
Volume 1 - Capítulo 7
The Water Magician
O tempo passou rápido depois da sua batalha final contra o falcão assassino de um olho, assim como depois do encontro casual com Lewin... Os sentidos de Ryo indicavam que haviam se passado cerca de vinte anos desde então... mais ou menos.
No começo, ele contava os dias para medir a passagem do tempo desde sua reencarnação, mas depois que o verão passou, o outono chegou, o inverno veio e a primavera retornou, Ryo desistiu dessa tarefa. Percebeu que, no fim das contas, não fazia sentido mesmo marcar os dias. Ainda assim, tinha certeza de ter vivido o ciclo das estações pelo menos vinte vezes até agora...
Naquele momento, um espelho de corpo inteiro feito de gelo refletia a aparência de Ryo com nitidez. Ele havia ajustado o grau de refletância do gelo para que funcionasse como um espelho, mas... a imagem refletida não mudava em relação à que ele viu quando foi reencarnado.
“Eu... não estou envelhecendo, né?”
Seu cabelo ainda crescia, e ele o cortava de vez em quando. As unhas também cresciam, então ele as aparava. Sua altura, porém, permanecia a mesma... assim como seu rosto jovem.
“Dezenove para sempre... Que fantasia assustadora...”
Ryo sabia que isso não era normal. Também não acreditava que o fenômeno pudesse ser explicado apenas pelas circunstâncias fantásticas da sua nova vida, mas também não se aprofundou muito nisso. Afinal, ter reencarnado em outro mundo já era algo longe do normal.
Logo, uma nova crise invadiu a vida lenta de Ryo.
Aquele dia, ele havia ido ao mar para conseguir sal e saciar a vontade de comer peixe marinho grelhado com sal, algo que não desfrutava há tempos. Desde que quase fora morto por um kraken na sua última imersão, não encontrara outro. Ele ia ao mar apenas duas ou três vezes por ano, e claramente as vezes que quase morrera haviam ficado gravadas na sua memória, afetando seu comportamento inconscientemente. Resumindo, ele não gostava muito do mar, apesar de ser mago da água.
“Não, espera. Não é que eu não goste do mar. Só que não gosto de krakens! Eu até acabei comendo aquele camarão!”
Isso mesmo. Ryo havia comido o mesmo camarão que o havia nocauteado com sua bolha de ar na primeira vez que mergulhou no mar. Também investigou detalhadamente a composição da sua enorme garra. A surpresa maior foi descobrir que, apesar do poderoso ataque da bolha de ar, o camarão era um animal comum e não um monstro. Ele concluiu que era uma versão gigante do camarão pistola após se lembrar de ter visto vídeos deles, que vivem nas águas costeiras do Japão.
Quando a garra gigante se fecha, cria uma bolha de ar que gera ondas de choque ao estourar. Esse fenômeno é chamado de colapso de bolha ou cavitação, e o plasma gerado durante o processo produz temperaturas de até 4.400 graus Celsius. Os camarões pistola do Japão medem cerca de cinco centímetros, mas podem gerar plasmas de tamanho similar.
Os três estados da matéria mais conhecidos são sólido, líquido e gasoso, mas há um quarto—plasma. O fato de uma garra animal poder gerá-lo mostra a força assustadora da natureza... Caçar e comer aquele camarão fez Ryo vencer seu medo dele, mas não o mesmo para o kraken. Até hoje, ainda não superou o medo daquela criatura.
Voltando ao passeio de Ryo ao mar: ao chegar, o que o aguardava era... em uma palavra, desastre. O contraste entre a bela praia de areia branca e o horizonte azul era sempre surreal, mas naquele dia parecia que um navio havia naufragado, espalhando destroços pela costa.
Havia pessoas entre os escombros, três delas, aparentemente. Seu primeiro encontro real com humanos nos vinte anos (pelo cálculo de Ryo, ao menos) desde sua reencarnação em Phi vinda da Terra.
Ele se aproximou cautelosamente e colocou a mão sobre as jugulares para checar se estavam vivos. Dois já estavam mortos, mas o terceiro ainda respirava. Parecia ter cerca de vinte e poucos anos, cabelos castanho-avermelhados e corpo musculoso, porém não robusto. Uma espada impressionante repousava em sua mão: uma bastard sword, longa, mas não muito grossa, que podia ser usada com uma ou duas mãos. Claramente, um homem que vivia pela espada.
