
Capítulo 717
Forja do Destino
Cada palavra de Bao Qian era pontuada por um pulso dourado. A rocha vibrava sob seus pés no ritmo de suas palavras, e as gemas entretecidas no tecido de suas roupas e cravejadas em seu cinto e anéis brilhavam em sincronia.
Às vezes era fácil esquecer que Bao Qian estava um nível acima dela em cultivo, e bem avançado naquele nível. Foi só então que seus olhos vagantes pareceram vê-las, e ele congelou.
Elas não estavam perto, mas ela ainda não deveria tê-lo esquecido tão facilmente. Ele havia sido apagado de sua mente, e ela nem havia percebido.
"Nossa! Nossa! Putz, eu me esqueci totalmente!", sussurrou Hanyi.
A expressão de Bao Qian se contorceu. "Eu também esqueci. Danou-se minha artimanha. Minhas desculpas por interromper suas negociações."
"Minhas defesas também foram insuficientes", disse Ling Qi.
O cheiro de cobre do sangue e a onda de seu qi afastaram a névoa de sua mente. Ela olhou para o olho choroso e sombrio da Mãe Chorona, que oscilava para frente e para trás, fazendo com que os fios de seu cabelo se movessem. Lágrimas oleosas espirravam sobre a pedra gelada enquanto o espírito lamentava.
Rejeitada, rejeitada. Sempre, as crianças rejeitam seus presentes, cuspem desafio e fogem. Corram. Corram agora. O frio virá, e as faíscas mortais fugirão.
Mal-humorada. Birrenta. Era a única maneira como ela conseguia descrever a atitude do espírito.
A Mãe Chorona tinha dois conceitos simples e dolorosos em seu núcleo que formavam a base de seu ser.
Abandono.
Este espírito era uma lâmina de gelo glacial deixada para trás em uma retirada de éons, cujas águas sempre fluíam para longe e aqui, acima das nuvens, nunca retornavam. Ela havia estado morrendo aos poucos por mais tempo do que dinastias imperiais inteiras haviam reinado. A verdade do Fim que ela guardava em seu núcleo era a inevitabilidade da perda.
Era uma fraqueza também. Este espírito não era como Zeqing. Ela não conseguia impedi-las de deixar aquele lugar se elas virassem os calcanhares e partissem por vontade própria, porque elas eram seus parentes, e sua história era que elas sempre a deixariam.
Sua segunda verdade era mais insidiosa. Desespero.
Este era o desgaste que sugava a vida e a energia com tanta certeza e inevitabilidade quanto qualquer frio físico. Era sua própria forma de Isolamento, uma que a mente infligia a si mesma.
Isso também, Ling Qi entendia. Nos piores dias, a mente vagava. Valia a pena lutar por mais uma estação? Valia a pena se arrastar por mais um dia? Ninguém a queria. Ninguém a ajudaria. Nada mudaria. Qualquer mão que se estendesse só poderia estar escondendo a malícia em seu aperto. Não seria muito mais tranquilo deitar e deixar acabar?
Ela compreendia o isolamento da privação. Xuan Shi a deixara ver um vislumbre do que era estar sozinha mesmo quando você tinha um lugar perto do fogo da lareira. Zeqing lhe mostrara como ficar sozinha mesmo enquanto você estrangulava a vida daqueles que você abraçava. Agora, a Mãe Chorona dos Rios Solitários lhe mostrava outra faceta da verdade do Isolamento.
O próprio eu poderia isolar com a mesma eficácia que qualquer coisa externa. Se ela escolhesse o desespero, mesmo que a fuga estivesse diante dela, a mão de ninguém jamais poderia alcançá-la.
Ela poderia alcançar o espírito, infundir sua voz, prometer visitações ou ritos, ritualisticamente carregando as águas dos riachos de volta ao pico…
Se ela tivesse sucesso, isso mataria este espírito com tanta certeza quanto levar uma aluna e libertar sua filha havia matado a Mestra Zeqing. Porque o núcleo de seu ser era o Abandono. Ling Qi poderia reunir todas as fadas nascidas das neves do jovem inverno e trazê-las de volta para aquele lugar, mas ela não tinha certeza se o espírito seria capaz de vê-las. A Mãe Chorona não conseguia estender a mão para recebê-las de volta, e isso também era Isolamento.
Assim como a fome era a privação do corpo, o isolamento era a privação da alma. Assim, o maior inimigo é ela mesma. Nenhuma mão pode alcançar quem se fechou e se retraiu. A lâmina do Isolamento rasga todo o calor em frio.
Nenhum esforço poderia alcançar quem não queria ser alcançado.
Ling Qi soltou um longo suspiro. Lá embaixo, em seu dantian, ela sentiu uma agitação em seu qi, fragmentos de impureza raspados de uma superfície, a lâmina de uma espada sendo afiada.
Espadas eram coisas cruéis. Seu propósito era separar, cortar, destruir. Tais atos podiam ser feitos em nome da criação, mas isso não mudava sua natureza no momento. Era tão importante mantê-las em bainha. Elas deviam ser lubrificadas, afiadas e desenbainhadas somente quando nenhuma outra ferramenta servisse.
"Argh, isso é idiota. É como se todas as irmãs da Mamãe fossem miseráveis", resmungou Hanyi.
