
Capítulo 32
Verme (Parahumanos #1)
“Vamos renovar seu guarda-roupa,” decidiu Lisa, depois que deixamos os garotos para trás.
“O que há de errado com o meu guarda-roupa?” perguntei, um pouco na defensiva.
“Nada, de verdade. É só muito... você. E esse é o problema.”
“Você não está me colocando pra cima, aqui.”
“Você é uma pessoa cautelosa, Taylor. Gosto disso em você. Acho que é uma adição essencial à dinâmica do grupo,” ela me levou até uma coleção de cabines onde havia bastante roupa feminina, e rapidamente escolheu três vestidos de uma arara.
“Brian também é cauteloso.”
“Você e o Brian são parecidos, mas eu não diria que ele é cauteloso. Ele é... pragmático. Vocês dois são. A diferença é que ele está fazendo o que faz há três anos, agora. Dois anos de experiência antes de entrar pro grupo. Então muita coisa que ele faz já é automática. Ele não pensa duas vezes nas pequenas coisas que já fez dezenas de vezes. Ele dá muitas coisas como garantidas.”
“E eu não?”
“Você é observadora, detalhista e focada. Mais do que qualquer um dos outros. Você observa, interpreta e age com uma precisão cuidadosa, quase cirúrgica. Isso é uma força e uma fraqueza.”
“E isso tem a ver com as minhas roupas?”
“Sua personalidade se reflete na sua escolha de roupas. Cores suaves. Marrom, cinza, preto, branco. Se você usa algo com cor, é por baixo de um moletom, suéter ou jaqueta. Nunca algo que chame muita atenção. Nunca mostra muita pele. Enquanto a maioria das pessoas na nossa idade escolhe roupas pensando em definir uma identidade, caber em um grupo, você está focada em permanecer invisível e não chamar atenção. Você está sendo cautelosa demais, pensando demais em coisas que não precisa, sempre optando por jogar pelo seguro.”
“E você quer mudar isso.” Suspirei.
“ Suspeito que você seja capaz de surpreender todo mundo, inclusive a si mesma, quando abaixar a guarda, se tornar mais ousada e improvisar. Não só quando as circunstâncias obrigarem. Não estou falando só de roupas, sabia.”
“Eu até captei a ideia.”
“Mais especificamente, estou vendo você usar sempre duas mesmas calças jeans, dia após dia, mesmo tendo recebido um salário de dois mil há cinco dias. Se eu não te fizer comprar roupas, acho que você não vai.”
“Meu pai vai ficar imaginando onde eu arrumei,” reclamei, enquanto ela dobrava um par de blusas sobre um dos meus braços.
“Você emprestou de mim. Ou elas não couberam mais em mim e eu te dei. Ou você pode deixar na nossa casa e ele não vai desconfiar de nada.”
“Não gosto de mentir pro meu pai.”
Ela me conduziu até uma área com cortinas, que servia como provador. Por trás da cortina, ela me disse: “Tenho inveja de você por isso. Mas se ele ainda não descobriu por que seu guarda-roupa encolheu tanto, é bem provável que nem perceba se você estiver com roupas novas.”
Eu tava quase tirando a camiseta quando aquilo me atingiu, “Do que você está falando?”
“Vamos lá, Taylor. Eu suspeitaria que você estivesse passando por uns problemas mesmo sem, sabe… um passarinho cochichar no meu ouvido.”
Me apressei para vestir o primeiro vestido da pilha, abri a cortina e falei: “Você vai ter que ser um pouco mais específica, senão não posso confirmar nem negar nada.”
“Não aquele,” ela apontou para o vestido, um xadrez, em tons de vermelho e branco. Irritada, fechei a cortina.
Do outro lado, ela explicou: “No começo, achei que seu pai estivesse te abusando. Mas descartei essa hipótese logo que ouvi você falar dele na conversa. Tem que ser algo importante na sua vida que está te sugando, e, se não é em casa, deve ser na escola. Brian e Alec concordam comigo.”
“Você falou sobre isso com eles?” Soltei os botões do vestido e apoiei a cabeça na parede meio instável da cabina.
“Apareceu quando a gente falou sobre você entrar pro grupo, e nunca fechamos esse assunto. Desculpa. Você é nova, é interessante, a gente fala de você. É só isso.”
Terminei de fechar os botões, abri a cortina e falei: “Alguma vez você pensou que eu não quisesse que você bisbilhotasse?”
Ela destrancou o botão de cima. “O que você quer e o que você precisa são coisas diferentes. Azul-celeste é pra ficar. Pode deixar esse aqui por cima.” Ela me empurrou de volta pra dentro e fechou a cortina.
“O que eu preciso é manter...”—lutei pra achar uma forma de dizer algo que não levantasse suspeitas—“essas duas partes importantes da minha vida separadas.”
