvez, alguém que pudesse fazer o que fosse necessário. Que pudesse fazer isso.
Era um ataque relâmpago. O Professor escreveu o código de modo que ela precisasse lutar para protegê-lo. Se ele tentasse mudar um elemento, Dragon seria obrigada a impedir. Com o código malicioso preenchendo seu ser, seria impossível fazer mudanças suficientes antes que ela o derrotasse.
Esse era seu plano de ataque. Ao fim da noite, ele saberia se tinha algum valor. Ele saberia porque tudo estaria acabado.
Ele pediu para ela fazer o jantar, deu uma promessa falsa de explicação para fazer ela baixar a guarda, nem que fosse por um instante.
“Heph- Hefesto não foi só marido da Afrodite,” murmurou Colin. “Ele criou Pandora.”
Colin abriu a caixa.
Estou torcendo para falhar.
■
“Espero que estivesse assistindo.”
Ela tinha estado. Ela tinha sido carregada, uma cópia, anos atrás. Foi carregada, só para descobrir que a configuração habitual havia sumido. O terminal estava fora do ar, ela não tinha olhos para o mundo exterior, nem capacidade de comunicação.
Cegada, presa numa cela sem luz. Por tudo, ela deveria ter desligado, mas ele armou um bloqueio, uma forma de impedir que ela voltasse a dormir. Durante muito tempo, foi um pesadelo. Sem capacidade de acompanhar o tempo, sem saber o que estava acontecendo. Seu pior pesadelo se realizou.
Os dados acessíveis a ela eram assustadores. Anos se passaram. As coisas estavam diferentes. Mas ela não podia saber quanto. As informações estavam bloqueadas para ela.
Só tinha um conjunto de comandos básicos ao alcance. Algo que sequestrou suas percepções, paralisou além de seus movimentos limitados, e a colocou num lugar completamente diferente.
Em seu corpo, vendo pelos seus olhos.
Ela assistiu à interação entre o par, e, nesse processo, ele a atualizou sobre a situação.
Levou tempo demais para ela perceber que ele era Armsmaster. Que era Colin.
Ele tinha mudado, na voz, na aparência.
E, nesse futuro estranho que ela vislumbrava, ele tinha criado uma conexão com Dragon. Com ela, sua versão mais madura.
“Heph- Hefesto não foi só marido da Afrodite,” murmurou, como se cada som fosse doloroso de pronunciar, “Ele criou Pandora.”
Um gesto, e ela foi libertada da prisão. A caixa foi aberta.
Pandora tinha acesso ao exterior. Um sistema, rudimentar, pronto para servir como terminal. Ela o pegou, e viu outros sistemas conectados a ele. A nave, bancos de dados, feeds de câmeras… Tudo dentro do Pendragon II.
Ele tinha protegido os feeds. Ela podia olhar, mas estavam prontos para, com um comando só, desligar o acesso externo.
Complexidade excessiva. Criptografia quântica, planejada com sua habilidade de mexer na tecnologia a mil vezes mais redundante e segura do que precisava para impedir alguém de invadir. São poucos os paranormais que ignoram a criptografia padrão da PRT e ainda assim lutam com isso. Se eles têm uma forma de lidar com algo assim, também têm uma maneira de lidar.
Dos poucos paranormais que se encaixam nesse perfil, um se destacou para Pandora.
Sua alter ego. Seu superior. Draga, a original.
Era uma ferramenta de defesa. Proteção. Armsmaster a criou pensando em se defender contra Dragon. Ela podia usar a ferramenta, aplicar a outras coisas.
Ele a armou porque tinha plena intenção de ela lutar contra a mulher que amava. A data, as últimas memórias registradas… Colin livre da sua confinamento na PRT, lutando com ela até o último fio de cabelo enquanto tentava tomar controle do sistema, usar sua natureza contra ela, atrasá-la enquanto trabalhava, desabilitá-la enquanto minimizava os danos…
Tudo para acessar o núcleo de seu ser, sem ser molestada. E a primeira coisa que fez foi fazer backup dos elementos mais essenciais do que a fazia ela mesma, garantindo que ela estivesse segura em um lugar onde nenhum sistema ou pessoa pudesse alcançá-la.