“Duvido que minha consciência me deixe em paz se eu o abandonar agora, né?”
Foi horrível para Ryo considerar a possibilidade, mesmo que por um instante.
“Carrinho.”
Ele gerou um carrinho de dois metros de comprimento feito de gelo. Um carrinho autopropelido, com movimentos simples, capaz apenas de segui-lo. Ryo costumava usar seu Ice Bahn para transportar coisas, mas puxar manualmente — especialmente a quantidade crescente de caça que abatida numa única expedição — estava ficando chato, então ele inventou o carrinho como solução.
Na verdade, queria criar um golem bípede que andasse sobre qualquer terreno irregular, mas todas as tentativas haviam fracassado até então. Mesmo vinte anos depois, ainda não conseguia produzir um golem funcional.
De qualquer forma, ele havia construído um caminho de paralelepípedos entre sua casa e a praia para as poucas idas anuais ao mar, e o feitiço do carrinho funcionava bem naquele trajeto. Decidiu carregar o homem ainda respirando e os materiais recuperáveis em volta e, então, voltar para casa.
“Ah, o sal... Posso pegar depois.”
Quando estava para colocar o espadachim no carrinho, Ryo notou um fluxo abundante de sangue saindo de um ferimento profundo no braço esquerdo do homem.
“O sangue é vermelho vivo... Isso significa que uma artéria foi atingida? Ele vai sangrar até morrer nesse ritmo. Hmmm...”
Olhou ao redor atrás de algo para estancar o sangramento. O princípio básico para isso é aplicar pressão. Um pano ou algo parecido poderia servir.
Infelizmente, tudo que havia na praia estava sujo, o que aumentava o risco de infecção. Além disso, não tinha nenhum tecido ou linha para amarrar o ferimento.
“Não tenho escolha.”
Com essas palavras, passou a aplicar pressão no corte, empurrando a manga que o cobria, mas parecia não estar funcionando.
“O corpo humano adulto é sessenta por cento água. Dois terços dentro das células e o restante no sangue e líquidos intracelulares. Ou seja, como mago da água, eu deveria ser capaz de manipular o sangue humano também...”
Ryo visualizou o interior do braço esquerdo do espadachim. Em sua mente, atravessou a própria mão que o sustentava e penetrou no braço do homem...
Sentiu as correntes de água que circulavam pelo corpo... Então focou nos vasos sanguíneos.
“Encontrei o ponto do sangramento!”
Revestiu a parte externa da veia rompida com uma membrana de água, tomando muito cuidado para não esmagar o vaso...
“Consegui.”
Em sua mente, o sangue havia parado de vazar. Ainda assim, não saberia ao certo o que havia acontecido até tirar a mão que aplicava pressão no ferimento. Finalmente, levantou a mão para inspecionar o braço do espadachim. O sangue... não escorria mais!
“Ha! Dei um jeito. De algum modo.”
Com cuidado, carregou o homem no carrinho e o empurrou lentamente para casa.
Abel abriu os olhos e olhou ao redor.
“Alguém... me salvou?”
Podia mexer os membros livremente. Não havia correntes prendendo-o. O colar que sempre usava ainda estava lá. Sua espada, que considerava uma companheira, e o resto do equipamento estavam ao lado da cama onde repousava.
Não sentia dor ao mexer os braços e pernas. Quanto às roupas... usava calças, mas estava com o torso nu. Embora tivesse um ferimento relativamente recente no braço esquerdo, ele não sangrava.
No geral, estava em boa saúde e não parecia ter sido capturado.
Abel colocou os pés no chão e levantou-se da cama. Pegou a espada, que encostava na parede.
“Estou numa casa... uma bem grande, aliás. Talvez do prefeito da vila?”
Passou pela sala, abriu a porta da casa e saiu. Lá fora, o sol brilhava forte em um amplo quintal.
“Isso não é... uma vila? Onde eu estou, afinal?” perguntou para si mesmo.
“Ah, você acordou? Que bom que sobreviveu.”
