Verme (Parahumanos #1)

Capítulo 45

Verme (Parahumanos #1)

Coil olhou ao redor da sala e declarou: “Então, essa foi a principal pauta da nossa reunião de hoje. Mais alguma coisa antes de cada um seguir seu caminho? Propostas, anúncios, queixas?”

“Tenho uma reclamação,” falou um homem ao lado da sala. As atenções se voltaram para o grupo de Kaiser. Hookwolf.

Ele usava uma máscara que era pouco mais que uma chapa de metal cortada e moldada para assemelhar-se às feições de um lobo, presa à cabeça com tiras de couro preto. Tinha uma corrente enfiada pelos alcinhas da calça jeans, com um cinto de metal pesado, cuja fivela trazia a imagem de um lobo sobreposto a uma suástica – a mesma que tinha tatuado em um dos bíceps. O braço oposto simplesmente tinha ‘E88’ escrito nele. Fora da máscara e da fivela, dificilmente poderia ser considerado um traje. Estava sem camisa, sem sapatos e peludo. Seus cabelos loiros eram longos e oleosos, e ele tinha pelos espessos no peito, no abdômen e nos braços. Espécies de lanças parecidas com arpões e metais que se curvavam como anzóis radiavam de seus ombros, cotovelos e joelhos, todos cheios de agulhas ou serrilhados sinistramente afiadas.

Ninguém, até então, tinha escapado da Gaiola, o nome dado à prisão de supervilões na Colúmbia Britânica. Hookwolf, porém, escapou por pelo menos duas ocasiões enquanto era transportado para lá. Ele era assassino e não tinha problema em matar pessoas que não se enquadrassem no ideal ariano.

Ele virou para olhar nossa mesa, com olhos muito pálidos visíveis pelas fendas de sua máscara de metal: “Minha reclamação é com ela.”

“Qual é o problema?” A voz de Grue era calma, mas parecia que ele tinha criado um pouco mais de escuridão ao seu redor do que de costume, deixando-se parecer um pouco maior. Eu me perguntei se ele tinha consciência disso.

“A doida, Hellhound, ela—”

“Canhota”, Bitch o interrompeu, “Só os heróis frouxos chamam ela de Hellhound. É Bitch.”

“Tanto faz,” Hookwolf rosnou, “Você atacou meu negócio. Mandou seu maldito cachorro atacar meus clientes. Sorte que eu não tava lá, vadia.”

Grue olhou de relance para Bitch, depois falou com Hookwolf: “Esse é o tipo de risco que você assume ao fazer negócios aqui em Brockton Bay. As capas podem e vão atrapalhar, heróis ou vilões.”

Hookwolf o encarou, “É questão de respeito. Você quer mexer com meu negócio e a gente não tá em guerra? Me avisa se tiver algum problema, primeiro. Deixo você decidir se quero fechar ou não.”

“Quer dizer, te avisar que estou chegando,” cuspiu Bitch, “Isso é a coisa mais estúpida que já ouvi na vida. Só pra você saber, mudar de bairro não resolve. Se você abrir outra quadrilha de lutas de cães, eu vou visitá-la também.”

Ah, era isso que ela tinha feito. Olhei para Tattletale e depois para Grue. Comecei a ter a impressão de que nenhum dos dois tinha percebido.

Kaiser falou: “Isso é uma declaração de guerra, Undersiders? A gente acabou de concordar com uma trégua, se é que você se lembra.” Ele estava completamente calmo, em contraste com Hookwolf, que transbordava de uma raiva quase contida, a ponto de eu imaginar ele pulando pela sala e atacando a gente se alguém derrubasse um copo.

Grue balançou a cabeça. Acho que sim. Não consegui ter certeza, pois a escuridão o envolvia e ele estava de costas para nós. Respondeu: “Não tô interessado em guerra, mas não vou impedir minha colega de fazer o que precisa.”

“Quer dizer que você não pode impedir sua subordinada,” refletiu Kaiser.

Grue demorou a responder. Suspeitava que não pudesse dizer que Bitch era subordinada sem diminuir sua própria posição perante os outros na mesa. Kaiser, Trickster, Faultline e Coil eram todos líderes. Grue assumia um papel de liderança quando necessário, mas não comandava oficialmente o grupo. Não exatamente.

Grue juntou as mãos na frente, inclinando-se com os cotovelos na mesa. “Não é tão incomum uma cape ter uma questão com um animal. Você devia saber tanto quanto qualquer um. Como seria a reação do seu pessoal se você proibisse eles de assediar ou machucar gays, Kaiser?”

