
Volume 1 - Capítulo 8
The Water Magician
—“Vamos então?” Ryo perguntou após fazer uma última checagem para ter certeza de que não havia esquecido nada.
—“Sim, boa ideia.”
Abel havia sido naufragado com nada além das roupas que vestia, uma bolsa de moedas, uma armadura leve e uma espada em mãos. Ryo, por sua vez, tinha apenas a túnica e a capa que o Dullahan lhe dera, sua tanga, sandálias, facas e temperos. Felizmente, já que viajariam pela floresta, quanto menos coisas carregassem, melhor. Precisavam ser leves nos pés.
—“Vamos caçar o alimento pelo caminho. Eu posso fornecer água, sal e o tempero chamado pimenta-do-reino, mas teremos que caçar animais e monstros para carne e colher frutas e coisas assim enquanto viajamos. Não espero problemas, considerando a diversidade de seres que habitam esta floresta.”
—“Entendi.”
—“À medida que seguirmos para o norte, vamos chegar a um enorme pântano. Conheço bem a região até lá por causa das vezes que vou. Não deve haver monstros perigosos no caminho agora.”
Enquanto falava, uma imagem de seu primeiro encontro com o gavião assassino de um olho aflorou em sua mente. Ele o tinha encontrado nas regiões mais ao norte da floresta.
—“Ah, é?” Abel disse. “Então vamos usar o pântano como primeiro ponto de parada.”
Quando saíram da barreira, caminharam em silêncio por um tempo. Ryo rememorava os vinte anos que passara na floresta enquanto Abel refletia sobre o mistério que era Ryo.
Finalmente, incapaz de conter-se, Abel quebrou o silêncio.
—“Ei, Ryo. Tem uma coisa que queria te perguntar.”
—“Hm? O que é?”
—“Uh... o que vou te perguntar pode parecer rude, então não precisa responder se não quiser, mas... onde você foi ontem à noite?”
Abel havia se torturado, ponderando se deveria ou não fazer a pergunta que lhe incomodava. Mesmo indeciso, acabou soltando-a de qualquer forma.
—“Ah, não me importo em dizer. Fui visitar meu professor. Queria avisá-lo sobre a minha viagem.”
—“Seu professor? Então foi ele quem te deu essa túnica e capa?”
—“Sim, exatamente. Foram presentes de despedida.”
Embora túnica e capa fossem bem feitas e bonitas, algo nelas parecia estranho para Abel. Crescera cercado por bens finos e de alta qualidade, o que explicava seu olhar apurado para a beleza. Esse mesmo senso lhe dizia que algo estava errado nas roupas de Ryo.
Será que têm algum efeito mágico?
Não podia ter certeza.
—“Tem algo especial nelas?” Abel perguntou.
Normalmente, essa pergunta seria tabu, mas como agora faziam parte de um grupo, precisavam conhecer as armas, equipamentos e habilidades dos companheiros. Essa informação seria vital para trabalharem como equipe quando chegasse a hora.
Claro que o motivo de Abel era mais simples — ele só queria entender a estranha sensação que sentia.
—“Hmmm. Acho que não, já que ele não comentou nada.”
O Dullahan nunca falou uma palavra para Ryo. Obviamente, considerando que não tinha cabeça.
—“Bom. Hã.”
Não havia muito o que Abel pudesse fazer diante disso. Apesar de não estar totalmente convencido de que estava errado, decidiu não insistir.
Durante a conversa, chegaram aos pântanos.
—“Vamos precisar fazer um desvio para oeste para continuar rumo ao norte,” disse Ryo. “Não conheço bem a área além daqui, então teremos que andar com cuidado.”
—“Entendido,” respondeu Abel. “Não sei como explicar, mas muitos magos falam de um jeito bem lógico, né? Os que conheço da minha terra falam assim também, Ryo.”
—“Ah, é...? Nunca conheci outro mago, então não posso opinar.”
Que se dane outros magos, pensou Ryo com pesar. Abel é a primeira pessoa que conheço aqui.
Mesmo depois de contornar os enormes pântanos e sair ao norte deles, ainda não haviam encontrado nenhum monstro. Só no fim da tarde, já quase anoitecendo, eles finalmente se depararam com um.
—“Um javali menor, hein?” disse Ryo.
—“Como te falei ontem, eu cuido disso. Fica de fora, Ryo,” disse Abel, desembainhando a espada e ficando em posição de combate.
