
Capítulo 49
Verme (Parahumanos #1)
Embora a jogada de poder da Bitch fosse eficaz, ela não ajudou muito a aliviar a tensão entre as facções que compunham nosso grupo. Não foi só o Kaiser que ficou assustado e acabou sendo respingado de sangue. No pior cenário, se uma briga explodisse no grupo, eu tinha medo de que ressentimentos daquela situação pudessem colocar os outros contra nós.
Decidi tentar solucionar isso. Os Viajantes pareciam ser o único grupo presente onde não havia algum tipo de confusão já contaminando o ambiente.
“Ei,” diminui meu ritmo para poder falar com a garota dos Viajantes, “Qual é o seu nome?”
“Meu nome de código?”
“Sim.”
“SunDancer.”
“Eu me uso como Skitter. Não consegui decidir um nome, então a mídia meio que escolheu um pra mim.”
“Você é uma das Outras, né?”
“Undersiders. Sou nova na equipe, na verdade, mas eles são de boa.”
“Hum hum.” Ela olhou na direção do Bitch.
“Não é tão pior quanto parece,” sorri, mesmo ela não podendo me ver sorrindo, com a máscara cobrindo minha boca, mas espero que ela tenha conseguido ouvir o humor na minha voz. “Como é a vida entre os Viajantes?”
Ela pareceu surpresa com a pergunta. Demorou alguns segundos para decidir como responder. “Intensa. Violenta. Solitária.”
A resposta me surpreendeu. Ela escolheu a palavra 'intensa' ao invés de 'emocionante', mas isso não foi a parte mais estranha da resposta dela. “Solitária? Não acharia que fosse assim, tendo companhia de colegas de equipe.”
Ela deu de ombros. “Tem coisas rolando que fazem ficar menos divertido do que deveria. Não vou explicar, nem me pergunte.”
Levantei as mãos, com as palmas para cima, para pará-la. “Não ia perguntar. Só tava curioso pra saber como é a vida de outros times, já que sou meio novo nisso.”
Ela relaxou um pouco. “Não é só… acho que não dá pra usar uma palavra melhor que ‘drama’… mas drama parece um termo pequeno demais. Enfim. Não é o que está acontecendo de mais sério, é que estamos sempre em movimento, raramente ficamos mais de uma semana no mesmo lugar, sabe?”
“Eu não sei,” admiti. Falei uma mentirinha, só pra garantir. “Me mudei duas vezes na infância, mas era muito novo para lembrar. Na maior parte, cresci aqui.”
“Cansa, ter que—” ela parou de falar quando, de repente, fui empurrado de lado. A ponta do rabo do Newter pressionou contra o centro do meu peito e me empurrou para trás, contra o capô de um carro antigo e deteriorado.
“Ei,” resmunguei, mas ele balançou a cabeça, colocou um dedo nos lábios. Seus olhos azuis fixaram nos meus. Eram olhos estranhos. Sem brancos, apenas íris azul-acinzentadas que se estendiam de canto a canto, com pupilas retangulares e horizontais.
Olhei para os outros. Todos estavam se movendo para se esconder. Kaiser, Fenja e Menja tinham se escondido em um beco. A Bitch com seus cães desaparecia por uma esquina afastada do mesmo prédio, fazendo apenas o som de arranhado de garras no concreto.
À nossa frente, um trio de pessoas nas cores do ABB atravessava a rua. Um rapaz e uma garota que pareciam ter sido membros de gangue antes da intensa campanha de recrutamento da Bakuda conversavam. Um adolescente, da minha idade, vinha logo atrás, parecendo nervoso e exausto demais para não ser um recruta recente. Todos armados. Um facão pendurado na mão do brutamontes, enquanto a garota brincava com uma pistola. O garoto assustado tinha um taco de baseball com pregos batidos nele. As pessoas realmente faziam isso? Com o taco cheio de pregos?
Logo atrás deles, estava o prédio que devia ser nosso alvo. Era um armazém, cinza sujo, com as letras ‘ABB’ sprayadas na porta de carga, em vermelho e verde, em um estilo elaborado.
Quando a patrulha desapareceu, Newter falou: “Eles têm patrulhas e marcaram o prédio. Esse vai ser nosso alvo hoje.” Ele conferiu o relógio. “Faltam dois minutos para podermos partir.”
“Minhas garotas e eu vamos contornar,” Kaiser declarou do abrigo do beco, “Atacar de outra direção.”
“Ei, não,” eu respondi, “Esse não é o combinado. Estamos em grupos assim por uma razão, e essa razão se vai se a gente se dividir assim.”
“Eu não pedi permissão,” Kaiser respondeu, com a voz fria. Sem esperar por resposta, virou as costas e foi embora, Fenja e Menja o seguindo.
“Vamos impedir eles?” perguntei.