“A parte ruim e a parte que não é ruim.”
“Pode ser. Vamos nessa.” Procurei uma blusa e um jeans de cintura baixa na pilha.
“Posso ajudar a fazer com que as partes ruins doerem menos,” ela ofereceu.
Juro que meu sangue chegou a gelar. Eu quase consegui ver ela aparecendo na escola, provocando a Emma. Acho que o medo de enfrentar a Glory Girl de novo me assustaria menos. Eu me forcei a fechar o botão da calça jeans, o que não ficou mais fácil pela minha ansiedade. Demorei uns trinta segundos até conseguir fechar o botão, e murmurei palavrão o tempo todo. Onde no mundo Lisa tinha achado jeans tão apertados em mim? Quando vesti, abri a cortina e encarei ela de frente.
“Botar roupa em mim tudo bem,” eu disse, tentando manter a voz calma, “mas se você interferir diretamente nos meus problemas, eu vou embora.”
“Assim, de uma hora pra outra?”
“Assim, de uma hora pra outra,” respondi, “desculpa.”
Ela pareceu um pouco magoada. “Tá bom.” Fazendo biquinho, ela acenou com a mão em direção às minhas roupas. “O que acha?”
Eu tentei ajustar a gola. Gostava do desenho abstrato do lado direito da camisa, mas a gola em V apontava pra um lado quase na altura do meu esterno e do estômago. “A blusa é baixa demais, os jeans são apertados demais.”
“Você precisa se acostumar a mostrar um pouco de decote. Como eu disse, seja ousada nas suas escolhas de moda.”
“Eu até mostraria decote se tivesse alguma coisa pra mostrar,” apontei.
“Você é uma atrasadinha?” ela tentou.
“Minha mãe tinha peito B, e nem sempre, dependendo da marca do sutiã. E isso depois de ela ganhar uma meia-tamanho na gravidez de mim.”
“Que tragédia.”
Eu dei de ombros. Desde que comecei a puberdade, sabia que ia ser magra e reta como tábua. Bastava olhar a genética dos dois lados da minha família para saber no que ia dar.
“E meus sentimentos pela sua mãe. Não sabia.”
“Obrigado.” Suspirei. “Vou vetar essa blusa.”
“Tudo bem, você pode, mas vamos manter o jeans. Eles valorizam sua figura.”
“A figura de um rapaz de treze anos,” murmurei.
“Você é mais alto que um menino de treze anos, não seja boba. Além disso, qualquer que seja sua aparência, seu tipo de corpo, certamente existe alguém lá fora que acha você a pessoa mais atraente que já viu.”
“Perfeito,” murmurei, “Tem um pervertido por aí, com meu nome na lista dele.”
Lisa soltou uma risada. “Vai, experimenta mais alguma coisa. Mas deixa o jeans por cima. Eu vou comprar pra você, e se você nunca usar, vai ter que se contentar em se sentir culpada por isso.”
“Achando o mesmo jeans uma numeração maior, eu uso,” negociei. Antes que ela pudesse protestar, adicionei: “Eles vão encolher na lavagem.”
“Ponto pra você. Vou procurar essa medida maior.”
As coisas continuaram nesse ritmo por um tempo, com Lisa fazendo umas comprinhas pra ela também. Ficamos só conversando sobre as roupas, e era claro que Lisa estava evitando cuidadosamente o assunto anterior. Quando terminamos, a atendente passou a conta num bloquinho e entregou o papel pra gente. Quatrocentos e sessenta dólares.
“Minha cortesia,” disse Lisa.
“Tem certeza?” perguntei.
“Um troco por sua silêncio,” ela piscou pra mim.
“Sobre o quê?”
Ela olhou para a caixa, “Depois.”
Só depois de termos saído bem longe da cabine, carregadas com sacolas, que Lisa explicou: “Faz um favor pra mim e não conta pro pessoal que eu vacilei na hora de revelar que a Panacea é uma das reféns. Se eles perguntarem na cara dura, você pode dizer, não vou te pedir pra mentir. Mas se não perguntarem, talvez seja melhor nem tocar no assunto?”
“Essa é a quietude que você está comprando?”
“Por favor.”
“Tudo bem,” respondi. Eu iria agir assim mesmo sem o presente de roupas, mas acho que ela já desconfiava disso.
Ela sorriu, “Obrigada. Entre eles, acho que nunca ia me deixar escapar essa.”
“E você deixaria, se a situação fosse invertida?”
“Nem a pau,” ela riu.
“Era isso que eu pensava.”
“Mas sobre nossa conversa anterior... é a última coisa que vou dizer sobre isso hoje, prometo. Se algum dia você decidir que quer que eu interceda diretamente na sua vida pessoal, basta falar a palavra.”