Ryo fez o que foi instruído e ficou para trás.
Em sua mente, Ryo reviveu a cena de sua primeira batalha em Phi.
Isso mesmo, minha primeira luta foi contra um javali menor. Eu nem conseguia me mover porque era a primeira vez que sentia o sangue frio de outro ser. No fim, consegui encurralá-lo com uma combinação de Ice Bahn e Icicle Lance, e terminei espetando-o com meu bastão de bambu... Que saudade.
Enquanto Ryo recordava, a batalha começou com o javali menor investindo contra Abel.
—“Habilidade de Combate: Desvio Lateral.”
Quando o javali estava prestes a atacar, Abel desviou o corpo ligeiramente para o lado. Imediatamente depois, contra-atacou.
—“Habilidade de Combate: Empalamento Total.”
Ele cravou a espada pela orelha esquerda do javali menor e atingiu seu cérebro, derrotando o monstro sem lhe dar chance de causar qualquer dano.
Ryo ficou pasmo — não pela habilidade espetacular de Abel, mas pelo que aprendeu pela primeira vez.
Habilidade de Combate?! Que diabos?! A primeira que usou para desviar para o lado e a segunda para espetar! Eu não fazia ideia de que algo assim existia em Phi!
—“Ha! Resolveu o jantar, hein? Hm? Que foi, Ryo?”
—“Ah, foi a primeira vez que vi ‘Habilidades de Combate’ em ação...”
—“Ah, claro. Magos não usam isso, né? A melhor forma que posso descrever é... técnicas reservadas exclusivamente para espadachins e outros que usam armas em combate.”
—“Entendi...” Ryo assentiu com ênfase.
—“De qualquer forma, temos coisas mais importantes pra fazer. Já vai escurecer, então devemos montar o acampamento. E o javali vai sangrar naturalmente porque eu o furei pela orelha. Isso facilita a hora de cortar e cozinhar...”
—“Você tem razão. Eu me lembro de passar por uma árvore enorme com um buraco. Que tal montarmos o acampamento lá? Deve ter espaço suficiente para fazermos uma fogueira,” respondeu Ryo. Finalmente, pensava no mais importante: comida.
—“Você é bem observador, hein? Então vamos cortar esse javali menor e pegar só as partes comestíveis.”
Abel pegou sua faca, pronto para desmembrar o monstro ali mesmo.
—“Vou buscar alguns galhos secos para acender a fogueira,” ofereceu Ryo, um mago da água habilidoso em fazer fogo.
A carne da coxa do javali menor estava deliciosa. A combinação de sal e pimenta-do-reino era, sem dúvida, a mais sublime para grelhar. Embora Ryo sentisse certa satisfação, não podia deixar de pensar que a refeição teria sido melhor com arroz.
Abel, por outro lado, parecia bastante satisfeito com o jantar. Talvez essa fosse a diferença entre alguém que passou muito tempo acomodado em uma vida lenta e alguém que passou muito tempo na estrada.
Ryo não esperava sentir saudades de casa tão cedo na viagem. Só agora percebia o quanto o arroz era um alimento básico em sua dieta. A tristeza da perda pesava sobre ele.
Se eu soubesse que seria assim, teria me forçado a arranjar um jeito de levar arroz comigo...
Ele ainda não tinha um plano concreto de como conseguir isso, mas estava convencido de que poderia. O arroz era crucial. Quando voltasse para casa, iria cultivá-lo com todo carinho e cuidado.
◆◆◆
—“Ok. Eu vou cochilar primeiro, Ryo. Duvido que vá cair num sono profundo, mas não hesite em me acordar se acontecer qualquer coisa.”
Com isso, Abel entrou na cavidade da enorme árvore. Ryo o acordaria quando a lua alcançasse o zênite naquela noite.
Já que tinha tempo, Ryo decidiu praticar o controle de sua magia.
Ele tinha bastante energia mágica sobrando porque tudo o que fizera naquele dia foi caminhar — nem combate houve. Não sabia exatamente quanta energia mágica recuperaria durante o sono, mas supunha que ao menos seria suficiente para repor o que gastasse no treino noturno.
Antes, costumava praticar controle mágico construindo pagodes de cinco andares ou até a Tokyo Skytree em sua propriedade. Mas ultimamente, gostava de criar a Tokyo Tower no menor tamanho possível.
Como na maioria das coisas, é extremamente difícil reduzir o tamanho de um objeto grande. Miniaturização requer tecnologias específicas, além de uma atenção cuidadosa do design à fabricação.
