
Capítulo 2
Nv. 99 Princesa da Chama Negra
Um velho veículo de transporte militar percorria uma estrada de terra sem nenhum poste de luz. Gyeongju. Ijun viu a placa pela janela e encarou ansioso.
— Eunha, você já foi para Gyeongju?
— Não — respondeu Eunha, em tom curto. Ela segurava na mão uma comida de emergência sem gosto e sem nutrientes.
Ijun sorriu sem graça e coçou a bochecha. Eunha continuava levando a comida à boca com a mão que havia ferido no dia anterior. Ela nem sequer olhou para ele.
Eunha e Ijun eram amigos do acampamento, mas havia muitas coisas que ele ainda não sabia sobre ela. Havia ainda mais coisas que não entendia. Por exemplo, como ela conseguia mastigar e engolir aquela comida com tanta calma, mesmo podendo morrer naquele dia, ou como não se lembrava dos nomes dos colegas que estiveram rastejando ao seu lado por meses. Eunha definitivamente era diferente das pessoas normais. Embora nunca tivesse pensado em se tornar amigo dela, Ijun, na verdade, respeitava Eunha. Ela havia se tornado forte desde os tempos de acampamento. Diferente da habilidade insignificante de feromônios que ele possuía, ela controlava poderosas chamas. Era realmente uma habilidade otimizada para o combate. Provavelmente teria morrido no portão de Pyeongtaek se não fosse por ela.
“Mesmo que tivesse sobrevivido, teria ficado aleijado.”
Ainda se sentia assustado ao lembrar do lobo de três cabeças que enfrentou naquele dia. E agora, antes mesmo de se recuperar do trauma, estava a caminho do próximo portão em Gyeongju. Ijun lançou um olhar a Eunha, sentada ao seu lado. Observou-a devorar a comida em silêncio e decidiu tentar puxar conversa de novo, pois talvez não tivesse outra chance.
— Sempre tive curiosidade… Eunha, você fez contrato com alguma Criatura Mítica?
— Não.
— Sério? Por quê? Você era tão forte que achei que já tivesse feito.
Eunha lançou um breve olhar a Ijun, mas logo desviou. Ela não era difícil de lidar, mas também não era exatamente amigável. Mesmo assim, ele não podia desistir. Era uma oportunidade de se aproximar da melhor elite da sua turma. Ijun insistiu em continuar a conversa.
— Eu acho que o dragão combinaria com você entre as doze Criaturas Míticas, já que é a mais forte.
— Ah, é?
— É.
E assim, a conversa morreu novamente. Ele estava condenado. Ainda faltavam cerca de duas horas para chegarem a Gyeongju, mas a barreira entre eles parecia ainda mais espessa do que imaginava.
Foi quando Ijun já quase havia desistido. — …Você disse que é da América, né? — Guardando o restante da comida em um saco preto, Eunha falou de repente.
— Hã? Ah, sim. Meu pai é Americano.
— Ah, é? — Eunha passou a encará-lo. — Você é loiro, né.
— Uhm, é… — “Você só notou isso agora?”, Ijun ficou um pouco magoado, mas engoliu o sentimento.
— Você conhece a Faculdade Quinlish, nos Estados Unidos?
— Não, nunca ouvi falar. Onde fica?
— Em São Francisco. — Eunha acrescentou baixinho: — Era a faculdade para onde eu ia. Eu queria ser tosadora de cães.
— Mas por quê? — “Por que você não foi?”, Ijun engoliu as perguntas antes que pudesse formulá-las em voz alta. Ela era um ano mais nova que ele. Em outras palavras, os portões se abriram quando Eunha tinha dezenove anos.
— Lembrei agora, vendo você.
— Sinto muito.
— Por que pedir desculpas?
— Só… — respondeu Ijun, timidamente, lançando um olhar de esguelha para Eunha.
Ela havia desviado o olhar e encostado o queixo no braço, olhando distraidamente para a paisagem lá fora. O vento que entrava pela janela entreaberta agitava os longos cabelos negros de Eunha. Os fios, densos como um tapete, eram tão compridos que chegaram a fazer cócegas no nariz de Ijun.
Quando ele recuou o tronco para trás, Eunha olhou em sua direção. Em seguida, prendeu o cabelo no alto com o elástico que trazia no pulso. Ele imaginou que o cabelo dela teria cheiro de sangue, mas, para sua surpresa, cheirava apenas a sabão fornecido, igual ao dele. Ela parecia tão serena que era difícil acreditar que fosse a mesma Eunha Cha que, coberta de sangue, cortava monstros impiedosamente. Talvez por isso Ijun tenha conseguido reunir coragem.