Ling Qi olhou para sua irmã mais nova e depois voltou seu olhar para o espírito de gelo que se erguia na escuridão, encontrando seu olho injetado de sangue sob madeixas negras contorcidas. "Ninguém pisará em seu domínio, salvo eu ou quem carrega minha autoridade. Seu pico não será pisoteado. Seus caminhos não serão manchados. Montanha e geleira, esta terra sagrada não conhecerá pés humanos."
Um sibilo como o farfalhar do vento através de uma caixa torácica escapou da boca escondida do espírito.
"Você receberá respeito e uma oferenda pelo menos uma vez por ano, e em troca, você não levantará sua voz contra aqueles sob minha proteção. As nuvens sempre fluirão para longe de você pelos caminhos que escolherem", entoou Ling Qi.
A cabeça do espírito se torceu para o lado, e ela estava de repente muito perto, sua respiração gelada a envolvendo. A mandíbula da Mãe Chorona se moveu sob seu cabelo, e Ling Qi vislumbrou dentes longos de ferro enferrujado.
O espírito falou com uma voz tão rachada quanto pedra desmoronando e tão miserável quanto o sussurro de uma mulher prestes a colocar uma corda no pescoço. "Por quê? Você acha que pode ditar. Criança."
"Porque todas nós a rejeitamos. Você não pode tomar o que não entregamos. O desespero falhou com você", respondeu Ling Qi. "Certo, Hanyi, Bao Qian?"
"Estou triste, mas estou principalmente decepcionada. Se eu não deixei a Mamãe me comer, por que eu deixaria você?", perguntou Hanyi com desprezo.
"Eu não gosto muito de contratos exploradores como o dela. Se precisar, eu oferecerei meus serviços na colocação das proteções vinculativas sobre esta montanha pelo custo", disse Bao Qian bruscamente.
Ling Qi sorriu levemente. "É um acordo justo. Se você não der nada... você não receberá nada. Suas filhas colherão recompensas e crescerão, mas você simplesmente será esquecida."
As lágrimas da Mãe Chorona espirraram sobre a pedra, e seu poder uivou ao redor delas, mas entre a autoridade que ela havia recebido, a resolução de Bao Qian e Hanyi, e a ressonância agora invertida de suas verdades, ele não conseguia mais alcançá-las.
"Dor. Arrependimento. Brasas Frias. Sussurradas ao vento. Lágrimas. Aquilo que não pode ser substituído."
"Você pode compartilhar nelas, não tomá-las inteiras. Junto com tokens e ídolos feitos e imbuídos na imagem da perda", respondeu Ling Qi, relaxada agora que o espírito estava cooperando. Digamos assim.
Dentes de ferro rangeram. "Feito."
"Hmph, eu virei uma vez por ano e cantarei para você também. Ninguém deveria ficar sozinho o tempo todo, mesmo que seja uma idiota."
"Hanyi... Isso pode não ser..."
"Pode quebrá-la? É, talvez. Vou fazer isso de qualquer jeito, a menos que a Irmã Mais Velha diga absolutamente que eu não posso."
"Sem Absolução. Filha Desobediente."
"Bom, porque eu não preciso disso", retrucou Hanyi.
Ling Qi franziu a testa em consternação. O espírito estava disposta a aceitar a distância ritual porque conseguia ver um eco de sua própria história nela, mas se Hanyi fosse perturbá-la, aquela frágil conexão poderia se romper.
"Eu não vou impedi-la, Hanyi", cedeu Ling Qi. Ela dirigiu suas próximas palavras para o espírito. "Hanyi será a intermediária, a portadora de suas oferendas nesta época do ano, quando as neves se dispersam, mas o inverno ainda não chegou."
O olho injetado de sangue por trás do cabelo se estreitou, e o ar gélido crepitou. A pouca umidade restante congelou espontaneamente em lascas de gelo.
"Se eu quebrar meu lado do acordo, você vai retaliar o quanto quiser, certo? Se você estiver certa, você pode até me comer como quer. Eu sei. Eu estarei aqui."
Ling Qi fez uma careta, e Bao Qian também. Ela lançou um olhar feio para sua irmãzinha. Será que ela precisava dizer tais palavras? Era como se ela quisesse que Ling Qi a pegasse e a levasse de volta para a mansão por sua própria segurança.
A forma imponente da Mãe Chorona se desfez em uma rajada de gelo, escovando a caverna.
Feito. Feito. Feito. As mãos não seguram nada. As lágrimas fluem e fluem para sempre.
O Vento Solitário ainda limpa o que não pertence.
Ling Qi apertou os lábios. Por enquanto, este acordo teria que ser bom o suficiente. "Não vamos nos demorar muito mais neste degrau."
"É, eu quero ir", disse Hanyi. "Você ainda tem mais coisas boas para cozinhar, né, Sr. Gerente?"
"Temo que vocês estejam por conta própria esta noite." Bao Qian sacudiu sua mão congelada.
Não era nada que uma cultivadora do terceiro reino não pudesse curar em uma noite de meditação ou sono, mas…
"Devemos guardar as brincadeiras para a descida", disse Ling Qi.
Bao Qian lançou um olhar para a nascente negra borbulhante no centro da caverna. "Muito certo."
Elas não se soltaram uma da outra até estarem bem longe da caverna da Mãe Chorona.