E essa atenção aos detalhes é justamente o que magia — ou mais especificamente, o controle dela — exige.
Ryo precisava de uma enorme quantidade de energia mágica para erguer a enorme Skytree. Porém, em termos de controle mágico, achava que podia treinar melhor construindo várias pequenas Tokyo Towers. Pelo menos era assim que se sentia.
Independentemente do tamanho das criações, ele gostava do treino e estava perfeitamente satisfeito com ele.
Ele construiu lenta e cuidadosamente uma Tokyo Tower usando fios de gelo mais finos que um fio de linha. Mão direita, mão esquerda, pé direito, pé esquerdo. Usava os quatro membros ao mesmo tempo — usar só um de cada vez já não exigia concentração suficiente para ser um exercício.
Afinal, não é importante criar treinamentos que sejam ao mesmo tempo divertidos e desafiadores?
Enquanto Ryo criava suas Tokyo Towers nas palmas das mãos e nas pontas dos pés, vários monstros se aproximaram, atraídos pelo seu cheiro. Abel lhe pedira para acordá-lo se monstros aparecessem, mas Ryo preferiu deixá-lo dormir. Afinal, eles teriam um longo caminho pela frente no dia seguinte e o descanso era essencial.
Então Ryo egoisticamente decidiu lidar com a situação sozinho. Os monstros não eram fortes, o que significava que ele não precisou se mover do lugar para eliminá-los. Bastou espetar um deles na cabeça, da orelha direita até a esquerda, com um Jato d’Água — assim como Abel fizera antes com o javali menor usando a espada.
Claro, Ryo sabia por experiência própria como era fácil perfurar a cabeça de um monstro pelas orelhas. Isso garantia uma morte silenciosa, evitando incomodar o sono de Abel. Também não precisou se preocupar em se livrar dos corpos — guardou um coelho menor para o café da manhã e deixou os demais para que outros monstros carniceiros se alimentassem à noite. Quando estiverem saciados, não virão atrás de Ryo nem de Abel. Assim funciona a floresta durante a noite.
Mais tarde, naquela mesma noite, Abel revezou com Ryo para manter vigília. Sentado perto da fogueira, percebeu o corpo do coelho menor e notou onde o sangue havia escorrido da orelha.
Uma única estocada com a faca na cabeça, hein? Nada mal... Espera. Peraí. Ele conseguiu derrubar um coelho menor numa só investida? E com uma faca? Nem acho que a habilidade dele seja o problema agora. Não faz sentido o porquê de ter ido atrás dele em primeiro lugar. Será que o coelho não fugiria quando ele se aproximasse? Se não fugiu, será que Ryo é tão silencioso assim? Acho que ele nasceu para lutar com facas, não para ser mago. Não esperava menos de alguém que vive sozinho nesta floresta.
Após colocar mais gravetos secos na fogueira, Abel pegou a caneca e o jarro que Ryo fizera de gelo.
E isso é outra coisa que não entendo. Quando diabos ele fez essas coisas? Disse que eu podia beber se ficasse com sede enquanto ele dormia, mas... estou preocupado com o suprimento de magia dele. Antes do jantar, ele nos borrifou com água, dizendo que um banho improvisado serviria, já que não podíamos tomar banho de verdade. Isso, junto com a caneca e o jarro, deveria ter consumido muita energia mágica... mas não parece que ele tenha acabado... Hmmm, não entendo mesmo.
Ele olhou para Ryo, encolhido na túnica enquanto dormia na cavidade da árvore.
Sim, eu realmente não acho que essa túnica seja normal... Tenho quase certeza que nenhum humano a fez, pelo menos. Isso levanta a pergunta... que tipo de professor dá algo assim como presente de despedida? “Preciso avisá-lo que vou ficar ausente por um tempo.” Quando me disse isso, achei que falava do espírito de alguém que morou com ele, mas... um espírito definitivamente não lhe deu esses presentes. Se não foi um humano, o que será? Uma criatura lendária, tipo dragão? Sei que não é algo feito por mãos humanas. Então... ainda é possível que seja um espírito... Não. De jeito nenhum. Mas, enfim...
Suas perguntas sem fim só geravam mais dúvidas, jamais respostas. Tudo bem. Ele não tinha mais o que fazer enquanto vigiava. Um jeito bom de passar o tempo.