— …Ei. Você gostaria de tosar meu cachorro algum dia? Ele é um bichon frisé, se chama William.
— …
— Ah, ele é muito bonzinho. — Ijun corou, como se estivesse envergonhado pela sugestão.
Eunha arregalou um pouco os olhos. Um breve silêncio se instaurou. Gotas de chuva começaram a bater na janela.
Drip, drop.
Conforme a chuva se intensificava, ele ouviu uma risada leve. — …Tá bom, tudo bem. — A risada era tão pequena e tênue que quase se perdia no som da chuva, mas Ijun sentiu que jamais esqueceria aquele sorriso.
— Ah, meu nome é Ijun Baek.
Ijun lançou um olhar de soslaio enquanto se recordava. Já se passavam três anos desde que começou a trabalhar com ela. Aqueles meses árduos os transformaram em caçadores decentes. Ijun, que antes era um estorvo, agora conseguia cumprir seu papel.
— Você ainda se lembra da promessa? — perguntou discretamente a Eunha, que caminhava alguns passos à sua frente.
— Que promessa?
— Você disse que ia tosar o William.
— Ohh. — Eunha assentiu brevemente. — Lembro, sim.
— Quando esta missão acabar, meu pai vai trazer o William para a Coreia.
Os olhos negros de Eunha voltaram-se para ele. Como sempre, Ijun baixou os seus, incapaz de encarar aquele olhar que parecia sugá-lo para dentro.
— E-eu-eu estava pensando, quando sairmos do portão amanhã… É… Você, você gostaria de… i-i-ir até minha casa? — Deuses… ele não sabia por que estava gaguejando tanto. Sentiu um impulso forte de morder a própria língua desobediente.
— Eu vou.
Ijun arregalou os olhos diante da aceitação tão fácil.
— Ele não morde, né?
— Hã?
— O William.
— Ah. Não. Ele é bonzinho.
— Certo. Vou esperar ansiosamente. — Eunha sorriu levemente e seguiu caminhando, com os cabelos negros esvoaçando.
Ijun ficou parado ali, atônito, por um longo tempo. Sentia que Eunha sorria mais do que antes. Ficaria imensamente feliz se, de alguma forma, isso fosse por causa dele.
Quando voltou a si, Eunha já estava bem à frente, de pé diante do portão. — O que está fazendo? Venha logo. — Ela fez um gesto.
Ijun não conseguiu conter o sorriso. Não se lembrava da última vez em que havia esperado pelo amanhã com tanta expectativa.
— Está com sua placa de identificação?
— Claro, Comandante de Esquadrão.
— Sem brincadeiras. Verifique.
Uma placa dourada de identificação representava ser um caçador. Um profissional carregava uma ‘placa de certificação’ e um soldado, uma ‘placa de identificação’. Eles conferiram as placas um do outro mais uma vez, misturaram-se ao grupo de caçadores e entraram no portão.
Esse portão era branco. Isso significava que era um portão de rank C, com o menor nível de dificuldade. Naquele momento, onze pessoas, incluindo Eunha e Ijun, foram enviadas para dentro. Um esquadrão inteiro de caçadores não precisava ficar ansioso. Mas acidentes sempre aconteciam de forma inesperada.
— O-o que é aquilo?! — Quando alguém gritou de medo, eles já estavam cercados.
Havia um tigre negro, dois… O número aumentava e, quando perceberam, os caçadores já estavam encurralados. Os tigres tinham corpos negros, dentes negros e garras negras, mas os olhos brilhavam em vermelho. Eram duas vezes maiores que um homem adulto e podiam esmagar um crânio como se fosse uma melancia apenas com um golpe das patas dianteiras.
— Aaargh!
O tigre perseguiu uma caçadora que tentou fugir e despedaçou seu corpo com as garras afiadas. Dos onze caçadores iniciais, apenas Ijun e Eunha restaram vivos.
Ijun olhou de lado, apavorado. Então, estendeu a mão trêmula e agarrou a barra da roupa de Eunha. — E-Eunha. Vamos fugir.
— Não, não devemos agir precipitadamente — advertiu Eunha em um tom baixo, mas firme. — Olhe. Eles ficam tranquilos se você não correr ou atacar.
Só então Ijun conseguiu ler o padrão de comportamento dos tigres negros. Como ela dissera, eles não atacavam enquanto os caçadores permanecessem imóveis. Mas eles não poderiam ficar parados ali para sempre.
