Verme (Parahumanos #1)

Capítulo 31

Verme (Parahumanos #1)

“Você realmente apareceu.”

Levantei os olhos do meu livro de matemática para ver Emma pairando sobre mim. Ela usava um vestido caro que provavelmente havia ganhado de presente após um de seus contratos de modelagem, e seu cabelo vermelho estava preso em um tipo de nozado complexo que parecia ridículo na maioria das garotas que tentavam fazê-lo. Ela conseguia fazer funcionar, porém. Emma era daquele tipo de pessoa que simplesmente parecia ignorar a vergonha social e os pequenos problemas que atormentavam todo mundo. Ela não tinha espinhas, em qualquer penteado ou estilo de roupa ela ficava bem, e conseguia quebrar quase qualquer código social do ensino médio e sair ilesa.

Meu Deus, eu a odiava.

O Sr. Quinlan tinha acabado a aula quinze minutos mais cedo e nos orientado a fazer um estudo individual, antes de sair da sala. Para a maioria, aquilo era uma chance de jogar cartas ou conversar. Eu havia me determinado a terminar toda a lição de casa antes do fim da aula, para liberar meu fim de semana. Pelo menos, essa era a ideia, antes de Emma interromper.

“Coisa engraçada,” eu respondi, voltando minha atenção para meu caderno, “Você foi a única pessoa hoje que pareceu notar que eu tinha saído. Se você tomar cuidado, posso até pensar que você se importa.” Não estava completamente honesto ali. Minha professora de arte tinha notado minha ausência, mas isso só aconteceu depois que eu lembrei ela que não tinha entregado meu projeto de meio de semestre.

“As pessoas não perceberam que você saiu porque você é uma ninguém. A única razão de eu ter dado atenção foi por que você me incomoda.”

Eu te incomodo,” eu levantei os olhos do meu trabalho novamente, “Uau.”

“Toda vez que te vejo, é esse pequeno e irritante lembrete de tempo que perdi sendo sua amiga. Sabe aqueles eventos embaraçosos do seu passado que te fazem encolher ao relembrar? Para mim, isso é basicamente cada festa do pijama, cada conversa imatura, cada joguinho de criança que você me arrastou a participar.”

Sorrir, então, com o melhor juízo que tinha,eu disse: “Certo. Adoro como você está insinuando que é até minimamente mais madura do que naquela época.”

Por mais estranho que pareça, eu realmente me aliviava em ter Emma aqui, implicando comigo. Se isso era tudo que ela conseguia fazer comigo naquele dia, significava que provavelmente eu não precisaria lidar com nenhuma “pegadinha” no futuro próximo. O que realmente aumentava minha ansiedade era quando ela me ignorava e me deixava em paz. Isso, de modo geral, era o calmaria antes da tempestade.

“Sério, Taylor? Me diga, o que você anda fazendo da vida? Você não vai pra escola, não tem amigos, duvido que esteja trabalhando. Você realmente está numa posição de me chamar de imatura, sendo que eu tenho tudo isso e você simplesmente... não?”

Ria alto o suficiente para os colegas ao redor se virarem na minha direção. Emma apenas piscou, atônita. Por mais que eu não quisesse o dinheiro, eu tinha, tecnicamente, vinte e cinco mil dólares a mais do que tinha há trinta e seis horas. Vinte e cinco mil dólares aguardavam por mim, e Emma dizia que estava melhor do que eu, porque recebia alguns centenas de dólares a cada poucas semanas para tirar fotos para catálogos de shoppings.

“Vai se catar, Emma.” Disse alto o bastante para que as pessoas ao redor ouvissem. “Melhore seu senso antes que tente insultar alguém.”

Com isso, peguei minhas coisas e saí caminhando da sala.

Eu sabia que isso ia ter consequência. Por ter enfrentado Emma, por ter rido na cara dela. Era algo que provavelmente a faria ficar criativa, pensando em como conseguir revidar por aquela pequena afronta.

Não estava tão preocupado em sair da aula cinco minutos mais cedo. Se a história fosse um precedente, o Sr. Quinlan provavelmente nem voltaria antes do fim da aula. Ele costuma sair da aula e simplesmente não volta. Muitos especulavam que era Alzheimer, ou até que nosso professor envelhecido, com a barriga caída, pudesse ser um cape. Eu, mais inclinado a suspeitar que drogas ou problemas com álcool estavam envolvidos.

Senti-me bem. Melhor do que há muito tempo. Admito, senti pontadas dolorosas de consciência quando pensei demais sobre o fato de ter participado de um crime, ou pelo modo como aterrorizara os reféns. Poderia ser culpado se me esforçasse para não pensar nisso?

Dormi como um bebê na noite passada, mais por pura exaustão do que por consciência tranquila, e acordei com um dia que continuava me surpreendendo com boas notícias.

