
Capítulo 235
Uma Jornada de Preto e Vermelho
Enterrei Aintza em um pequeno vale longe de tudo, sob a sombra do Grand Teton. Os dois amantes teriam amado a ironia.
Fiz memoriais para todos que perdemos. Separei-os, cada um em um lugar que achei belo. Não importa que nossas cinzas não possam ser recuperadas, porque sobre cada pedra, coloquei um pertence precioso. Então, envolvi-o em vidro para que não se deteriorassem. Rituais são para os vivos, para que não nos esqueçamos.
Para John, escolhi um de seus livros favoritos. É uma coletânea de poesia finlandesa. Esta cópia está danificada e cheia de orelhas de burro por ter sido carregada em várias expedições.
— Sabe, a maioria de nós não gasta tantos recursos com os mortos. Não gostamos de ser lembrados do inevitável — Jarek resmunga ao meu lado.
— O inevitável não é tão ruim. Nos reuniremos em algo maior. Meu único arrependimento é que os mortais viajarão para um destino diferente. Eu… sentirei falta deles.
— Você não pretende perecer tão cedo, pretende? O mundo está em desordem.
— Eu sei. Não tenho intenção de fazê-lo. Estou apenas ciente de que nosso tempo é limitado. A mente humana nunca foi projetada para suportar o fardo da imortalidade. O que quer que nos tenha mudado não compensa isso. Poderíamos aguentar séculos. Milênios. Talvez mais. Em algum momento, porém…
— Você pode parar de ser tão melancólica? Pelo Olho, senhora. Você tem apenas, o quê, cento e cinquenta anos?
— Ah, está bem, seu patife grosseiro. Suponho que devo voltar ao trabalho.
A trama do destino se arrepiou sob uma longa sombra. Isso deixou Hejju nervosa. Ela sempre preferiu a calma e a certeza que vinham com a visão do futuro. Unir suas habilidades com as de suas irmãs guardiãs significava que todos os ângulos estavam cobertos contra ameaças vistas e não vistas. Até agora, tinha funcionado, mesmo quando o domínio do tirano havia restringido sua visão das possibilidades distantes. Essa interferência era mais insidiosa. Pairava sobre elas como uma nuvem fora de vista. Ela apertou sua lança.
À sua frente, a areia corria contra as paredes ocres do deserto. Estava quase na hora.
Em um momento, não havia nada além da vista familiar que ela havia visto por incontáveis horas, guardando em frente ao refúgio de seu Progenitor. No momento seguinte, havia uma floresta. A montanha inteira era uma floresta, uma colina profunda e labiríntica de raízes retorcidas e flores brancas. Ela estremeceu. Ela tinha visto a prole em ação perto de Varsóvia, uma existência que ultrapassava até mesmo os Progenitores, mas isso? Isso era diferente. Apenas um tipo de existência poderia manipular a realidade a tal ponto. Este mundo tinha uma deusa… uma… uma soberana.
A palavra deslizou em sua mente até se firmar e ela não conseguiu mais desalojá-la. Seus dedos agarraram o cabo de sua arma como se fosse uma tábua de salvação. A sombra se aprofundou. Hejju estava cega. Ela não era surda, no entanto. Da floresta, o pisar de cascos pesados emergiu, anunciando a vinda de um pesadelo de tamanho imponente sob uma pesada armadura de metal preto… ou assim ela pensou. Sua visão mudou e ela viu o pesadelo como o que era, uma grande criatura feita de partes que não se tocavam completamente, alienígena e perturbadora.
Ela piscou. Era apenas um enorme corcel com uma mulher em cima. Nada mais. Tinha que ser nada mais.
Hejju se adiantou às suas irmãs.
— Bem-vinda, Lady Nirari. Agradeço por atender ao chamado. Meu senhor deseja falar com você imediatamente.
Ela manteve seu tom educado e respeitoso. Sua senhora era poderosa se podia chamar e convocar tal ser. Verdadeiramente, a visão do futuro fornecia a chave para o seu próprio futuro, bem como o dos outros. O destino não podia ser negado.
O pensamento reforçou a confiança vacilante de Hejju. A soberana apenas sorriu e acenou, indicando que ela deveria liderar o caminho. O sorriso em si não alcançou sua boca. Parecia distante e fraco.
Ela estava pensando demais nisso. A visão do futuro de Hejju poderia estar bloqueada agora, mas ela teria sentido sua morte chegando. Disso, ela tinha certeza.
Hejju conduziu o monstro recém-nascido pelas entranhas da fortaleza de Amaretta, profundamente em seu núcleo. As pessoas não vieram observá-la desta vez. Sua presença banhou o salão em um manto plúmbeo de pura pressão. Era tudo o que Hejju podia fazer para não se encolher, para não se afastar mais do que já havia feito. Parecia estar ao lado de uma forja de estrelas frias.
O retiro de Amaretta não parecia mais o refúgio solene que já foi. Outra irmã se debruçou sobre o sarcófago que continha a forma do Progenitor adormecido. Seus olhos piscaram.
— Você está aqui — disse Amaretta com uma voz emprestada. — Bom. Você mostrou mais sabedoria do que seu predecessor. Seu domínio foi quebrado e agora eu vejo, mas os futuros ainda estão estrangulados por outro gargalo. No futuro, eu vejo—
— Cinzas e ar rarefeito, eu sei.