“Não faria isso.”

“Exatamente. Com ela é a mesma coisa. Quando souberem que você é alguém que maltrata cachorros, ela vai te destruir. Aqui, todo mundo sabe disso.”

“Não é algo que eu dê atenção. Eu sou mais de gatos,” comentou sarcasticamente, o que provocou algumas risadas na sala.

“Acho que vale a pena prestar atenção nisso, se isso pode gerar situações como essa,” respondeu Grue, com a voz firme.

“Delego para meus subordinados e confio que eles fiquem de olho nos detalhes menores. Hookwolf ficou fora da cidade até recentemente. Talvez ele não tenha ouvido.”

Era tanta besteira que eu não pude deixar de pensar se ele estava nos provocando.

“Gostaria de resolver isso de forma pacífica,” reiterou Grue.

Kaiser balançou a cabeça com um som de metal riscando em metal: “A paz é sempre preferível, mas não posso deixar uma ofensa dessas passar. Precisamos de alguma compensação para acabar com isso. Dinheiro ou sangue. Sua escolha.”

Bitch fez um som baixo na garganta. Ela e Hookwolf não eram os únicos irritados. Olhei para a mesa onde Hookwolf estava com Fenja, Menja, Night, Fog e Krieg, e todos pareciam visivelmente irritados.

“Então vamos esperar até podermos tratar do assunto com mais calma,” falou Grue, “A trégua está valendo, e vamos nos reunir novamente quando as coisas estiverem mais ou menos resolvidas com a ABB.” Olhou para os outros na mesa para confirmação.

“Vamos sim,” respondeu Coil. Faultline concordou com um aceno de cabeça.

“E aí, Kaiser, que acha? Deixe isso de lado por enquanto?”

Kaiser assentiu uma vez. “Justo. Discutiremos o assunto na nossa próxima reunião.”

“Então estamos combinados. Mais alguma coisa?” perguntou Coil. “Questões, negociações, pedidos?”

Não houve resposta.

Coil interpretou como resposta suficiente. “Vamos encerrar a reunião. Obrigado por terem vindo. Faultline, posso falar com você antes de sair?”

O som de cadeiras arrastando no chão marcou a saída das pessoas ao redor da mesa, exceto Faultline e Coil. O grupo de Skidmark saiu apressado pela porta, enquanto Kaiser e Purity foram até a mesa onde estavam seus subordinados com as bebidas. Os Travelers ficaram ao redor de sua mesa, sem se sentar de vez, nem sair.

Grue voltou para perto de nós, mas não sentou.

“Vamos.”

Ninguém retrucou. Levantamos e deixamos o Somer’s Rock. O grupo de Skidmark estava demorando para sair do outro lado da rua, então, sem dizer nada, seguimos na direção oposta, só por precaução. Não tinha dúvida de que aquilo era uma provocação para uma briga. Eram o oposto total de Kaiser, Coil e Faultline. Cabeças quentes, imprudentes, imprevisíveis. **Viriam a começar uma luta, mesmo sabendo que isso iria colocar todas as outras gangues da cidade contra eles por abusar do território neutro.**

Estávamos a um quarteirão do bar quando Grue falou: “Bitch. Você sabe por que estou tão bravo agora?”

“Por que nós estamos”, acrescentou Tattletale.

“Acho que sim.”

Grue parou por um instante, como se estivesse escolhendo cuidadosamente as palavras: “Quero que você tenha certeza do que fez de errado.”

“Vai se ferrar,” ela retrucou rapidamente, “Entendi a ideia. Não precisa ficar enchendo o saco.”

Grue olhou para o grupo, depois virou o rosto na direção do bar.

Andamos em silêncio pesado por três lojas diferentes, até que ele perdeu a paciência. Pegou Bitch pelo ombro, puxando-a para trás com força para interromper seu passo e desequilibrá-la o suficiente para ela cambalear. Antes que ela pudesse recuperar o equilíbrio, forçou seu corpo contra a área recuada da frente de uma livraria antiga e a empurrou contra a porta, segurando seu pescoço com a mão.

Olhei na direção do bar. Não tinha ninguém saindo, nem olhando na nossa direção. Com os lábios comprimidos, uni-me a Tattletale e a Regent na entrada do recanto. Estava torcendo para que Grue soubesse o que estava fazendo.