— Se não corrermos e andarmos devagar, poderemos escapar deste lugar.
As palavras de Eunha faziam sentido. Tendo passado três anos ao lado dela, Ijun podia comprovar. Desde os dias no Centro de Treinamento até agora, ela sempre foi um exemplo, tanto em combate quanto em estratégia.
— Mas, Eunha, se ainda houver monstros aqui dentro, a saída… Hã?
Era estranho. Normalmente, a entrada de um portão se fechava assim que se entrava, e não se abria até que todos os monstros fossem eliminados. Mas, por alguma razão, eles conseguiam ver a entrada aberta, lá longe.
— Ijun, está me entendendo? Vamos andar devagar. Bem devagar. Sem provocá-los.
— O-okay.
Os dois começaram a se afastar cuidadosamente, passo a passo.
— Grrr!
Foi então que um dos tigres, que estava quieto até então, começou a se preparar para atacar. Aproximou-se deles, advertindo que os atacaria se avançassem mais um passo. Ijun congelou no lugar como pedra, enquanto Eunha parecia imperturbável e continuava andando.
— Veja, está tudo bem. Venha devagar. — Eunha fez um gesto para o paralisado Ijun. Incentivado, ele tentou dar mais um passo, mas o tigre rosnou novamente.
— Grrr!
Eunha lançou outro olhar para a entrada. Ainda estava aberta, como se pudessem sair a qualquer momento. Era preciso admitir a realidade.
— Parece que ele quer que um de nós o enfrente.
— …O quê?
Um silêncio eletrizante caiu sobre eles. Os tigres, amontoados dentro do portão, e os dois caçadores, cercados, permaneceram imóveis.
Ijun olhou para Eunha. Mil emoções lhe atravessaram a mente. Sua vida quase passou diante de seus olhos. Conhecera Eunha nos dias do Centro de Treinamento. Se não fosse por ela, nunca teria chegado tão longe, com sua mente fraca, corpo frágil e habilidade única inútil.
— Eunha, eu vou…
— Parece que vou ter que ver o William da próxima vez. — Eunha o interrompeu com seu tom calmo característico.
— Hã?
— Eu vou ficar. Será melhor se você sobreviver. — Ela começou a tatear as próprias roupas, como se já tivesse decidido. — Escute. Você vai caminhar em direção à saída sozinho enquanto eu contar até dez. Se algo acontecer, corra. Não olhe para trás.
— O que está dizendo, Eunha?
Eunha o encarou com seus olhos negros, como se sentisse o tremor em sua voz.
— Me dê alguma comida e água antes de ir, se tiver. Não sei quanto tempo vou sobreviver, mas vou levar pelo menos um deles comigo.
— Eunha…
— Não tenho realmente ninguém para quem voltar lá fora. Você tem. — Ela fitou o silencioso Ijun por um momento e deu um passo à frente. — Está com medo do quê? De perder um amigo? — Sorriu suavemente. — Ou de carregar a culpa para o resto da vida?
Tudo o que ela dizia era verdade. Eunha empurrou Ijun com força, fazendo-o recuar.
— E-Eunha! — Ele se virou desesperado.
— Grrr! — Um rosnado ameaçador soou atrás.
Eunha nem sequer olhava para ele. Com as longas pestanas negras abaixadas, tocava seu pulso esquerdo. A pulseira de desejos desgastada.
— Eunha, eu… — “Eu não posso ir embora.”, Ele estava prestes a dizer.
— Vai esquentar um pouco. — Eunha sorriu. Suas palmas brancas se estenderam em direção a Ijun. Então, uma vívida chama escarlate começou a florescer das pequenas mãos.
Kaboom!
Houve uma pequena explosão vinda de suas mãos. As chamas eram pequenas, mas suficientes para impulsionar o corpo leve de Ijun para longe. Ele foi arremessado em direção à saída, como alguém levado por uma enchente.
Expulso do portão, Ijun levantou a cabeça rapidamente. As portas do portão estavam se fechando em alta velocidade. O ar vibrava, e uma fenda negra começou a se abrir sobre o rosto, braços e pernas dela, que ele ainda conseguia ver através da abertura.
— Eunha! Eunha Cha! — Ele estendeu os braços desesperadamente, mas eles bateram contra a barreira com faíscas negras.
— Você não vai ficar com cicatriz. — A voz levemente brincalhona de Eunha foi a última que Ijun ouviu dela.