O fantoche franziu a testa. Videntes não gostavam de ser interrompidos.
— Já que você sabe, gostaria de lembrá-la de que isso é culpa sua, para começo de conversa. A destruição que você desencadeou sobre a Última Cidade deixou os humanos assustados e ansiosos em igual medida. Mesmo agora, eles estão construindo mais de suas bombas e, com pelo menos quatro grandes eixos de poder se formando, é apenas uma questão de tempo até que alguém se estresse. Revelar nossa presença aos mortais também os deixou paranoicos. Sua obra, mais uma vez.
— Eu vou te poupar uma palestra sobre a inevitabilidade do desenvolvimento tecnológico.
— Você faria bem em lembrar qual de nós sabe mais, garota.
— Porque eu não me importo muito com a sua opinião sobre mim. Agora, suponho que você tenha luzes para brilhar e ordens para dar?
Hejju queria expressar sua indignação com as maneiras cavalheiras e, francamente, rudes que o monstro havia mostrado em relação a Amaretta. Infelizmente, ela estava com muito medo. Para seu choque, Amaretta também estava com medo. As emoções do Progenitor vazavam pelas expressões do fantoche. Seu senhor não tinha prática. Prática e controle. Doía a ela. Era como ver um pai envelhecer.
— Existe apenas um caminho para a salvação agora. Você deve unir o mundo… contra nós. Você deve incutir terror em seus corações até que a própria ideia de usar o último fogo pareça tão abominável que eles só o usarão como último recurso. Isso nos custará caro. Perderemos muitos de nosso povo e o mago também… e ainda assim é o único caminho. A única maneira de a Terra sobreviver. Eu a guiarei e, assim, você viverá. Retornaremos às sombras onde sempre deveríamos pertencer. A ordem natural prevalecerá.
A soberana sorriu.
— Não.
— Sua tola—
Hejju não conseguia se mover. O fantoche não conseguia se mover. Raízes cobriram a entrada do santuário. Elas a cobriram também, finas e cobertas de espinhos. Elas a seguraram. Ela lutou e nem sequer as fez se mover.
A soberana agarrou Amaretta pela garganta, mergulhando sua mão através de várias camadas de proteções como se não existissem. Um som agudo escapou da garganta do fantoche. Hejju tentou gritar, mas sua mandíbula estava travada.
A soberana mordeu Amaretta e a drenou completamente. Levou apenas três segundos para o mundo inteiro de Hejju entrar em colapso em cinzas.
Não.
Não, isso era impossível.
Ela tinha que estar sonhando.
Era um pesadelo.
Hejju havia guardado seu senhor por séculos. Ela havia caminhado por essas paredes até conhecer cada falha na pedra sob seus pés. Não poderia terminar assim. Simplesmente não podia. Tinha que haver algum tipo de truque. Ninguém mataria um vidente! Ninguém sacrificaria um bem tão precioso! Isso NÃO FAZIA NENHUM SENTIDO!
— Furiosa, você está? Tão rápida para passar da negação à raiva.
A soberana estava ali, olhando para baixo com olhos roxos e fendidos. Hejju sentiu sua raiva resistir a essa pressão como uma pedra afiada dividindo uma torrente de água, resistindo simplesmente por pura solidez, pelo menos por um tempo.
— Eu sei que não devo machucar nenhuma de vocês, senão alguém poderia ter previsto sua própria morte, e ainda assim está feito agora. Eu me pergunto, e se eu matá-la por ME DESAFIAR?
O complexo estremeceu. A pedra angular da raiva de Hejju foi varrida por uma maré de poder glacial. Mais raízes cresceram, e formas emergiram do vazio. Criaturas retorcidas de pedra e metal exótico. Ela conhecia a primeira. Ela a reconheceu de visões compartilhadas com sua armadura negra e olhos de demônio, com seu sorriso sardônico. Era Nirari, o primeiro, ou pelo menos um espectro dele. Havia mais. Cada um deles parecia tão poderoso que ela duvidava que pudesse sequer retardá-los e a soberana simplesmente os chamou para seu serviço… assim.
A soberana estremeceu. Ela acenou para baixo. A estátua recuou para os cantos sombrios entre as realidades.
— Por favor, não me provoque. Acho difícil… me conter.
Sua voz inflou e Hejju sabia que todos no complexo tinham que ouvi-la.
— Foi um erro acreditar que uma soberana da esfera poderia se render. Foi tolo contar com um Devorador para se sacrificar por seus inferiores. Se o mundo deve primeiro cair para renascer, então que assim seja. Eu não protegerei os mortais de sua loucura, e não permitirei que ninguém me sacrifique por uma causa em que não acredito.
— Amaretta está morta. Você sentiu. Eu a matei.
— De agora em diante, vocês estão livres para perseguir seus próprios objetivos. Odeiem-me se quiserem. Amaldiçoem-me se precisarem. Mas não entrem no meu caminho. Eu construirei uma arca que sobreviverá ao dilúvio que se aproxima e não deixarei que nos neguem nossa salvação. E lembrem-se, se vocês considerarem vingança, como meu bom amigo Nashoba costumava dizer…
Ela sorriu.
— Eu posso ver o futuro.