Por alguns segundos intermináveis, ele a segurou ali, deixando-a arranhar sua roupa e morder seu braço, chutando inutilmente na perna dele. Duas vezes, quando parecia que ela tinha força suficiente para acertar um golpe mais forte, ele usou sua mão no pescoço dela para puxá-la para frente e empurrá-la de volta contra a porta, com força suficiente para fazê-la tossir.

Ela não parou de resistir enquanto ele falava, com a voz abafada pelos efeitos do seu poder: “Odeio isso, Rachel. Você me faz fazer merda assim. Quando digo essas coisas, pareço tudo que mais odeio nesse mundo. Mas é assim que você joga o jogo. É a única hora que você está disposta a me ouvir. Está entendendo o que estou dizendo?”

Bitch tentou atingir seu estômago, mas ele usou o comprimento dos braços para puxar o corpo para trás o suficiente e evitar o golpe mais forte, continuando a segurar seu pescoço. Deram mais uma empurrada na porta, até ela conseguir respirar um pouco.

“Olhe nos meus olhos,” ordenou.

Ela olhou. A viseira dele estava a um centímetro do rosto dela, e ela não conseguiu ver seus olhos, mas fixou o olhar nas orifícios escuros da máscara de crânio. Eu duvido que eu conseguiria, e ele não parecia zangado comigo.

“Você me deixou na situação ruim. Você nos deixou na situação ruim. Não estou bravo porque você prejudicou o negócio do Hookwolf. Isso foi você, suas bagagens, seu rabo de saia. Sei que é normal pra você na equipe. Conseguo conviver com isso. Está entendendo?”

Ela assentiu, relutante, sem tirar o olhar dele.

Olhei ao redor do canto para garantir que a conversa fosse privada. Os Travelers estavam do lado de fora do bar agora, mas ainda estavam demorando para sair. Trickster tava fumando um cigarro pela boca da máscara.

Grue continuou: “Sabe o que você fez de errado? Você não nos avisou. Deixou eu entrar lá e falar com aqueles caras, me pegarem de calças arriadas. Tive que defender as ações do meu time sem saber do que estavam falando. Isso me deixou parecer fraco. Fez todos nós parecer fracos.”

“Quer uma desculpa?”

“Você realmente queria? Desde que te conheço, nunca ouvi uma desculpa honesta sua, e acredite, uma desculpa insincera só ia me irritar ainda mais agora. Então, a decisão é sua. Quer tentar?”

Bitch não respondeu. Vi ela erguendo o queixo, ajeitando a postura, uma mudança sutil na postura que parecia desafiadora.

“Droga, Rachel. Essa é a sua segunda baita falha em duas semanas. Preciso falar com o chefe e—”

“Para, Tattletale,” interrompeu, “Minha vez.”

Grue saiu de perto dela e deu passos para trás, cruzando os braços e virando as costas. Do que ele tinha estado falando antes? A gente precisa falar com o chefe e ver se conseguimos substituir você?

Se fosse isso, dá pra entender por que Tattletale tinha intervenido.

“Você está frustrada, eu entendo,” disse Tattletale. Bitch estava olhando para a vitrine da livraria, evitando contato visual e esfregando o pescoço. Ela prosseguiu: “Você sente que não fez nada errado, e se tivesse outra chance, faria tudo do mesmo jeito... mas as pessoas estão furiosas com você.”

Bitch olhou nos olhos de Tattletale. Sua voz tinha uma mistura de irritação e tédio: “E as pessoas ficam me criticando e jogando papo de psicólogo na minha cara.”

Tattletale esperou, talvez para ela recuperar o fôlego, pensar em outro jeito, ou usar seus poderes para puxar alguma informação útil. Ou, quem sabe, esperando ela ter um tempo para refletir que com as palavras que soltou, não tava ajudando em nada. Eu não tinha certeza — não conseguia ler a expressão dela. Ela não estava sorrindo, nem dando um sorriso irônico, como costuma fazer.

Com voz mais exasperada, Tattletale respondeu: “Ok. Vou direto ao ponto. As suas duas cagadas desta semana têm uma coisa em comum: a falta de comunicação. Se você tivesse nos avisado que ia sair mais cedo, talvez a gente pudesse ter preparado a armadilha. Se tivesse nos contado que bagunçou com a quadrilha do Hookwolf, estaríamos mais preparados hoje à noite. Então, fale mais. Converse com a gente, nos diga o que está acontecendo. Combinado?”

Bitch não respondeu. Tensão reluzia na nuca dela, postura rígida, mãos nos bolsos.