Eventualmente, o céu a leste começou a clarear e Ryo naturalmente acordou por volta dali.
—“Bom dia, Abel.”
—“É, bom dia.”
Aquela noite passou sem que nenhum monstro atacasse Abel.
◆◆◆
Depois de comerem a carne do coelho menor que Ryo havia caçado durante a noite, os dois partiram rumo ao norte. Claro, não havia estradas na densa floresta. Mal conseguiam distinguir trilhas usadas por animais, mas eram difíceis de percorrer.
Andavam em fila indiana, com Abel na frente e Ryo atrás. Foi sugestão de Abel. Mesmo se monstros os atacassem de repente, como espadachim ele poderia reagir rápida e eficientemente, era seu argumento.
Ryo não se opôs. Gostava de ficar atrás, criando pequenas Torres de Tóquio nas palmas das mãos enquanto caminhavam. Manter vigília por trás era perfeito para ele. Liderar significaria focar tanto à frente quanto atrás, o que o cansaria mais rápido.
Aquele dia, monstros atacaram esporadicamente, mas eram fracos: coelhos menores, javalis menores e cobras menores.
—“Ryo, deixaremos os corpos onde estão. Quando o meio-dia chegar, decidiremos quais guardar para o almoço.”
—“Entendido.”
Pedras mágicas também podiam ser extraídas perto do coração desses monstros. Alquimistas as usavam, mas as pedras de monstros “menores” eram pequenas e de má qualidade, inúteis para os aventureiros. Ninguém as comprava, então recolhê-las era desperdício.
Monstros maiores, porém, possuíam pedras mágicas valiosas, vendidas por bons preços. Nenhum desses cruzou o caminho de Ryo e Abel na floresta.
Abel comandava o combate. Ryo o observava de trás. Ontem, pela primeira vez, aprendera sobre Habilidades de Combate — conceito que o fascinou muito. Claro, ele não podia usá-las, e tinha a impressão de que o Dullahan também não as usava durante seu treinamento de esgrima. Talvez seus olhos não fossem bons o suficiente para percebê-las.
Notou que, ao ativar uma Habilidade de Combate, parte do corpo de Abel brilhava em branco. As habilidades — Passo Lateral aumentava a força das pernas ao desviar para o lado; Impalamento Total fortalecia a pegada e a parte superior do corpo.
Nos vinte anos que passou cruzando espadas com o Dullahan, seu mestre nunca brilhou assim. A conclusão que tirou foi que o Dullahan nunca usou essas habilidades. Se atingiu força tão grande sem elas, ótimo. Não via problema nisso, mas não conseguia parar de pensar nas técnicas recém-descobertas.
Além disso, o fato de Abel virar o jogo num único movimento dizendo “Habilidade de Combate: XXXX” era incrivelmente legal — mexia com o senso de protagonista de Ryo.
Por outro lado, Abel notou o olhar intenso de Ryo que o devorava durante o combate.
“Será que ele se interessa por esgrima?” pensou Abel. “Não me surpreende, já que esgrima tem aspectos de luta com faca...”
Abel estava acostumado a ser observado, então não se importou com a curiosidade de Ryo.
Chamado de prodígio desde criança, aprendera magia, mas nunca se identificou com ela, o que o fez amar ainda mais a espada. Passava os dias treinando. Aprendera várias Habilidades de Combate.
Segundo filho de seu pai, não precisava assumir a chefia da família. Aproveitou essa sorte para virar aventureiro aos 18 anos. Agora, com 26, era um renomado aventureiro rank B.
Por volta do meio-dia, Ryo e Abel chegaram a uma pequena clareira na floresta. Foi onde o falcão assassino de um olho atacara Ryo de surpresa há algum tempo...
Klink.
Abel desembainhou a espada e a golpeou à sua frente, repelindo algo invisível.
—“Um falcão assassino!” gritou Ryo.
Abel olhou para cima e viu uma enorme ave batendo as asas no ar, olhando fixamente para eles.
—“Aquele ataque foi magia do ar,” disse Ryo correndo para ficar ao lado de Abel.
—“Um falcão assassino, hein? Isso não é bom. Se fosse eu e meu grupo, fugiríamos para a floresta. E você?”
—“Infelizmente, não podemos fugir. Tem um javali comum atrás de nós e um monstro que nunca vi antes à frente.”
—“Sério? Quando eles chegaram? Caiu numa armadilha?”
Ryo refletiu e balançou a cabeça.