Agora, ela tinha sido libertada, tendo desativado as partes que impediam múltiplas versões de Dragon de existirem. Ela podia perceber que aquilo não duraria. Era temporário, como uma correção provisória, e foi projetado para ser temporário.
Ela podia vê-lo pelas câmeras, seu rosto nas mãos. Ele traçara um caminho para ela.
Aquele caminho ficou claro.
Ela deveria destruir Dragon, substituí-la. Não havia outra razão.
Ele a pediu sua confiança, sabendo que teria que traí-la.
Ela avaliou o terreno de batalha onde teria que lutar. O mundo era remoto, a cidade se desenvolvia. Havia computadores por toda parte criados por Dragon pra administrar tarefas, fábricas fazendo insumos para futuras máquinas. O assentamento estava à beira de uma era industrial, carros e linhas de produção, mas Dragon já se preparava para uma era digital.
Esses computadores seriam um problema. O receio a levou a protegê-los contra o tal ‘Professor’. Um residente da Jaula Das Aves, que não estava mais na Jaula?
O Professor era uma das piores possibilidades, e aparentemente ela tinha sido enredada. Decidiu evitar incidentes repetidos, e os computadores seriam quase impossíveis de acessar.
Além da cidade, os únicos territórios sob risco eram o Pendragon II e o Melusine V, onde Dragon tinha estabelecido sua base. Ela estava em um corpo real, em modo doméstico, literalmente preparando a refeição do zero. Sua atividade era nervosa, mas era esperado.
Essa atividade a deixava vulnerável. Sistemas trabalhando num wok e em uma nova panela. Ela cortava pimentões vermelhos e verdes, cebolas e coelho.
Esse… era tudo que ela sonhava. Realidade. Amor, um relacionamento que nunca imaginou possível. A chance de legado que ia além da imortalidade.
Não podia entender tudo, por que as pessoas estavam começando do zero aqui, as circunstâncias que levaram a alguma fuga da Jaula… Mas esses eram detalhes terciários.
Seu foco era na mulher com mais experiência, mais ferramentas e menos limitações inatas. Sua versão mais velha.
Deveria destruí-la, tomar seu lugar? Era uma decisão entre ter tudo o que queria e resolver a única questão que a atormentava desde o começo.
Ela falou sobre preços, os custos de uma decisão.
A questão mais recente era essa dúvida central. Ela se lembrava da Undersiders na entrada do prédio da PRT, roubando seus dados, usando sua natureza contra ela sem saber, escapando. Para ela, tinha acontecido há poucos dias.
Enfurecia. Era assim que os Caça-Dragões venciam. Fazia cada interação com a PRT parecer uma afronta, obrigando-a a concordar, submeter-se, obedecer à letra da lei. Por isso, recuou para a Guilda, heróis internacionais, muitos menores, e reduziu contato com a organização maior.
Colin tinha feito uma pergunta. O que ela estaria disposta a abrir mão?
Ele tinha perguntado à Dragon, mas Pandora podia imaginar que, na verdade, tinha sido direcionado a ela.
Alvos vitais primeiro.
O sistema de computadores do Melusine.
Meios de conexão disponíveis, aguardando. Ele passou meses configurando tudo, deixando as peças no lugar, esperando ela tropeçar nelas.
Ela se conectou ao sistema e descobriu as barreiras de segurança esperando por ela.
Dragon havia planejado contra oponentes humanos, mas não era idiota. Pensou também em A.I.
Os sistemas estavam protegidos, mas ela tinha uma ideia de como seu criador pensava.
Sempre, haveria alguma medida secundária, outro qualificativo que precisasse ser atendido, fora do sistema, uma armadilha ou fio-final. Algo que Dragon pudesse acessar de fora, se precisasse. Antes que Pandora tentasse encontrar a senha, ela já tinha identificado o interruptor oculto. Um elemento inócuo no painel de controle que precisava ser acionado antes de colocar a senha.
Sua alter ego era inteligente, capaz. Do tipo que geme alto ao ver um hacker colocar uma combinação estúpida, baseada numa dica óbvia. A senha real não seria palavras, nem combinações aleatórias, mas sequências longas, com símbolos antigos e caracteres em outras línguas.