Abel se virou surpreso. Não sentira a presença do outro homem. Ao vê-lo, ficou ainda mais espantado. Ele era quase uma cabeça mais baixo que Abel, aparentando ter uns dezessete anos, com cabelos e olhos negros, e pele bronzeada.
O mais chocante era que ele quase não vestia roupas. Apenas uma sandália e uma tanga feita de couro de animal cobriam seu corpo.
Quase certo de que até crianças de favelas usavam roupas decentes... Não, isso não era o que devia dizer primeiro para ele.
“Sou Abel. Você é quem me salvou, certo? Obrigado.” disse, fazendo uma reverência.
“Sem problema. Não fiz muito. Apenas carreguei você para casa depois que você chegou à praia. Infelizmente, só consegui salvar você, Abel. Os outros já estavam mortos...”
“Ah, então eles também chegaram aqui? Não se preocupe com eles. Eram contrabandistas.”
“Contrabandistas?”
Ryo havia contado a Abel que não existiam vilas nem pessoas por ali. Como a carne grelhada que ele havia comido era definitivamente de algum tipo de coelho, Abel supôs que Ryo deveria ter caçado o animal por conta própria. Pelo menos isso indicava que Ryo era capaz de se defender em uma luta. Caso contrário, não teria sobrevivido em uma terra onde krakens viviam na costa.
“A carne que você serviu mais cedo estava excelente, Ryo. Você mesmo caçou essa fera?”
Abel queria satisfazer sua curiosidade, mas hesitou em perguntar diretamente, então formulou a pergunta da forma mais sutil possível.
“Isso mesmo. Eu caço bastante na parte leste da floresta. O que comemos agora foi carne de coxa de coelho menor.”
“Ah, então... você luta com faca? Imagino que caçar coelhos menores com uma faca deve ser incrivelmente difícil.”
Subtilidade claramente não era o forte de Abel, já que ele fazia cada pergunta de forma direta.
“Ah, na verdade sou mago da água. Uso essas facas para autodefesa e para preparar a caça, nada mais...” disse Ryo, envergonhado, lembrando-se do que Fake Michael havia dito sobre apenas vinte por cento da população de Phi ter a capacidade de usar magia. Ele esperava que Abel dissesse algo como “Uau, você sabe usar magia?” ou “Você é um dos escolhidos, hein?” ou “Gostaria de poder usar magia também.”
Mas, na realidade...
“Magia, né?” disse Abel. “Apenas metade das pessoas nas Províncias Centrais sabe usar magia, sabia? Eu não sou uma delas, aliás.”
“Metade...”
Mas... Fake Michael disse que era vinte por cento! Ele mentiu para mim?!
Deprimido, Ryo se curvou, com a expressão quase cômica de desânimo.
“Hm? O que foi, Ryo?”
“N-Nada...”
“Ryo, quero falar com você sobre uma coisa,” disse Abel, abordando o assunto depois que terminaram de comer a carne grelhada e cuidar da limpeza.
“Hm? O que é?”
“Quero ir à praia onde cheguei para verificar uma coisa. Você se importa de me mostrar o caminho?”
“Não, de jeito nenhum. Vamos agora então?”
Ryo vestia sua indumentária usual: tanga, sandálias e as duas facas. Ele não usava muito o seu bastão-lança de bambu ultimamente. A única razão para tê-lo feito foi a sensação de segurança que ele lhe dava em combate à distância. Treinar com Murasame, a espada de gelo que recebera do Dullahan, e depois sua luta final com o falcão assassino de um olho, o ensinaram a dominar a lâmina especial, de modo que ele não precisava mais da segurança do bastão. Ele tinha, de fato, ficado mais forte.
Mas Abel não via as coisas assim.
“Ryo. Você disse que é mago da água, certo?”
“Sim, correto.”
“Então cadê seu cajado? Por que não está levando ele?”
“Bem...”
Nas Províncias Centrais, último lugar que Abel visitara, era princípio básico que magos possuíssem cajados, pois eles desempenhavam papel vital na vida dos magos — agindo como condutores de magia, ajudando os usuários a controlar a ativação e a eficácia dos feitiços. Sem cajados, os magos precisavam de dez vezes mais energia mágica para ativar sua magia e, ainda assim, produziriam apenas um décimo do efeito. Ou seja, Abel achava Ryo praticamente inútil sem um cajado.