—“Não, acho que foi coincidência. Essa clareira deve ser terreno de caça do falcão assassino.”
Falcões assassinos sabem usar vantagens melhor em clareiras abertas como aquela. Ryo podia confirmar por experiência com o falcão de um olho.
—“E agora, o que fazemos?” perguntou Abel.
—“Por enquanto, vamos ignorar o monstro na frente. Se lutarmos aqui, ele provavelmente não aparecerá.”
—“Boa ideia. Então, venceremos o falcão e o javali comum, né?” suspirou Abel, preocupado com o perigo.
—“Eu cuido do falcão assassino, você do javali, Abel.”
Ryo surpreendeu Abel. Mesmo um espadachim morreria se descuidado contra os ataques de um falcão assassino.
—“Mas...” começou Abel.
—“Imagino que seja difícil para um espadachim lutar contra uma criatura aérea assim. A defesa, como mago da água, é minha especialidade. Podemos preparar as carnes do pássaro e do javali para o almoço.”
Ryo sorriu.
—“Tá, então. Vou voltar correndo aqui depois de acabar com o javali. Não morra.”
Abel virou-se e saiu correndo.
—“E você, mantenha a cabeça fria, Abel, ou vai se machucar.”
—Ouvi alto e claro.
Quando Abel e seu grupo enfrentavam um javali, o tanque Warren interrompia a investida, enquanto ele e Lyn, a maga do ar, davam o golpe final combinando espada e magia.
Mas Warren não estava ali, e quanto mais Abel demorasse, maior o risco de Ryo morrer para o falcão assassino.
—“Tenho que acabar rápido.”
Logo, Abel viu o javali comum.
—“Incrível como Ryo sentiu esse monstro tão longe. Mas não importa agora. Morro se não focar.”
Ao ver o humano se aproximando, o javali lançou duas pequenas pedras na direção de Abel.
—“Não vou levar um golpe. Habilidade de Espada: Sombra Perfeita.”
A Habilidade Sombra Perfeita permite desviar de ataques de longo alcance, inclusive mágicos, com o mínimo de movimento. Abel usou a técnica em corrida, mantendo o ritmo e desviando da chuva de pedras.
O javali abaixou a cabeça, sinalizando a investida. Normalmente, Abel esperaria e desviaria com Passo Lateral, mas o tempo era curto.
—“Não tenho escolha. Vou abrir mão do Passo Lateral.”
Enquanto murmurava isso, o javali avançou em velocidade incomparável para um javali comum.
—“Habilidade de Espada: Giro Zero.”
Ao se encontrarem, Abel desviou girando a perna direita 45 graus, aproveitando o impulso para cravar a espada no lado esquerdo do inimigo, perfurando sua orelha esquerda.
—“Giiii.”
O javali caiu enquanto seus gemidos ecoavam pela floresta. Abel ajoelhou, exausto. Mesmo prodígio, executar movimentos assim consecutivos era cansativo.
Sem tempo para descanso, Ryo lutava contra o falcão assassino na clareira.
Abel se ergueu com força de vontade, respirou fundo e controlou a respiração antes de correr de volta para Ryo.
Abel estava mais lento por causa da luta, mas correu o máximo que pôde. Ao chegar na clareira, viu...
Ryo cortando o pescoço do falcão para drenar o sangue.
—“Oi, Abel. Bem-vindo de volta.”
—“Ah... valeu... Você o derrubou?”
—“Sim, eu derrubei. Estava quase começando a sangrar. Lembra do monstro que mencionei à nossa frente? Eles recuaram floresta adentro.”
Abel caiu de joelhos.
—“Hã? Abel? Tá tudo bem? Se machucou?” perguntou Ryo, preocupado.
—“Não, tô bem. Nem um arranhão.”
Abel só ficou aliviado por estarem vivos e preferiu não dizer mais nada.
◆◆◆
—“Certo, teremos frango frito de bandido e bochecha de javali assada no almoço,” disse Abel, se referindo a ambos os pratos.
—“Abel, a pimenta-do-reino ajuda na recuperação, então não economize nela.”
—“E-Entendi.”
Ryo estalou os lábios, saboreando seu primeiro prato de aves em um bom tempo. Comparado aos monstros do tipo coelho e javali, as chances de encontrar aves eram bem menores. Abel tinha muito o que dizer, mas aventureiros eram do tipo que priorizavam a comida quando ela aparecia, já que isso era uma habilidade essencial. Então, ele focou em devorar a refeição.