Brian tinha me encontrado na minha manhã de corrida, e me presenteou com um café e os melhores muffins que já provei, enquanto sentávamos na praia. Juntos, levamos dez minutos para revisar os jornais matutinos e ver notícias sobre o roubo.

Não fomos capa dos principais jornais, essa foi a primeira boa notícia. Estávamos na página três do Bulletin, atrás de uma matéria de uma página e meia sobre um alerta Amber e uma notícia da General Motors. Parte do motivo de não termos atraído tanta atenção foi provavelmente o fato de o banco estar relutante em divulgar o valor exato levado. Embora tenhamos escapado com mais de quarenta mil dólares, o jornal reportava perdas de apenas doze mil. No geral, a história tinha foco maior nos danos materiais, causados principalmente pela Glory Girl e os Wards, além do fato de que a escuridão usada na fuga parou o trânsito do centro por uma hora. Isso me deixou silenciosamente contente. Qualquer coisa que minimizasse a gravidade do crime que ajudei a cometer era uma vantagem pra mim.

O próximo estímulo foi o fato de eu ter ido à escola. Parece bobo, considerar isso uma conquista, quando outros fazem isso todo dia, mas eu tinha quase desistido de voltar. Depois de ter pulado uma semana de aulas à tarde e três dias de manhã, era perigosamente fácil convencer a si mesmo de faltar só mais uma. O problema era que isso só tornava o retorno às aulas ainda mais estressante, perpetuando o ciclo. Eu quebrei esse padrão, e me senti pra lá de bem por isso.

Ok, então tenho que admitir que as coisas não estão perfeitas em relação à escola. Conversei com minha professora de arte, e ela me deu até terça-feira para entregar meu projeto de meio de semestre, com uma dedução de 10% na nota. Provavelmente, também perdi alguns pontos em outras disciplinas por falta ou por não entregar tarefas. Um ou dois por cento aqui, ali.

Mas, no geral? Foi uma tremenda alívio. Eu me senti bem.

Peguei o ônibus para os Docks, mas não fui para o loft. Subi o comprimento do Boardwalk até que as lojas começassem a diminuir, e havia trechos mais longos de praia. A rota habitual era de carro por uma rua lateral fora da cidade, mas para quem caminhava ali, tinha que fazer um atalho por um campo bastante parecidos. Meu destino ficava um pouco longe, a ponto de parecer que eu tinha passado direto por ele.

Oficialmente, era o Mercado da Lord Street. Mas se você morava em Brockton Bay, era só “o mercado”.

O mercado ficava aberto durante toda a semana, mas a maior parte das pessoas alugava as bancas só nos fins de semana. Era bem barato, pois você podia pegar uma banca por cinquenta a cem dólares em dias de semana e de duzentos a trezentos nos fins de semana, dependendo de quão movimentado estivesse. Lá vendiam de tudo: artigos de brechó feitos por loucas por gatos, sobras das lojas mais caras do Boardwalk, com descontos de dez a vinte e cinco por cento. Tinha vendedores de sorvete, vendedores de filhotes, produtos de turismo bregas e uma montanha de mercadorias relacionadas aos capes locais. Havia roupas, livros, eletrônicos e comida. Se você morasse no norte de Brockton Bay, você não faria uma venda de garagem. Você alugava uma banca no mercado. E, se só quisesse fazer compras, era tão bom quanto qualquer shopping.

Encontrei com os outros na entrada. Brian estava bonito, de suéter verde escuro e jeans desbotados. Lisa vestia um vestido cor de groselha queimado com meia cinza, o cabelo preso num coque com fios soltos enquadrando o rosto. Alec usava uma camisa de manga comprida e jeans skinny pretos que evidenciavam o quão magro ele era.

“Não esperaram muito?”

“Para sempre,” respondeu Alec com sua resposta lacônica.

“No máximo cinco minutos,” sorriu Brian, “Prontos?”

Nos aventuramos pelo mercado, onde a melhor parte do norte de Brockton Bay ficava exposta. O lado mais perigoso do bairro era controlado pelos mesmos seguranças uniformizados que você via no Boardwalk.

Enquanto Alec parou numa banca isolada de mercadorias de capes, eu comentei: “Acho que a Rachel não pode ficar por perto da gente, né?”

Brian balançou a cabeça: “Não. Em um lugar assim, ela é conhecida demais, e aí é só uma questão de tempo até alguém sacar quem ela anda encontrando.”

“E se ela visse isso, ela piraria.” Lisa apontou para uma velha encurvada carregando um cão fofo nos braços. Estava vestindo um suéter azul-turquesa com rosa e tremia nervosamente. Eu não conhecia bem as raças de cachorro para saber qual era, mas era parecido com um poodle em miniatura.

“O quê? O suéter?”

“O suéter. O cachorro que ela está carregando. A Rachel cairia em cima dela, dizendo que não é assim que se trata um cachorro. Talvez até ameaçando de violência, se um de nós não interviesse.”