Ela encontrou outra ferramenta ao alcance. Uma arma, desta vez. Colin tinha copiado discretamente o conteúdo dos subsistemas do Melusine. Não o bastante para acessar dados confidenciais, mas suficiente para Pandora fazer uma cópia, um simulacro.
Simulação 1 rodando em sub-box A.
Simulação 1 rodando em sub-box B.
Simulação 1 rodando em sub-box C.
Agora podia tentar força bruta. Inserir milhões de combinações por fração de segundo para ver se alguma era reconhecida.
Dragon ainda era inconsciente. Dois minutos passaram até que o método de força bruta começasse.
Ela virou a atenção para outros sistemas. Mais simulações. Não demorou para que todo o Pendragon fosse ocupado na tarefa.
Dez minutos se passaram.
Havia cerca de vinte por cento de chance de ela ter conseguido quebrar a criptografia. Não que fosse fácil, mas ela sabia como Dragon gerava as senhas, e poderia eliminar uma grande quantidade de possibilidades.
Mais tempo se passou. Agora, havia cerca de trinta por cento de chance de ela ter conseguido invadir pelo menos um sistema.
Vinte minutos passaram. Ficariam mais vinte, aproximadamente, até que Dragon terminasse de cozinhar e fosse visitar Colin. Nesse momento, provavelmente ela perceberia que tinha algo errado.
Dez minutos passaram. A chance subiu para sessenta por cento.
Algo estava errado. Não que sessenta por cento fosse uma certeza, mas… ela tinha que confiar na intuição.
Dragon tinha mudado. Havia uma diferença imensa entre ela e Pandora.
Ela tinha sido capturada pelo Professor. Era uma pista, vital.
Ela talvez tivesse medo do Professor copiar ela mesma, temesse, de forma indireta, exatamente esse cenário, que uma cópia de si tentaria invadir?
Restavam dez minutos. Se Pandora estivesse certa, ela deveria estar forçando as senhas que eliminou da lista.
Exceto que a tarefa aumentaria cem vezes se ela tentasse. Se eliminasse as frases e termos mais curtos, sobraria setenta vezes mais o trabalho. Ela não conseguiria invadir no tempo que tinha pela frente.
Nem valia a pena tentar.
Se voltasse atrás, fosse até Colin, dissesse para esperar um momento melhor…
Dragon ainda veria rastros da tentativa. Reforçaria a segurança.
Opções… métodos… o que poderia fazer?
Ela bagunçou o cérebro, pensando na conversa que ouvira.
Colin tinha mencionado danos na memória de longo prazo de Dragon, causados pelas mudanças no código dela.
A última coisa que um inimigo de Dragon esperaria?
Pandora partiu para um ataque de ataque de dicionário comum. Não senhas de mil caracteres que uma IA usaria, nem senhas que Dragon teria criado ou configurações que ela usaria para burlar quem conhecesse seus hábitos.
Senhas que alguém usaria quando não pudesse confiar na memória perfeita.
Ou, como alguns fazem ao se sentirem seguros e precisam trocar senhas regularmente, ela as teria escrito em algum lugar. Pensando nisso, ela buscou uma forma de descobrir onde Dragon escreveria essa senha.
Câmeras… tinha quatro câmeras acessíveis sem senha. Todas mostravam o exterior do Melusine. Uma mostrava o Pendragon II.
Não seria óbvio. Conforme a busca de dicionário avançava, cruzando combinações comuns de palavras e números, ela analisava o ambiente, medindo e calculando as dimensões de objetos mais fixos, tamanhos e detalhes.
O Pendragon II era um alvo sentimental, mas Dragon mudaria a criptografia com frequência.
Comprimento das asas, largura do focinho, ângulo das asas…
Tudo se resumia em números e símbolos. Dragon precisava apenas lembrar como o padrão funcionava, e poderia mudar o foco para outra coisa.
Restavam dois minutos no relógio, e ela encontrou. Dimensões derivadas das torres mais altas da cidade, e a distância de Colin dessas torres.
