Verme (Parahumanos #1)

Capítulo 9

Verme (Parahumanos #1)

A corrida tinha ajudado a me despertar, assim como o banho quente e uma xícara do café que meu pai tinha deixado na panela. Mesmo assim, a fadiga não ajudava a aliviar a sensação de desorientação ao perceber como o dia parecia normal enquanto eu seguia para a escola. Poucas horas atrás, eu estivera envolvido numa batalha de vida ou morte, tinha até conhecido o Armsmaster. Agora, era um dia como qualquer outro.

Senti uma pontinha de nervosismo ao chegar na sala de aula. Tínhamos basicamente pulado duas aulas na sexta-feira anterior, além de não ter entregado um trabalho importante, então achei que a senhora Knott provavelmente já sabia de tudo. Não fiquei mais tranquilo quando ela olhou pra mim, sorriu de canto e voltou a focar no computador. Isso só significava que a humilhação seria ainda maior se, ou quando, alguém fosse parar lá na sala vindo do escritório. Uma parte de mim queria nem participar dessa aula, só pra evitar a possível vergonha e não chamar atenção.

De modo geral, senti uma ansiedade ao caminhar até meu computador, o que era ruim, porque a aula de Informática era uma das poucas partes do dia escolar que eu não costumava temer. Pra começo de conversa, era a aula em que eu tava indo bem. Além do mais, Madison, Sophia e Emma não estavam na minha turma, embora algumas amigas delas estivessem. Essas garotas geralmente não sentiam necessidade de me perturbar sem a presença do trio, e eu ficava ainda mais afastado delas porque estava na turma avançada. Cerca de três quartos das pessoas na sala eram analfabetas digitais, vindo de famílias que não tinham dinheiro pra comprar computador ou que não tinham muito interesse naquilo; eles praticavam digitação sem olhar pro teclado e tinham aulas de busca na internet. Já eu, fazia parte do grupo que estava aprendendo programação básica e planilhas eletrônicas. Não ajudava muito na minha reputação de geek que já tinha, mas eu levava numa boa.

A professora Knott era uma professora razoável, embora não fosse muito prática. Ela costumava dar aos alunos avançados uma tarefa na aula e focava a maior parte do tempo na turma mais agitada. Isso funcionava bem pra mim — normalmente, acabava a tarefa em meia hora, sobrando uma hora livre pra fazer o que eu quisesse. Durante minha corrida matinal, tinha revivado e pensado nos acontecimentos da noite anterior e, assim que o velho desktop terminou de carregar aquele carregamento excruciante, minha primeira ação foi procurar informações.

O lugar de referência pra notícias e discussões sobre heróis e vilões era o Parahumans Online. A página inicial tinha atualizações constantes sobre notícias recentes e internacionais envolvendo capes. De lá, podia acessar a wiki, com informações sobre heróis, grupos e eventos, ou os fóruns, que se dividiam em quase cem subseções, por cidades e heróis específicos. Abri a wiki numa aba e, em outra, encontrei a seção do fórum referente a Brockton Bay.

Tive a sensação de que quem comandava aquele grupo era a Tattletale ou o Grue. Focando na Tattletale, pesquisei na wiki. O resultado foi decepcionantemente curto, começando com um aviso: “Este artigo é uma versão provisória. Seja um herói e ajude a expandi-lo.” Havia uma frase curta dizendo que ela era uma suposta vilã atuando em Brockton Bay, acompanhada de uma foto borrada. A única novidade era que o traje dela era lavanda. Uma busca nos fóruns também não revelou nada de útil. Nem ao menos um indício do que seria o poder dela.

Procurei pelo Grue. Na verdade, tinha alguma informação, mas nada detalhado ou definitivo. A wiki dizia que ele atuava há quase três anos, lidando com crimes banais, como roubar lojas pequenas, e trabalhando como capanga para quem queria um músculo com poderes extras. Recentemente, tinha se envolvido com crimes de maior escala, incluindo roubo a empresas e um cassino, junto a uma equipe nova. Seu poder era listado como geração de escuridão na barra lateral, abaixo da foto. A foto tava nítida, mas o foco, o Grue, era só uma silhueta preta borrada no centro.

Fui procurar pela Bitch, agora. Nenhum resultado. Fiz uma nova busca pelo nome oficial, Hellhound, e aí sim encontrei bastante coisa. Rachel Lindt nunca tentou esconder sua identidade de verdade. Pelo que parecia, ela tinha sido sem-teto na maior parte da carreira, vivendo nas ruas e fugindo da polícia ou de capes. As aparições com a garota sem-teto sumiram por volta de um ano atrás — acho que foi nesse momento que ela se juntou ao Grue, Tattletale e Regent. A foto no painel lateral foi tirada de uma câmera de vigilância — uma garota de cabelo escuro, sem máscara, que eu não acharia bonita. Tinha um rosto quadrado, com sobrancelhas grossas. Ela controlava um dos seus cães monstruosos como um jóquei controla um cavalo, na faixa central de uma rua.