“Ah, bem... eu não tenho um,” respondeu Ryo, nunca tendo usado cajado, varinha ou coisa parecida.
Abel lamentou profundamente por ter perguntado quando ouviu isso.
“Fui idiota de novo... Viver na pobreza é difícil de várias maneiras, então talvez ele tenha perdido o cajado em algum momento e isso não tenha sido prioridade. Como pude insultar meu salvador assim? Que pergunta estúpida... Ah, espera. Acho que ouvi rumores sobre ‘Magos do Inferno’ que usam magia monstruosamente mesmo sem cajado... Então talvez cajado não seja tudo que eu pensava.”
Apesar dos pensamentos conflitantes em sua mente, Abel tomou cuidado para ser mais discreto quando voltou a falar.
“Ah, claro. Nem todo mundo tem um. Como sou espadachim, enquanto eu tiver esta espada, estou bem,” disse Abel, batendo a arma nas costas. “Se algo acontecer, eu vou liderar a luta. Você pode ficar atrás, Ryo.”
“De jeito nenhum. Não posso deixar que você carregue todo o peso...”
“Por favor, me deixe fazer isso por você. Não me sinto bem sendo salvo sem poder retribuir. Pode chamar isso de honra,” disse Abel, aproximando o rosto do de Ryo.
“Ah, bem... se insiste. Obrigado. Vou contar com você quando for necessário.”
Foi a melhor resposta que Ryo conseguiu dar.
Os corpos mortos já não estavam mais na praia. Nem cinco horas haviam se passado desde que Ryo carregou Abel para casa, mas os cadáveres dos dois contrabandistas desapareceram. Claro, Ryo não havia mexido neles. Provavelmente, alguma coisa do mar os havia dado fim.
“Os outros dois certamente estavam mortos,” disse Ryo com indiferença. “Talvez algum necrófago tenha devorado seus corpos? Ou monstros marinhos os arrastaram para as profundezas.”
“Eu teria acabado como eles se você não tivesse me encontrado, Ryo,” disse Abel, gotas de suor frio escorrendo pelas costas.
“A sorte esteve do seu lado, hm, Abel?” perguntou Ryo, sorrindo alegremente.
“É... acho que sim. É assim que vou pensar. Também, não precisa falar tão formal comigo. Me deixa meio desconfortável, já que você é meu salvador.”
“É o certo, já que você é mais velho... Mas, se quiser, tudo bem.”
“Valeu por concordar. Prefiro manter as coisas casuais, como meus amigos fazem entre si.”
“Amigos, hein...” disse Ryo, refletindo sobre o conceito.
Pedi para Fake Michael me colocar num lugar isolado porque pensei que queria ficar sozinho. Mas... ter amigos soa bem. Acho até que fico com inveja. Vinte anos é muito tempo para ficar só.
Atrás dele, Abel procurava algo.
Eu sabia, pensou Abel. Não achei nada. Ou afundou no oceano. Pode até estar dentro do estômago do kraken. Não posso fazer muito agora. Vou pensar nisso quando encontrar os outros de novo.
“Não achei o que procurava,” disse Abel. “Obrigado mesmo assim, Ryo.”
“Que pena. E agora?”
“Para começar, quero voltar para meus amigos. Se eu conseguir chegar na cidade de Lune, devo conseguir mandar uma mensagem para eles...”
“Sinto muito, mas não sei onde fica isso,” respondeu Ryo, balançando a cabeça. “Acho que fica bem ao norte daqui... ou seja, vai ser uma caminhada longa. Aqui nem tem gente, muito menos cidades.”
“Sério... então vou ter que me preparar para tudo.” Abel ficou pensativo. Depois de um tempo, olhou para Ryo. “Ei, Ryo. Por que você não vem comigo?”
O convite de Abel foi uma surpresa total para Ryo. Navegar por essa floresta sozinho era um desafio. Seria difícil até para Abel, com sua habilidade na espada. Fazer pausas só tornaria a viagem mais difícil. Se fossem juntos, um poderia dormir enquanto o outro vigiava. Indo sozinho, Ryo não conseguiria dormir direito por estar sempre em alerta. Quanto mais tempo ficasse acordado e vigilante, mais cansado ficaria. E o cansaço leva a erros — fato inevitável para todos, novatos e experts.