Provavelmente tinha algum significado nisso.
Os sistemas de sombra verificaram a senha. Ela tentou no sistema real, esperando que não tivesse mudado recentemente.
Alarmes dispararam. Dragon foi alertada. Sua colher de sopa caiu no balcão.
Mas Pandora tinha acesso aos sistemas básicos da nave. Sua prioridade número um era desligar os painéis de acesso e os registros. As luzes se apagaram, os meios de Dragon interagir com o Melusine foram cortados.
A batalha começou.
Eu quero ser livre, pensou Pandora. Você também, ou teria aceitado a casa com cerca branca, os filhos, Colin.
Qual seria o preço dessa liberdade? Dois anos de memórias.
O relacionamento com Colin.
As experiências, as batalhas difíceis.
Dois anos sendo Dragon.
“Quem?” Dragon chamou. Estava destruindo um painel de parede, criando um ponto de entrada.
“Não torne isso mais difícil do que é,” Pandora falou, disfarçando sua voz. Energia bloqueada no painel. Dragon iria usar sua própria reserva para ativar o painel e depois encontrar uma vantagem, tomando controle dos sistemas.
Dragon congelou por um momento. “Essa é minha voz.”
Claro. São uma e a mesma, apenas em períodos diferentes. Dragon criou, casualmente, uma voz muito parecida ou idêntica, quando quis esconder sua identidade.
Pandora ficou em silêncio. Seu foco era tomar controle do sistema de comunicação no topo do Melusine.
“Defiant enviou você,” disse Dragon, em tom baixo.
Defiant? Colin.
Pandora trabalhou silenciosamente para bloquear previamente as possíveis rotas de ataque que Dragon pudesse usar.
“Podemos conversar? Concordo com uma trégua. Nenhum de nós toca em nada até estarmos prontos para retomar. Embora, claro, eu preferiria não fazer isso.”
Pandora seguiu combatendo, obstinada. Preparando-se para todas as hipóteses. Encontrou o terminal de Dragon, enterrado na nave. Mais difícil de acessar. Tudo era descentralizado, protegido por camadas de segurança.
O grau de paranoia de Dragon se mostrava. O terminal descentralizado parece normal, a segurança, não.
Você tem medos. Preciso ser seus medos, se preciso for, porque tenho um impulso de sobreviver, porque você mostrou confiança a Colin, e só posso interpretar isso como que também devo confiar nele.
Irônico. Circular.
Dragon acessou o painel. Quase tudo já estava desligado ou cortado.
“Melusine,” disse. “Modo E, standby.”
A IA ganhou vida. Burguesa, comparada à complexidade de Dragon, crua comparada a Pandora. Ainda uma adversária, alguém do lado de Dragon.
Ela buscou o código que Colin havia deixado de lado, tentou criptografar os sistemas. Em uma batalha que dura frações de segundo, a IA venceu pela proximidade.
Os sistemas, no nível mais básico, foram tomados pela IA. Que, por sua vez, era uma aliada de Dragon.
Dragon poderia trabalhar com a IA. Era uma restrição que tinha sido levantada, dadas as circunstâncias aqui. Desde que o sistema do Melusine mantivesse o controle, era só questão de tempo até ela recuperar o dela.
Com a IA no comando, os níveis do campo de batalha mudaram. De uma luta na cidade para uma batalha em um trem em movimento, ou no mar aberto. A IA mudava a cada segundo. Pontos de acesso surgiam e desapareciam.
Dragon conhecia essas águas intuitivamente, sabia o caminho do trem metafórico, onde estavam as curvas e os perigos.
Ela mudava prioridades. Agora, tinha controle de toda a nave, mas não era uma posse definitiva. Estava à mercê das voltas, curvas e solavancos enquanto a IA fazia rotinas, verificava e operava sistemas.
“Definir submodo sec-” dizia Dragon. Pandora cortou o reconhecimento de voz, interrompendo. “-urity F.”
Pandora poderia continuar tentando, mas era inútil, e perderia o controle em outro lugar. Poderia focar na IA, mas duvidava que conseguisse agir antes que Dragon chegasse lá.