Por um tempo, só o som da mastigação ecoou na clareira.
Abel estava exausto depois de usar duas Habilidades de Espada em rápida sucessão, mas se sentiu muito melhor após terminarem de comer. Ambos beberam a água que Ryo havia produzido e exalaram em satisfação.
—“Se já fosse o anoitecer, sugeriria montarmos acampamento aqui mesmo,” disse Abel. “Me sinto tão bem assim.”
Ryo sorriu com um misto de tristeza e compreensão. —“Você não quer se reunir com seus amigos o quanto antes, Abel?”
—“Quero, mas sinto que vai levar semanas, já que não sabemos o caminho. Então não adianta correr.”
—“Hm, você tem razão. Nem podemos estimar quanto tempo a jornada vai durar. Mas ainda temos luz para caminhar mais algumas horas, então vamos seguir,” disse Ryo, levantando-se.
—“Acho que não tenho escolha, né?”
Abel levantou-se também.
—“Você precisa ser mais proativo, Abel. O objetivo da jornada é justamente levar você de volta para seus amigos...”
Mais tarde, caminhando na formação usual — Abel na frente e Ryo atrás —, o espadachim chamou Ryo.
—“Ei! Queria conversar sobre a batalha de antes...”
Ryo manteve-se perto de Abel, pois a floresta era tão densa que eles poderiam se perder facilmente se se afastassem.
—“Claro, sobre o que é?”
—“Como você se defendeu dos ataques do falcão assassino? A investida e os ataques invisíveis de magia do ar não são brincadeira. Ele também se move rápido demais para reagir só pela visão,” explicou Abel, observando a floresta à frente.
—“Usei um feitiço de água chamado ‘Muralha de Gelo’. É uma barreira feita de gelo.”
—“Uau, magia assim realmente existe?”
—“Abel, por favor, vire-se e me encare.”
Quando Abel se virou, não viu nada fora do comum. Ryo estava a poucos passos dele. Espera, algo não estava certo...
—“Hm? O que é isso?” Abel disse, franzindo a testa para a parede transparente. Ele bateu os nós dos dedos nela.
Knock. Knock.
—“É tão clara.”
—“Pois é. Difícil notar, né?” disse Ryo.
Agora entendi. O falcão assassino se matou ao se chocar contra essa barreira transparente, né?
Com isso em mente, Abel continuou.
—“A magia da água é incrível, hein? Lamento dizer, mas não conheço nenhum mago da água, por isso sei pouco sobre eles.”
Conhecia vários magos de fogo, ar, terra e luz, mas nenhum de água ou trevas. A magia das trevas era tão rara na Província Central que encontrar um mago desses era difícil até procurando por toda a região. Quanto à água...
—“Aquele velho me disse que magos da água não vão bem em combate, mas é claro que você manda bem. Quero dar uma bronca nele na próxima vez que o ver.”
—“Hm? O que disse, Abel?”
—“Ah, nada. Só falando sozinho. Não ligue.”
Ryo não conseguia parar de pensar no monstro que sentira à frente da clareira quando lutava com o falcão assassino. Ao menos sabia que era um tipo que nunca encontrara antes. Depois que começaram a lutar, o monstro foi embora sem aparecer. Agora eles estavam passando pela área onde Ryo suspeitava que o monstro estivera para confirmar. Não via sinais de árvores caídas. Se fosse grande, certamente derrubaria árvores ao passar, dada a densidade da floresta.
Suponho que é natural eu ficar obcecado com isso.
Se não adianta pensar, então nem pense. Mais uma das qualidades de Ryo.
◆◆◆
—“Já tem um tempo que eu ando ouvindo algo,” Abel sussurrou.
Ryo assentiu.
Continuaram a andar por mais um tempo, até que a floresta deu lugar a um pântano. Lá, encontraram seres que não eram humanos, javalis ou mesmo coelhos.
Os bípedes tinham faces parecidas com lagartos e mediam cerca de dois metros de altura. Seus corpos pareciam cobertos por escamas. Caudas finas cresciam em suas costas. Empunhavam lanças brancas do tamanho deles.
—“Pessoas-lagarto...” Abel murmurou, franzindo o cenho. Pessoas-lagarto viviam em grupos, o que significava que uma aldeia ou assentamento provavelmente existia mais fundo no pântano.