“Pense nisso,” sugeriu Tattletale.

Olhei de novo ao redor do canto. Trickster ainda estava fumando, mas encarava diretamente a gente. Para mim. A coisa do gorila também, mas os outros olhavam para Trickster. Acho que ele tava falando. Difícil de dizer.

“Acho que já deu,” informei às demais, “Fiquem de olho em nós.”

Saímos do recanto, e só a postura cabisbaixa de Bitch revelava que algo tinha acontecido. Ela ficava alguns passos atrás de nós. Tinha uma tensão no ar, e não era tudo dirigido ou causado por ela. Grue e Tattletale andavam um pouco separados. Ou ele não tinha gostado quando ela tentou entrar na conversa, ou estava bravo consigo mesmo, mas algo incomodava os dois ou um deles.

Regent tinha ficado quieto o tempo todo. Pelo que Lisa tinha me contado na semana anterior, ele ainda sentia umas pontadas de dor no braço. Suspeitava que o estado dele era uma combinação de analgésicos e uma noite mal dormida. Ele não participou do diálogo recente, mas o silêncio dele só piorava o clima.

Isso não me agradava. Essa tensão tava destruindo a camaradagem do grupo, tinha uma energia negativa no ar. Eu gostava desses caras. Até Bitch, quem sabe? Não dá pra dizer que eu gostava dela, exatamente, mas talvez fosse possível respeitá-la pelo que ela acrescentava.

Sabia que seria difícil dar o bote, trair todo mundo e entregar as informações deles ao Pacto, assim que tivesse o que precisava... Mas, ao pensar nisso, percebia que poderia aguentar o peso da decisão. No longo prazo, teria menos arrependimentos. Talvez até me orgulhasse, de certa forma.

Mais e mais, vinha pensando que o dia em que entregasse tudo ao Pacto e dissesse adeus aos Undersiders seria também o dia em que eu começaria uma transformação. Colocando a si mesma como heroína na opinião pública, fazendo o que pudesse para reparar minha imagem, redefinindo a Taylor como alguém confiante, extrovertida e corajosa. Se pudesse cortar laços com os Undersiders e dar esse passo, sabia que poderia mudar de verdade.

Por mais estranho que parecesse, me sentiria ainda pior em relação a passar suas informações ao Pacto se esse tipo de negatividade fosse o que eu estivesse deixando pra trás. Sei que parece sem sentido, mas eu queria poder dizer a mim mesma que tinha uma amizade de sucesso antes de cortá-la por fazer o que é certo. Espero que esse ressentimento desapareça. Mesmo quando eu tinha amigos, era só a Emma e eu. Não tinha experiência suficiente para saber como essas amizades lidam com essas mágoas, essas recaídas. É uma merda.

Quando olhei de volta para Bitch, percebi que ela tinha ainda mais motivos para estar se sentindo assim. Senti uma pontada de solidariedade.

Sabia como era sentir-se sozinha no meio de um grupo de pessoas.

Diminuí meu ritmo até ficar ao lado dela, e percebi que estava tendo dificuldades para encontrar palavras. Fazer conversa fiada? Não sabia bem como. Reassegurá-la? Acho que não conseguiria falar nada sem parecer que estou do lado dela ou que estou prestes a abrir uma caixa de Pandora. Seria pior se acrescentasse minha voz às de Grue e Tattletale, só ia piorar a situação. E suspeitava que ela não ia aceitar bem se eu tentasse persuadi-la — ela não parecia o tipo de pessoa que ia me ouvir da mesma forma que os outros.

“Hookwolf tinha uma quadrilha de lutas de cães?” perguntei em tom mais baixo, “Tipo, fazendo os cães lutarem?”

“Lutando até a morte,” ela respondeu quase inaudível.

Quando seus únicos companheiros ou família no mundo eram seus cães, dava para entender onde aquilo tocou ela. Nunca tive um cachorro, mas, pelo que via, cães eram como crianças. Dependiam de certas pessoas, e se essas pessoas decidissem abusar da situação, era simplesmente errado.

“Vocês interromperam?”

Ela virou a cabeça para mim, olhou nos meus olhos. “Fizeram eles sangrar.”

Senti arrepios na nuca e nos braços. Não tinha certeza se ia me sentir melhor ou pior se ela decidisse explicar mais.

“Boa,” respondi.

Não trocamos mais palavras até voltarmos para casa. Talvez fosse melhor assim.