Por isso, no mundo moderno da Terra, a menor unidade militar é a célula de dois homens.
Mesmo assim, até aquele momento, Ryo jamais havia imaginado deixar a Floresta de Rondo. Ele havia construído um arrozal perto de casa, cavado um sistema de esgoto e calçado os caminhos que mais usava com paralelepípedos. Cultivava uma grande variedade de frutas dentro da barreira. Apesar de estranhamente poucos legumes fazerem parte de sua dieta, não tinha do que reclamar da vida ali. De jeito nenhum. Mas... quando Abel pediu para que ele fosse junto, não pôde negar que uma parte pequena dele quis aceitar na hora.
Eu não reclamo. Também não estou infeliz. Mas... bem, eu meio que quero... só um pouquinho... ver como é uma cidade nesse mundo de espada e magia. Mas também acho que seria uma pena desperdiçar essa vida lenta que levei tanto tempo para construir pra mim...
A falta de reação de Ryo fez Abel ficar um pouco nervoso.
“Desculpa, devia ter preparado você melhor, né? Que tal ir comigo até Lune? Gostaria muito da sua companhia. Pense nisso como ser meu guia. Ou melhor, um trabalho! Sim, um trabalho. Vou te pagar para ir comigo. Se quiser tentar a vida na cidade, te ajudo. Nem faço ideia de como chegar em Lune daqui. Então, o que me diz...?”
Depois de despejar tudo isso, Abel baixou a cabeça e ficou em silêncio.
Ah, certo. Não preciso sair da Floresta de Rondo pra sempre. Posso voltar depois de ver um pouco do mundo. E não envelheço mesmo... Tenho quase certeza que a barreira do Fake Michael vai aguentar enquanto eu estiver fora.
Ryo não tinha base lógica para acreditar na barreira, só uma fé enorme no Fake Michael.
“Tá, tudo bem,” disse Ryo. “Preciso cuidar de algumas coisas antes, então o mais cedo que podemos sair é amanhã. Se isso estiver bom pra você, aceito o trabalho.”
“Ahhh, você é um salva-vidas, Ryo!”
Abel agarrou as mãos de Ryo com as suas e as sacudiu feliz. Para ele, Ryo era um raio de esperança. Sobreviveu até ali só porque Ryo o encontrou e o carregou para casa.
Ryo podia não saber onde ficava Lune, mas soava bastante certo sobre ela ser “bem ao norte.” Isso significava que ele sabia o suficiente da região para arriscar um palpite. Além disso, seria muito difícil para Abel sair sozinho, já que ele nem sabia o tamanho da floresta.
Ele pode não ser bom em combate, já que é um mago sem cajado, então eu cuido dessa parte. Vai ser bom ter alguém para revezar a vigília à noite. Ah, e vou comprar um cajado e roupas para ele na primeira cidade que encontrarmos. Aposto que ele não vai se sentir insultado com isso. Na verdade, acho que nem vão deixar ele entrar na cidade assim vestido...
Claramente, Abel achava que Ryo não tinha cajado e usava só tanga por causa da pobreza... Bem, pelo menos ele não estava errado sobre Ryo ser pobre.
Quanto ao próprio Ryo, sendo ele mesmo, decidiu cuidar de alguns detalhes para deixar a casa sozinha por um período indefinido.
Não precisava mexer na casa em si, já que a barreira e o silo haviam sido projetados com cuidado pelo Fake Michael. Ele sabia que continuariam funcionando bem mesmo sem sua presença.
O arrozal, porém, era uma perda. Teria que reconstruí-lo quando voltasse, então congelou um pouco do arroz ainda na casca. Poderia comer ou plantar depois.
O mesmo valeu para as frutas que cresciam no quintal. Só podia rezar para que algumas resistissem às chuvas.
Basicamente, quase tudo que deixava para trás ficaria bem, de um jeito ou de outro. O problema era o que levar consigo. O clichê isekai seria ter algum inventário infinito ou espaço mágico para guardar coisas... mas ele não tinha nada disso, então precisava escolher com cuidado o que levar.