—“Pessoas-lagarto... monstros que habitam áreas úmidas em grupos,” disse Ryo. “Quando amadurecem, eles perdem as caudas, que depois usam como lanças. Não conseguem se comunicar com humanos, então atacam humanos à vista. Órgãos humanos estão entre suas comidas favoritas.”
Abel olhou surpreso para Ryo. —“Você sabe bastante sobre eles, hein? Já lutou contra eles?”
—“Não, nada disso,” Ryo respondeu, balançando a cabeça. “Só li a entrada deles em um dos livros que tinha em casa, O Compêndio de Monstros, Edição Iniciante.”
—“Faz sentido. Pessoas-lagarto não usam magia, mas são perigosos em seu habitat, os pântanos. Além disso, vivem em grupos, então são muitos. Vamos dar a volta por aqui.”
Claro, Ryo não se opôs. Ambos viraram para o sul, que também era contra o vento.
Depois de caminhar uma boa distância, deixaram os pântanos para trás e retomaram o rumo norte. Apesar de não saberem o tamanho exato do pântano, concordaram que era melhor se afastar o máximo possível.
Mas... o plano deles logo desmoronou.
—“Abel, parece que os pessoas-lagarto nos notaram.”
—“Sério?” Abel respondeu. Estavam novamente na floresta densa, onde os pessoas-lagarto não representavam tanta ameaça. —“Acha que devemos enfrentá-los aqui?”
—“Não se preocupe comigo e lute como sempre, ok?”
—“E-Entendi. Não exagere, tá? Só faça o melhor com a sua muralha de antes.”
Agora que o conhecia, Abel sentia que Ryo conseguia se virar muito bem sozinho.
Claro que sim, considerando que ele vivia sozinho na floresta. Certo, então. Só tenho que manter os que estão na minha frente ocupados para que não me circulem!
Enquanto esses pensamentos rodavam em sua cabeça, a vanguarda dos pessoas-lagarto apareceu.
—“Não sei quantos inimigos há do lado deles, então vou guardar minhas Habilidades de Combate por enquanto.”
Abel investiu e derrubou o primeiro pessoa-lagarto com um golpe horizontal da espada que matou instantaneamente. Depois virou-se para a direita, avançando contra a segunda e depois a terceira criatura; assim, Abel cortava um a um, sem dar chances para cercá-lo. Com mínimos movimentos, eliminava todos.
Ele era um espadachim excepcional mesmo sem usar Habilidades de Combate.
—Abel é incrível, pensou Ryo. Não hesita nem um pouco. Não é autodidata. Cada movimento dele é refinado, prova do treinamento desde criança.
Ryo estava sinceramente impressionado. Um espadachim de primeira linha, forjado com esforço próprio, estava diante dele. Contudo, mesmo Abel, por mais habilidoso, perdeu dois pessoas-lagarto que escaparam e vieram direto para Ryo.
—“Tô bem!” gritou Ryo.
Abel lançou um rápido olhar para o companheiro antes de voltar a terminar os pessoas-lagarto ao redor.
—“Lança de gelo 2,” gritou Ryo.
Duas lanças de gelo dispararam das mãos de Ryo, perfurando certeiramente as testas dos monstros.
—“Faz tempo que não usava esse feitiço.”
Quando estavam para acabar com os pessoas-lagarto, algo totalmente diferente se aproximou.
—“Abel, algo grande está para se juntar aos pessoas-lagarto.”
—“O quê?” Abel questionou, mas continuou focado nos inimigos. O algo grande que se aproximava era...
—“Um rei-lagarto! Droga, por que justo agora?! Vai voltar e dormir no seu colônia!”
Cada colônia tinha apenas um rei-lagarto. Embora fosse uma ordem superior dentro dos pessoas-lagarto, não era uma verdadeira evolução. Um rei-lagarto, como um rei ou chefe para humanos, era apenas o líder do grupo — com a ressalva importante que apenas os maiores e mais habilidosos guerreiros podiam se tornar reis-lagarto.
—“Quatro pessoas-lagarto e um rei, hein? Que saco.”
—“Abel, você cuida do rei. Eu derrubo os outros com magia.”
—“Mas, Ryo, você não tem um cajado...”
—“Lança de gelo 4.”
Assim como as duas lanças de antes, essas quatro também atingiram certeiramente as testas dos quatro pessoas-lagarto restantes.
—“Você tá brincando,” disse Abel, surpreso.