Fechei a testa, prestes a ficar irritada, mas acabei cedendo. Era uma oferta justa, sem impor nada. “Ok. Obrigada, mas estou bem.”
“Então tá acertado. Vamos comer.”
Fugly Bobs era fast food do tipo mais descarada, vendida num lugar que era uma mistura de restaurante, bar e barraca na ponta do Mercado, com vista para a praia. Quem morava na região provavelmente tinha ido lá uma vez, em algum momento. E, com bom senso, aguardava um ano pra dar uma chance ao coração de recuperar. Era aquele tipo de lugar com hambúrguer tão gorduroso que, se você pedisse pra levar pra casa, dava pra ver por dentro da sacola de papel quando chegasse em casa. O hambúrguer especial se chamava Desafio Fugly Bob: se você conseguisse comer tudo, não precisava pagar. E quase todo mundo pagava, claro.
Brian e Alec já estavam lá quando chegamos, e pedimos nossas refeições na hora. Lisa e eu combinamos de dividir um cheeseburguer com bacon, Brian pediu um duplo de portobello com carne e Alec foi de uma versão do Fugly Bob, uma interpretação dele do Big Mac.
Nenhum de nós tinha fome, coragem ou burrice suficiente pra pedir o Desafio.
Brian e Alec estavam sentados do lado de fora, assim poderiam nos ver chegar. Depois de uma rápida discussão, concordamos em ficar na mesa onde eles estavam. Era perto da janela, assim a gente podia assistir à TV. Ainda tava fresco o suficiente pra maioria das pessoas preferir ficar dentro, então quem estava lá fora eram só alguns caras da faculdade, sentados na ponta do pátio, bebendo e assistindo ao jogo na TV. O principal benefício era a privacidade pra conversar.
“Não quero ser chato,” disse Brian, olhando as sacolas, “mas eu falei que você não deveria gastar tanto assim logo depois de um golpe. É coisa que polícia e justiceiros ficam de olho.”
“Relaxa,” rebati Lisa, “Só chama atenção se for uma mudança drástica nos hábitos de consumo da pessoa. Eu compro coisa desse nível toda semana ou duas.”
Brian franziu a testa, parecia que ia falar algo, mas ficou em silêncio.
“E agora, o que vem a seguir?” perguntei.
“Jantar, depois sobremesa,” respondeu Alec, focado na TV.
“Queria saber no que tange à nossa,” abaixei a voz, “atividade ilícita.” Uma checada rápida confirmou que os caras da faculdade lá no fundo ainda estavam grudados no jogo. Não consegui entender nada do que estavam falando, e eles estavam alto demais, então tinha certeza de que não nos ouviam.
“Tem alguma coisa que você quer fazer?” perguntou Brian.
“Algo menos intenso,” decidi, “sinto que pulei na piscina sem saber nadar direito. Preferiria entender melhor meus poderes no campo de batalha, aprender a lidar com as situações, antes de enfrentar gente como Lung e Glory Girl, que são capazes de me rasgar em pedaços de verdade.”
“Haha. Então, algo mais fácil.”
“Se a Rachie estivesse aqui, ela chamaria você de covarde de novo,” comentou Alec.
“Então, tenho que ficar feliz por ela não estar aqui,” sorri.
Nossa comida chegou, e usamos pratos extras pra dividir os acompanhamentos, assim todos comeríamos um pouco de cada coisa. Sobrou uma mistura de batatas fritas comuns, doces, anéis de cebola e abobrinha empanada, tudo em pratos individuais. Esses acompanhamentos, sozinhos, já dariam uma refeição forte, mas havia também os hambúrgueres, grandes o suficiente pra ocupar quase um prato inteiro. Lisa e eu cortamos o cheeseburguer com bacon ao meio, e cada uma pegou uma parte.
“Acho que você não é do tipo que engorda,” comentou Lisa, me observando.
“Tenho que trabalhar pra colocar peso.”
“Droga,” resmungou ela.
“Se ajuda em alguma coisa,” continuei, dando uma mordida e limpando a boca com guardanapo, “isso vai ser um inferno pra minha pele.”
“Isso até ajuda,” ela sorriu.
Alec revirou os olhos. “Chega de papo de menina.”
“Então, do que vocês querem falar?” perguntou Lisa.
Ele deu de ombros e deu uma mordida no hambúrguer.
Eu tinha uma sugestão. “Sei que é meio clichê, mas, quando pessoas com poderes se encontram, não é padrão compartilhar histórias de origem?”
Aparentemente, não tinha melhor maneira de terminar a conversa. Lisa virou a cabeça, pela primeira vez sem sorriso no rosto. Brian e Alec me olharam estranho, sem dizer uma palavra.
“O quê?” perguntei. Olhei ao redor pra ver se tinha alguém perto que ouvisse. “O que foi que eu falei?”