Segundo a entrada da wiki, os poderes dela apareceram quando tinha quatorze anos, seguido quase imediatamente pela destruição da casa de acolhimento onde vivia, ferindo a mãe adotiva e dois outros acolhidos. Depois disso, ela passou dois anos em uma série de confrontos e retiradas por toda Maine, enquanto heróis e equipes tentavam capturá-la. Ela derrotava ou escapava de todos. Não tinha poderes que a tornassem mais forte ou rápida que uma pessoa comum, mas era capaz de transformar cães normais naquelas criaturas que eu tinha visto no telhado — monstros do tamanho de um carro, musculosos, com dentes e garras. Uma caixa vermelha perto do rodapé da página dizia: “Rachel Lindt tem uma identidade pública, mas é conhecida por ser hostil, antissocial e violenta. Se a reconhecerem, não se aproxime nem provoque. Afaste-se da área e avise as autoridades sobre sua última localização conhecida.” No fim da página, havia alguns links relacionados a ela: dois sites de fãs e uma matéria jornalística sobre seus atos iniciais. Uma busca nos fóruns também não trouxe nada útil; eram muitas informações, opiniões, especulações e veneração ao vilão, dificultando a busca por algo confiável. Enfim, ela era bem famosa. Soltei um suspiro, pensando em fazer uma investigação mais aprofundada quando tivesse mais tempo.

A última integrante do grupo era a Regent. Pelas palavras do Armsmaster, que disse que ele era discreto, eu não esperava encontrar muita coisa. Surpreendentemente, não encontrei nada. Minha busca na wiki retornou só uma resposta padrão: “Nenhum resultado corresponde a esta consulta. 32 endereços IP únicos buscaram na Parahumans.net Wiki por ‘Regent’ em 2011. Deseja criar a página?” O fórum também não revelou nada mais. Inclusive, tentei variações do nome, como Regence ou Recant, caso tivesse entendido errado, mas nada apareceu.

Se meu humor já tava ruim ao chegar na sala de aula, esses obstáculos só pioraram. Fiquei de cara pra minha tarefa na aula, que consistia em criar uma calculadora funcional em Visual Basic. Era uma tarefa tão simples que não conseguia me distrair direito. O conteúdo da quinta e sexta-feira já tinha nos dado as ferramentas necessárias, então era só trabalho de enfeite. Não me importava de aprender algo, mas fazer por fazer era irritante. Fiz o mínimo, procurei bugs, movi o arquivo pra pasta de trabalhos concluídos e voltei a navegar na web. No geral, não demorou mais que quinze minutos.

Pus uma busca pelo Lung na wiki, uma coisa que fazia com frequência, como parte da minha pesquisa e preparação para virar um herói. Queria saber quem eram os vilões locais mais relevantes e o que eles podiam fazer. A busca por ‘Lung’ redirecionou pra uma página geral sobre sua gangue, a ABB, com bastante informação detalhada. As habilidades dele eram compatíveis com minhas experiências, embora não mencionassem o super-audível ou a resistência ao fogo. Cheguei a pensar em incluir essas informações, mas desanimei — por questões de segurança, minha consulta ficaria rastreada de volta para a Winslow High e, depois, pra mim. Acho que provavelmente a página seria apagada por especulação sem comprovação.

A seção abaixo, sobre seus subalternos, dizia que ele tinha cerca de quarenta ou cinquenta capangas espalhados por Brockton Bay, principalmente jovens asiáticos. Não era comum um grupo assim incluir tantas nacionalidades, mas a ABB tinha como missão dominar e absorver todas as gangues com membros asiáticos — e muitas sem. Depois que tinha o número de homens, as gangues não asiáticas eram desmontadas, seus ativos aproveitados e os membros descartados. Mesmo sem gangues grandes sobrando na parte leste da cidade, ele continuava recrutando com afinco. Agora, sua estratégia era pegar qualquer pessoa com mais de doze e menos de sessenta anos. Não importava se era gangue ou não. Se fosse asiático e morasse em Brockton Bay, Lung e seus homens queriam que a pessoa se juntasse ou pagasse tributo de alguma forma. Notícias locais, jornais, eu me lembrava de placas na sala do orientador escolar dando dicas sobre onde buscar ajuda se alguém estivesse nessa situação.