“Posso alcançá-los,” disse a Bitch enquanto ela voltava com o Brutus para o nosso grupo.
Newter balançou a cabeça, com os lábios finos formando uma linha que só acentuava sua aparência estranha. “Não vale a pena, é perigoso brigar entre nós no território do inimigo. E, de qualquer forma, não temos tempo.”
“Bitch, consegue ligar para o Grue e a Tattletale? Avisá-los,” perguntei. “Eles podem tomar providências se for preciso.”
Ela assentiu e puxou o celular.
Enquanto a Bitch fazia a ligação, Newter chamou os outros para se reunir. “Vamos falar do plano de ataque. Skitter, Bitch, vocês dois têm mais experiência com esses caras, então começam.”
Olhei para a Bitch. Ela estava ocupada na ligação, e ela tinha ficado sem fazer nada na nossa última luta contra o ABB, o que deixou ela meio por fora em relação à Bakuda. A responsabilidade era minha.
Discretamente, limpei a garganta e falei: “Bakuda gosta de armadilhar, e se esse lugar é importante o suficiente para patrulhar, também é importante ter armadilhas. Deixe comigo, posso mandar meus insetos primeiro. Assim, faço o reconhecimento e os insetos também confundem e distraem quem estiver lá dentro, o que deve facilitar pra vocês.”
Newter concordou com a cabeça, “Ok. Essa é a primeira parte. Bitch, consegue e seus cães atacarem o andar de baixo? Eu vou pela janela do segundo andar.”
A Bitch apenas assentiu de forma seca.
“Os insetos não vão morder ela?” perguntou Newter.
“Não,” respondi, “E também não vão te morder.”
“Eles não conseguiriam se tentassem,” disse Newter sorrindo. Engraçado, se ignorar a aparência estranha — cabelo azul, olhos distorcidos, pele laranja e o rabo — ele era um cara bastante atraente.
“Sundancer, o que você consegue fazer?” perguntou Newter.
“Acho que posso dizer que sou tipo artilharia,” respondeu Sundancer, “Mas tenho o mesmo problema do Ballistic — ou melhor, do meu outro colega de equipe. Talvez eu não consiga usar meu poder sem machucar muita gente de forma grave.”
“Então fica com o Labyrinth. Vocês duas fiquem prontas pra cobrir nossa retirada ou avançar se precisarmos,” declarou Newter.
“Parece que você sabe o que está fazendo,” comentei.
“Talvez a Faultline tenha me influenciado um pouco,” ele sorriu. Depois, olhou para o relógio. “Vinte segundos.”
Newter olhou para os dois soldados que a Coil enviou, “Vocês, podem-”
“Vamos ficar num ponto do telhado aqui,” respondeu o mais baixinho, apontando para o duplex de dois andares ao nosso lado. “Vamos apoiá-los com fogo de cobertura.”
“Hum, bom. Tentem não matar ninguém,” disse Newter, conferindo o relógio novamente. “Cinco segundos. Skitter? Começa você?”
Convidei todos os insetos que tinha reunido, menos os que estavam sob minha roupa. Direcionei-os para o lado do prédio em que estávamos de frente.
A nuvem de insetos invadiu pelos janelas abertas ou quebradas e pela única porta aberta do lado do prédio, entrando pelos corredores. Certifiquei-me de distribuí-los bem para cobrir toda a superfície, procurando por qualquer coisa fora do normal ou incomum. Havia bastante gente lá dentro, o que não me surpreendeu tanto, mas meus insetos estavam entrando em contato com pele nua. Percebi que as pessoas reunidas na área aberta do andar de baixo do armazém estavam quase nuas. Só de underwear. Tão inesperado que me tirou do foco.
Balancei a cabeça. Não podia me deixar distrair. Bakuda provavelmente usava metais e plásticos, e, para os sentidos superfinos dos insetos, aquilo tinha uma textura totalmente diferente das paredes. Tentei filtrar as coisas comuns e focar só no plástico ou metal. Poucos metros da entrada, notei duas saliências em forma de cúpula de cada lado da escada que levava ao segundo andar, feitas de metal e plástico.
“Tem algo ali,” disse. “Me dá um segundo.”
Peguei uma estratégia do livro do Grue e juntei um grupo de insetos formando uma massa densa e meio humanoide. Levei essa coleção de insetos até as cúpulas, passando pelas portas até o local onde elas estavam.
A explosão quebrou uma boa parte da parede externa do prédio mais próximo de nós. As pessoas que estavam lá dentro, já nervosas com a chegada dos insetos, começaram a se dispersar, gritando e correndo para as saídas.
“Que porra!” os olhos do Newter se arregalaram.
“Detectores de movimento, acho,” eu disse, “Ou ativados por proximidade. Meus insetos normalmente não os acionariam, tive que enganá-los.”