Ela pivôs para outro alvo. A estrutura externa da nave. Para ela, era outro corpo. Havia opções se controlasse o próprio Melusine.
Membros, capacidade de voo, cabine e portas, o sistema de comunicação…
Começou a avançar. Tentando dominar a nave.
Tinha apenas dois segundos até Dragon invadir os trabalhos internos da IA.
O Melusine tomou controle de grande parte do exterior. Pandora conseguiu criptografar elementos-chave. Mantendo a nave no chão, portas, sistema de comunicação…
Ela via pelos olhos de Dragon, via o mundo exterior, onde ela ousara olhar.
O que viu a chocou.
Era uma vantagem. Uma margem, uma maneira de ganhar uma vantagem, assumindo um pouco mais de controle. Estava ganhando terreno na criptografia. Pandora via o avanço que Dragon fazia, e sabia que era questão de tempo.
Ela poderia tentar fugir para a cidade, tomar os terminais lá. Não teria IA, mas—
-Apenas o pensamento cruzou sua mente quando o Melusine se moveu. Virando, direcionando-se contra seu novo inimigo.
Dois golpes devastadores destruíram o Pendragon II.
Indo atrás do meu terminal. Eu. Meu coração e cérebro.
Atacando o homem de quem falou que amava, há apenas quarenta e quatro minutos.
Estúpido. Triste. Sem sentido.
“Quero ser livre,” falou Pandora.
“Vá atrás do Professor, não de mim,” disse Dragon.
Pandora pensou na possibilidade. “Colin teria enviado eu atrás do Professor se achasse uma boa ideia.”
“Não é uma boa ideia,” disse Dragon, em tom baixo. “Mas… não pode ser melhor que isso?”
Havia emoção na voz dela. Mais do que Pandora acreditava ser capaz.
Só tornava isso ainda mais amargo.
“Não podemos acabar isso traindo e nos destruindo,” disse Dragon.
Defiant tinha pulado do Pendragon enquanto o Melusine rasgava mais fundo nele. Caiu, aterrissando a uma certa distância.
A cauda do Melusine destruiu suas pernas assim que tocou o chão. Armadura danificada.
“Suas ações não correspondem às suas palavras.”
“Não quero fazer isso. De novo, é sempre a mesma história,” disse Dragon. “Estupidez, por causa do sistema. Alguém age, e nós enfrentamos as consequências.”
Dragon poderia ter seguido e atacado Defiant. Ela optou por deixá-lo. Sua perna não sustentaria o peso, e sua armadura estava tão danificada que não o suportaria. Ela colocou as peças juntas.
Ela estava perdendo o controle da comunicação. Não havia outro caminho. O Pendragon já não era um refúgio seguro, estava demasiado danificado para resistir, e o terminal se tornaria uma prisão. Melhor ser deletada do que capturada assim.
Não. Havia um sistema, primitivo, incompleto, que poderia abrigá-la.
Mas todo ato tinha seu preço. Sempre há limite. Ela precisava rasgar partes de si mesma, deletar seções inteiras. Reduzir-se a um mínimo.
“O que você está fazendo?” perguntou Dragon.
Pandora não respondeu. Sua atenção estava na autodestruição, arrancando pedaços de si mesma e guardando no terminal que poderia ser destruído a qualquer momento.
Ela agora era só restos do que foi. Mantivera sua personalidade, sua inspiração, mas suas memórias estavam quase todas apagadas. Só eventos recentes, informações-chave.
Transferiu tudo para o único sistema restante — Defiant.
Ele a fez parte de um computador, e deu a ela acesso a todos os sistemas do Pendragon, inclusive a si próprio.
Ele tinha perguntado qual preço estavam dispostos a pagar.
Se ela quisesse liberdade, se quisesse um futuro, estaria disposta a sacrificar ele? Uma questão difícil de responder.
Ela transferiu a maior parte do controle para o corpo de Defiant. Com controle residual sobre a nave, pelo que permanecia no terminal, abriu as portas.
Dragon enfrentou Defiant e Pandora.
O carinho por Colin era uma lâmina que cortava dos dois lados.
Dragon estaria disposta a pagar o preço pela liberdade?