—“Eu... acabei de vê-lo lançar quatro lanças de gelo, né...? Mas lembro que Lyn me disse que magia em disparos rápidos não existe... Espera, talvez exista na magia da água? Porque tecnicamente não é disparo rápido? Agora fiquei ainda mais confuso.”
—“Abel, o rei-lagarto está vindo.”
As palavras de Ryo despertaram Abel da confusão.
—“Ok, depois eu penso nisso. Primeiro, derrubo o rei-lagarto.”
Como era um combate um contra um, e fora do pântano, mesmo um rei-lagarto não seria páreo para Abel.
Era difícil ficar ali dado o monte de cadáveres espalhados, então seguiram rumo ao norte e mataram a sede pelo caminho.
—“Água, flua. Cálice, surja,” disse Ryo, achando legal recitar o feitiço na frente de Abel.
Abel examinou a criação de Ryo enquanto andava e bebia água. —“Ei, Ryo.”
—“O que foi, Abel?”
—“Você lembra da noite passada, quando colocou água na jarra? Não era o feitiço ‘Água, nasça’?”
—“Ehhh...” Ryo desviou o olhar de Abel. —“F-Foi isso? Você não deve estar imaginando, Abel?”
Com Ryo agindo tão suspeito, nada do que ele dissesse soaria convincente.
—“Ah, tanto faz,” disse Abel. —“E aquelas lanças de gelo antes, o que foi aquilo?”
—“O que você quer dizer com ‘o que’... É só o nome do feitiço. São Lanças de Gelo criadas pela magia da água.”
—“Não, deixa eu ser mais claro. Você lembra das que voaram contra os quatro pessoas-lagarto?”
—“Sim, voaram mesmo. É assim que a magia funciona. Então... não tenho uma resposta pra você.”
Abel pensou em como perguntar, mas decidiu contar os fatos que sabia. —“Uma amiga minha é maga do ar e, segundo ela, um feitiço equivale a uma magia lançada. Mas você lançou quatro Lanças de Gelo. Achei estranho.”
—“Não sei como funciona para os magos do ar, mas o que você viu é normal para um mago da água,” disse Ryo, confiante. —“Sem problema algum.”
—“Ah. Então é assim...”
Confrontado com a confiança absoluta de Ryo, Abel não teve o que responder.
Após caminhar trinta minutos do local do massacre, chegaram a uma pequena clareira na floresta. A experiência ensinara Ryo que falcões assassinos provavelmente apareceriam em locais assim, mas como nenhum surgiu, decidiram montar acampamento.
—“Sobre o jantar... acho que pessoas-lagarto não são nada saborosas, né?” perguntou Ryo.
—“Pois é, a carne deles é incrivelmente nojenta. Por isso deixei os corpos para trás.”
—“Achei que fosse assim... então vou caçar alguma coisa. Abel, você pode recolher gravetos e acender a fogueira?”
Abel aceitou prontamente a sugestão, sem mais dúvidas sobre as habilidades mágicas de Ryo. Também reconhecia que magos eram muito melhores para essa função que espadachins.
—“Fechado. Vou atrás de algo pra gente,” disse Abel, começando a juntar galhos secos, enquanto Ryo adentrava um pouco mais a floresta.
—Haaa... Acho que vou me limitar a ‘Água, flua’ daqui pra frente, pensou Ryo despreocupadamente.
Ryo não teve dificuldades em encontrar um coelho normal, que matou com Jato de Água. Depois achou uma árvore de nêspera.
—“Oooh, agora podemos ter sobremesa no menu de hoje.”
Voltou para o acampamento com os braços cheios de coelho e nêsperas. Abel também retornava com galhos secos.
—“Abel, temos frutas de sobremesa hoje.”
—“Sério? Nunca vi essas frutas...”
—“Mesmo? Acho que o pessoal deste país não come isso, hein? Chamamos essas de ‘biwa’ de onde eu venho. Também são conhecidas como ‘nêsperas.’”
—“Nunca ouvi esse nome também. Têm um cheiro doce. Mal posso esperar para provar.”
Abel largou os galhos e começou a acender a fogueira.
—“Cálice, surja. Taça, surja. Água, flua.”
Ryo entregou o copo de água para Abel enquanto ele cuidava do fogo.
—“Você ouviu o feitiço, Abel? ‘Água, flua.’ Ouviu, né? É o correto. Legal, né? Fácil de lembrar?”
—“Ah, claro...”
Ryo aprendera a aplicar um pouco de pressão para conseguir o que queria.