O chão era muito duro para minas terrestres, então concentrei os insetos restantes em varrer o resto do prédio, percorrendo as superfícies e procurando mais problemas. Encontrei mais dois, verifiquei se ninguém estava perto, e usei o mesmo método para detoná-los. As chamas, fumaça e estilhaços eram visíveis de onde estamos agachados.
“Vinte ou trinta pessoas no andar de baixo, desarmadas e quase roupas, dez no escritório do andar de cima, armadas,” disse, “O caminho está livre de armadilhas na medida do possível. Vão!”
A Bitch partiu pra cima, com o Newter logo atrás. Ele correu ou engatinhou, com o rabo batendo atrás, provavelmente para ajudar a manter o equilíbrio.
Enquanto ela fazia seus cães entrarem e passarem pela porta de carga metálica fechada, o Newter interceptou os primeiros que saíram pela porta de emergência do lado do prédio. Ele pulou para fechar lacunas de cerca de quinze metros, tão rápido quanto eu conseguiria dar um soco, passando de uma pessoa a outra, abatendo cada uma numa fração de segundo. Muitas mulheres naquele grupo — e eu podia confirmar com meus insetos o que eles tinham me contado— nove de cada dez, uma mistura de homens e mulheres asiáticos, só estavam de underwear. Tráfico de escravos? Prostituição? Algo mais sombrio? Senti a pele arrepiar.
Quando ele subiu pelo lado do prédio e entrou pela janela aberta numa velocidade de lâmina de óleo, senti os insetos dele passando por mim. Cada inseto que tocava nele caía da parede ou do céu, caindo no chão, vivo mas atordoado.
Eu tinha lido sobre ele na internet. As informações eram escassas, já que a equipe da Faultline não costumava ser o tipo de vilão que aparece nos jornais ou na TV, e os detalhes concretos eram difíceis de separar das especulações. Sei que seu fluido corporal é um potente alucinógeno. Até o suor dele na pele, aparentemente, era suficiente para mandar alguém para a terra do nunca, levando poucos segundos para ser absorvido pela pele.
Foquei minha atenção em acompanhar o que acontecia dentro do prédio. O Newter estava no segundo andar, provavelmente se desviando de tiros enquanto se aproximava do grupo na sala de cima. Concentrei meus insetos ao redor deles, mordendo mãos e rostos. Os mandei entrar no nariz, ouvido e boca para atrapalhar a mira de quem pudesse atirar no Newter.
Kaiser, Fenja e Menja atacavam do lado oposto, do lado de fora. Eles tinham chamado a atenção da maioria dos agentes armados e patrulhas, deixando a Bitch e seus cães presos no meio de uma dúzia ou duas de pessoas desarmadas, nuas e desesperadas. Pelo que meus insetos percebiam, ela dava muitas ordens aos cães.
Percebi, tardiamente, que alguém havia bloqueado o caminho que a Bitch poderia ter usado para chegar até a luta. As bordas da barreira eram finas e afiadas. lâminas? Isso queria dizer que o Kaiser tinha sido o responsável. Foi intencional ou ele estava cortando as rotas de fuga do ABB?
Não consegui perceber o que o Newter fazia, já que meus insetos não podiam tocá-lo, mas sentia o movimento do ar que vinha dele, podia rastrear a posição dos insetos que ele cruzava antes de serem derrubados pelos efeitos das drogas, e sabia que os homens estavam desmaiando enquanto ele se movia no meio deles, derrubando cada um com um toque. Alguns até desabaram sem ele tocá-los. Será que era alguma outra coisa? Sangue? Babo?
Restava apenas uma pessoa de pé. Ele e o Newter se cercaram. Meus insetos não faziam efeito nele, já que ele usava um lenço ou algo assim na cara.
Não, espere, tinha uma segunda pessoa, bem atrás do Newter. Como não tinha percebido?
Depois, a primeira pessoa desapareceu, e eu soube o que era.
Puxei meu celular, entrei nos contatos e disquei automaticamente para a Bitch.
“Vamos, atende, atende,” sussurrei para o telefone.
Depois, alguns insetos meus ficaram atordoados e outros mais foram esmagados enquanto o Newter caía por cima deles. Dirigi a maioria dos insetos dentro do prédio para distraí-lo, tentando dar tempo suficiente para ele escapar. Não estava funcionando — ele não se movia.
“Foda-se! Atende, Bitch!”
“O que aconteceu?” perguntou Sundancer.
“O Newter foi ferido.”
A Labyrinth colocou a mão no meu ombro, quase me fazendo virar de frente para ela. Ela não falou uma palavra, sua expressão mal mudou por trás do pano da máscara, mas foi a reação mais próxima de emoção que já vi nela.
Eu ia dizer algo, mas, nesse exato momento, a Bitch atendeu.
“Bitch! Segundo andar, o Newter foi ferido, o Oni Lee está dentro do prédio.”