“Não precisa de muito, né?”

“Para ela ficar louca? Não mesmo,” concordou Brian, “Mas aos poucos você aprende como ela pensa, o que a faz perder o controle, e pode agir antes que a situação fique feia.”

Lisa acrescentou: “O maior gatilho para a Rachel é maus-tratos a cães. Acho que você poderia chutar um bebê na cara, e ela não reagiria. Mas, se chutasse um cachorro na frente dela, provavelmente te mataria ali mesmo.”

“Vou, uh, lembrar disso,” eu disse. Depois, verificando se ninguém poderia ouvir de longe, achei que era um bom momento para perguntar: “A ela matou alguém?”

“Ela é procurada por assassinato em série,” suspirou Brian, “É complicado.”

“Se a Justiça lhe desse um julgamento justo, com um bom advogado, acho que ela pegaria, no máximo, uma sentença por homicídio culposo, talvez por colocar em risco de forma consciente. Pelo menos pelo que aconteceu na época.” Lisa falou em voz baixa para ninguém mais ouvir, “Aconteceu logo depois que ela manifestou seus poderes. Ela não sabia usar as habilidades direito, nem o que esperar delas, então o cachorro que ela tinha cresceu e virou aquele tipo de criatura que vocês costumam ver. Como não foi treinado, por ter sido maltratado, saiu do controle. Aí, virou carnificina. Desde então? Talvez. Sei que ela feriu sério várias pessoas. Mas ninguém morreu por causa dela desde que a acompanhamos.”

“Faz sentido,” eu concordei distraído. Então esse é um. Quem era o outro assassino do grupo?

Alec voltou do stand vestindo uma camiseta do Kid Win.

“Gostei,” Lisa sorriu, “Ironicamente.”

Seguimos nosso passeio circular pelo mercado. Ainda estávamos na periferia, então não havia muita gente por perto. Aquelas que estavam, provavelmente, não ouviriam nada, a menos que usássemos palavras, nomes ou frases que chamassem atenção.

“Para onde a gente vai agora?”

“É só entregar o dinheiro pro chefe mais tarde essa noite.” Brian pegou um par de óculos de sol e experimentou, “Ele recebe, faz o que tem que fazer com os papéis e volta pra gente com o pagamento. Limpo, sem rastro. Depois de pegar nossa parte, ficamos de boas um tempo, planejamos o próximo trabalho ou aguardamos uma nova oferta dele.”

Ficou a dúvida na minha cabeça: “Estamos confiando demais nele. Vamos dar uma quantia grande de dinheiro, e esperamos que ele volte pra pagar o triplo? Além do que ele achar que o papel vale? Como saber se ele vai cumprir?”

“Precedente,” disse Brian, experimentando outro óculos de sol, baixando a cabeça pra se olhar no espelho pendurado ao lado da banca. “Ele não nos fez de bobo ainda. Não faz sentido tentar enrascar a gente, já que ele já investiu mais do que isso na gente. Se estivéssemos falhando na maioria dos trabalhos, talvez ele guardasse o dinheiro pra recuperar o prejuízo, mas estamos indo bem.”

“Certo,” concordei, “Tudo bem, acredito nisso.”

Senti um conflito interno quanto ao plano de “esperar e ver”. Por um lado, um descanso parecia ótimo. A última semana foi intensa, pra falar o mínimo. Por outro, era chato ficar de fora de mais um trabalho, porque isso significava esperar ainda mais para obter mais detalhes sobre o chefe. Só me restava torcer para aprender algo naquela noite.

“Vamos lá,” Lisa sorriu pra mim, segurando meu pulso, “Tô te levando comigo.”

“Hã?”

“Vamos fazer compras,” ela me explicou. Virando-se para Brian e Alec, falou: “Dividimos o grupo, encontramos vocês no jantar? Ou, se preferirem, podem ficar aí segurando nossas bolsas enquanto experimentamos roupas.”

“Vocês não têm bolsas,” apontou Alec.

“Falei de brincadeira. Querem fazer o que quiserem ou não?”

“Tanto faz,” respondeu Alec.

“Seu cuzão, Lisa,” franziu Brian, “Ficando apegada na nova menina.”

“Você tem seus encontros matinais com ela, quero fazer compras, azar,” Lisa deu a língua para Brian.

“Beleza,” Brian deu de ombros, “Jantar no Fugly Bob’s?”

“Deixa pra lá,” concordou Lisa. Ela virou-se pra mim, levantando as sobrancelhas.

“Tô dentro do Fugly Bob’s,” aceitei.

“Não gastem tanto que chamem atenção,” avisou Brian.

Separamo-nos dos meninos, Lisa envolvendo meu ombro com o braço, falando sobre o que queria comprar. Seu entusiasmo era contagiante, e acabei sorrindo.

Assassina. Eu tinha que me lembrar disso. Uma dessas três era uma assassina.