Seus tenentes eram o Oni Lee e a Bakuda. Eu já tinha alguma noção geral do Oni Lee, mas fiquei curioso ao ver atualizações recentes na wiki dele. Tinha detalhes específicos: Ele podia se teleportar, mas, ao fazer isso, não desaparecia. Enquanto se teleportava, seu eu original, por assim dizer, permanecia no lugar por cinco a dez segundos antes de se transformar em cinzas de carvão. Basicamente, ele criava uma cópia dele mesmo perto e, enquanto ela existisse, podia distrair ou atacar. Aí vem o mais assustador: tinha relato dele segurando uma granada enquanto se duplicava, usando seus clones como bomba suicida. Pra concluir, a página do Oni Lee tinha uma caixa de aviso vermelha parecida com a da Bitch/Hellhound, sem o aviso sobre a identidade pública. Pelo que as autoridades sabiam, ele era considerado um psicopata. A advertência era quase a mesma: extremament暴 violento, perigoso, não provoque, e assim por diante. Olhei a foto dele: um traje preto, um corpo de macacão, com bandoleira e cinto para as facas, armas e granadas. A única cor era uma máscara japonesa de demônio, vermelha, com duas faixas verdes dos lados. Apesar da máscara, o visual dele parecia um ninja, reforçando a ideia de que poderia deslizar uma lâmina entre suas costelas numa fração de segundo.

A Bakuda era uma entrada nova, adicionada ao artigo da ABB há só dez dias. A foto mostrava ela só do ombro pra cima: uma garota de cabelo preto liso, com óculos opacos grandes e uma máscara metálica com um filtro de gás cobrindo a metade inferior do rosto. Um fio trançado de cabos pretos, amarelos e verdes pendia de um ombro. Não dava pra determinar sua origem exata com a máscara e os óculos, e também não conseguia saber sua idade.

Na wiki, tinha várias informações semelhantes às que o Armsmaster tinha dado. Ela, basicamente, fez uma chantagem numa universidade, usando sua habilidade de criar e fabricar bombas de alta tecnologia. Havia um link pra um vídeo chamado ‘Ameaça de bomba na Cornell’, mas achei melhor não assistir na escola, ainda mais sem fones. Prometi a mim mesmo que confiaria nisso só quando chegasse em casa.

O próximo título que me chamou atenção foi ‘Derrotas e Prisões’. Rolei a página pra ler. Segundo a wiki, o Lung havia sofrido algumas pequenas derrotas de várias equipes — desde a Guild até os times locais de New Wave, as Wards e o Protec­torate — mas sempre conseguiu escapar até ontem à noite. Um trecho dizia: “Armsmaster conseguiu emboscar e derrotar o líder da ABB, que estava debilitado após um encontro recente com um grupo rival. Lung foi levado ao PHQ para aguardar julgamento por videoconferência. Considerando seu extenso e bem documentado histórico criminal, espera-se que enfrente prisão na Birdcage, caso seja condenado.”

Respirei fundo e soltei o ar lentamente. Não sabia bem o que pensar. Por tudo, eu deveria estar bravo porque o Armsmaster levou o crédito por uma briga que poderia ter me matado. Mas, na verdade, senti uma empolgação crescendo. Queria sacudir o ombro do cara que tava do meu lado e apontar pra tela, dizendo: “Fui eu quem consegui isso! Fui eu!”

Com esse ânimo renovado, troquei de aba e comecei a ver o que a galera tava dizendo. Um comentário de alguém, que parecia fã ou capanga do Lung, ameaçava violência contra o Armsmaster. Uma pessoa pediu mais detalhes sobre a luta. Mas o que mais me deixou em dúvida foi um post questionando se a Bakuda tinha ou usaria uma bomba de grande escala, com potencial pra matar milhares de pessoas, pra fazer um resgate do Lung.

Tentei esconder essa ideia da minha cabeça. Se fosse acontecer, a responsabilidade seria de heróis mais experientes e capazes do que eu.

Pensei que tinha esquecido alguém. Eu mesmo. Abri a busca avançada do fórum Parahumans.net e pesquisei por vários termos: inseto, aranha, enxame, barata, praga, entre outros que me ocorreram enquanto tentava pensar num nome de herói legal. Limitei pra procurar posts das últimas 12 horas e cliquei em Buscar.

Encontrei duas mensagens. Uma falava de um vilão chamado Pestilence, ativo no Reino Unido. Pelo que parecia, Pestilence era um dos usuários de ‘magia’. Ou seja, se você acreditasse que magia fosse real – e não só uma interpretação convoluta ou iludida de algum poder — ele teria esse poder.

A outra mensagem, na seção de ‘Conexões’, era onde vítimas solitárias deixavam contato pros heróis, onde se organizavam convenções e encontros de fãs, e onde se postavam ofertas de trabalho pra capes. A maioria era vaga ou cheia de códigos só quem conhece os bastidores entenderia.

O título era simplesmente “Barata”.

Cliquei e esperei o sistema, que tava lento e carregando de forma pesada por causa da internet escolar, carregar a página. A resposta foi breve.

Assunto: Barata

Te devo uma. Quero te pagar. Encontrou?

Envie uma mensagem,

Tt.

O post tinha duas páginas de comentários. Três pessoas achavam que aquilo era importante, enquanto meia dúzia chamava os outros de paranoicos, fãs da teoria da conspiração do Parahumans.net.

Mas tinha peso. Não podia entender de outra forma: Tattletale tinha conseguido entrar em contato comigo.