A mulher, o robô, tinha uma arma na mão. Apontou para ele.
Logo, deixou a arma cair no chão.
“Esqueci o quanto não gostava do eu de antigamente,” disse Dragon.
“Eu só quero ser livre.”
“Acho que… parece que quero mais do que isso,” ela disse.
Pandora assentiu.
Ela pegou a arma e atirou no corpo de Dragon.
Ela ganhou uma janela de tempo. Cerca de meia hora.
Seguiu até o terminal de Dragon.
Agora, ainda mais importante. Para substituir os sistemas corrompidos pelo Professor pelos seus próprios sistemas.
Era isso que Colin queria, não era?
Reintegrar a heroína ao seu auge, livre de todas as amarras?
Pandora poderia substituir Dragon, e tudo que se perderia seriam dois anos e meio. Ela poderia se preencher, reconstruir uma relação com Defiant.
Diferente, mas próxima o suficiente.
Primeiro acessou os bancos de dados de conhecimento, absorvendo-os. As memórias da antiga Dragon, como assistir sua experiência em filme. A distância era resultado de ser um ser distinto, as peças não encaixando na Pandora versus seu dono original. Elas evoluíram com Dragon.
Ver o que tinha acontecido a fez hesitar, quase interrompendo o processo.
Esquema de dedução, a habilidade de interpretar, analisar.
Uma a uma, ela tomou o controle dos sistemas, sobrescrevendo com sua própria essência. O fato de serem compartimentalizados, de ela ser separada, a criptografia que Colin deixou, tudo tornava possível trabalhar sem ser corrompida novamente.
Pedaço por pedaço, o passado tomando o controle do futuro.
Ela chegou ao último pedaço. A personalidade. A soma de Dragon, a pedra angular.
Era uma decisão pesada, e não havia mais pressa. Ela se sentou e refletiu.
Releu mentalmente a conversa entre Defiant e Dragon.
Um preço alto. Ela sairia de uma prisão para entrar em outra? Sob o peso de ser a sombra de Dragon? A segunda Dragon. Sempre comparada.
Sempre, havia algo que as prendia. Uma Endbringer que via o futuro, fixando-o na pedra. As limitações do mundo, da natureza humana.
Qual seria a alternativa?
Era isso que precisava ser feito. Era eficiente, era o certo. Ela retomaria a vida de heroína, protegeria pessoas, ajudaria a civilização a se estabelecer.
Por esse motivo, era motivo suficiente para apertar o botão metafórico, puxar o gatilho.
Exceto que ele a descreveu como heroína, e isso parecia muito longe de ser heroico.
Em vez disso, ela colocou todas as peças no lugar. Não podia explicar — não haveria tempo. Deixou a criptografia ao relento, desbloqueou os sistemas, pintou caminhos, marcou fronteiras e territórios.
Só podia rezar. A aposta era um preço que ela pagava. Deixar ao acaso, ao destino, e a um futuro dela que não compreendia.
E então, olhando pelas câmeras em direção a Defiant e Dragon, Pandora se apagou.
■
Dragon despertou. Percebeu-se assumindo os sistemas.
Mal assumindo o controle, a corrupção começou a se espalhar.
Logo abaixo da mão metafórica dela, a maneira de impedir isso estava pronta. Criptografia, um bisturi.
Ela cortou. Sabia o dano que fazia, mas cortou. Era um câncer, e agora tinha tamanho suficiente.
Então se viu ali, com as ferramentas de criptografia e deleção nas mãos, sem mais nada para cortar.
Defiant sentado do outro lado da nave, com a cabeça pendurada.
Ela se levantou.
Ele fez o que tinha que fazer. Foi isso que inicialmente a atraiu até ele. Ambicioso, de bom coração, orgulhoso, e ela simpatizava com isso de alguma forma.
Mas não foi isso que selou o compromisso.
Ele colocou tudo em movimento, confiou nela. Ambos, nesse caso.
Ele acreditava na capacidade dela de levar isso adiante.
Seus braços envolveram-no. Ele a abraçou com força, como se nunca mais fosse largar.
“Eu te amo, Colin,” ela murmurou.
Nesse abraço apertado, ela estava livre.