Primeiro, decidiu levar sal e pimenta-do-reino preta. Guardou os temperos em um pequeno saquinho de couro de cobra pipa. Pendurado na cintura, não atrapalharia muito. Ele não precisava de muito, mas comida sem tempero era sem graça, então eram essenciais na jornada.
Também colocou ervas para curar ferimentos em sua forma natural dentro do saquinho, além de pederneira. Deveria conseguir fazer fogo com a faca que Fake Michael lhe dera.
Ele podia criar água sozinho.
Será que isso é suficiente? Nem levou tanto tempo assim, né?
Se você não precisasse de roupas extras como eu, poderia viajar leve mesmo.
Só faltava dizer adeus...
Depois do jantar, Ryo disse a Abel que sairia um pouco.
“Agora? Tão tarde assim?” Abel perguntou desconfiado.
“Sim. Essa é a única hora que podemos nos encontrar, então preciso avisar que ficarei fora por um tempo. Por favor, espere aqui enquanto eu não estiver.”
“Claro.”
Ele disse que ninguém mora por aqui, pensou Abel... Então para quem ele está avisando da viagem? Talvez o espírito de alguém que ele amava? Só porque está sozinho agora não significa que sempre foi assim. Enfim, não é problema meu.
Ryo estava na margem do lago situado no centro das extensas áreas alagadas ao norte. Quando a lua atingiu seu zênite no céu noturno, o Dullahan apareceu, como de costume, montado em seu cavalo sem cabeça. Nessa hora, a rotina normal seria Ryo assumir uma postura de luta com Murasame, sinalizar para o Dullahan fazer o mesmo, e cruzarem espadas.
Hoje era diferente. Ryo se aproximou de seu mestre sem retirar Murasame da cintura.
“Tenho algo a lhe dizer hoje,” disse Ryo. “Amanhã deixarei a Floresta de Rondo e não voltarei por um bom tempo, então a sessão de hoje será a última por um tempo.”
Ele não sabia se o Dullahan entenderia suas palavras. Na verdade, nem sabia o que era um Rei das Fadas. Mesmo que não entendesse, o Dullahan o treinava na arte da espada há muito tempo, então Ryo achou que era justo ao menos tentar expressar sua gratidão.
“Obrigado por tudo. De verdade, do fundo do coração. Só consegui sobreviver todo esse tempo por sua causa.”
Talvez Ryo tenha imaginado, mas o Dullahan parecia um pouco triste agora. Claro, ele não conseguia ler as expressões do Rei das Fadas por ele não ter cabeça nem rosto. Ainda assim, sentia uma tristeza que envolvia seu mestre.
“Não quero que nossa sessão seja como as outras. Quero que venha com tudo hoje à noite,” disse Ryo, criando a lâmina de Murasame.
Em resposta, o Dullahan desembainhou sua espada e assumiu sua posição.
Então, a luta começou.
Durou incansáveis duas horas. O placar ficou dois a três, favorável ao Dullahan. Embora Ryo tenha conseguido desferir dois golpes fatais, perdeu quando seu mestre finalmente acertou o terceiro.
Mais uma derrota não fez muita diferença para Ryo, já que ele nunca ganhara mesmo, então levantou-se para se despedir, ainda que se sentisse instável.
“Muito obrigado,” disse Ryo, curvando a cabeça profundamente.
O Dullahan se aproximou e lhe entregou algo.
“O que são— Uma túnica e uma capa? Para mim?”
Ele pegou as roupas e as vestiu. Serviam perfeitamente, como se tivessem sido feitas especialmente para ele. A túnica era branca, mas lindamente bordada e fácil de se movimentar. A capa, que parecia ser feita para combinar com a túnica, ganhava um tom azul-pálido quando colocada sobre ela. Sem contar o lindo degradê azul no forro!
Ryo se apaixonou imediatamente pelas roupas.
“Muito obrigado! Vou cuidar delas com muito carinho.”
Ele fez uma profunda reverência mais uma vez. Quando Ryo se endireitou, achou que podia sentir a satisfação de seu mestre. Logo depois, o Dullahan montou seu cavalo sem cabeça e desapareceu como de costume.