Volume 12 - Capítulo 519
The Beginning After The End
POV ARTHUR LEYWIN
O portal não era instantâneo nem isento de fricção. Não mordia nem dilacerava como aquele que nos havia aprisionado. Em vez disso, fui esticado através de uma distância impossível, com um pé no reino etéreo e o outro tentando alcançar o mundo físico.
Meus olhos se arregalaram. Meu coração trovejou. O sangue pulsava nas têmporas, prestes a explodir meu crânio.
— Estou… sendo… espaguetificado… — murmurei, esmagado entre dimensões.
Ao meu lado, Regis era um fio fino de energia sombria, meio incorpóreo. Sua voz, fraca e longínqua, ecoava em minha mente.
De repente, fui arremessado para frente, os pés aterrissando desajeitadamente no chão sólido. O desconforto existencial do portal foi imediatamente substituído por uma dor profunda e ressonante em meu núcleo. Contudo, antes que pudesse olhar para dentro de mim, meus olhos se voltaram para o chão, logo à minha frente.
Varay estava ajoelhada ao lado do corpo de Bairon, segurando sua cabeça e ombros em seu colo. Tessia se agachava ao lado deles, os dedos pressionando o peito de Bairon, em busca de um último batimento.
Claire permaneceu afastada, a cabeça grifoide da exoforma roçando o teto. Sylvie havia ido até a sacada e encarava as montanhas ao longe, onde enfrentamos as forças de Agrona.
Tess olhou para Varay e balançou a cabeça. Varay apenas assentiu.
Aquela armadilha fora preparada para mim. Sem o sacrifício de Bairon — sem as habilidades de todos os outros — eu ainda estaria lá, talvez para sempre.
Será que a morte de Bairon poderia ter sido evitada se eu tivesse sido mais cuidadoso, tomado maiores precauções? Perguntei a mim mesmo, enquanto a pressão em meu núcleo me deixava nauseado. Interrompi esse pensamento antes que ele se aprofundasse. Não podia ceder à dúvida e ao arrependimento, não agora. Havia muito em jogo.
— A batalha lá fora terminou — Sylvie comunicou mentalmente —, mas parece que não ficamos ausentes por muito tempo.
Minhas mãos se fecharam contra o esterno enquanto eu ponderava nosso próximo passo. Meu núcleo doía com a pressão. Formar essa quarta camada não se pareceu em nada com a segunda ou a terceira. Não foi uma inundação súbita nem uma absorção lenta e deliberada. Ao canalizar o rio para manipular o espaço entre reinos com minha runa divina spatium, tentando recriar e reverter a armadilha do portal apenas por instinto, abri meu núcleo para uma fração ínfima do fluxo do rio. Ainda assim, foi demais para meu núcleo de três camadas suportar.
Instintivamente, canalizei éter para o Gambito do Rei, fazendo meus pensamentos se ramificarem em dezenas de fios individuais para melhor analisar a situação.
Até onde sabia, eu era único. Mesmo entre dragões e djinns, ninguém jamais havia formado um núcleo de éter. Apesar de minha força, ainda havia tanto que eu não sabia, e ninguém a quem perguntar. Cresci em poder à medida que aprofundava meu entendimento e fortalecia meu núcleo com novas camadas, permitindo-me armazenar magnitudes maiores de éter. Mas… seria esse o único caminho para um mago etéreo evoluir? Ou futuras gerações poderiam replicar meus feitos, ou até encontrar formas mais eficientes de se fortalecer, como fizeram com a mana ao longo dos séculos?
Por um instante, imaginei um jovem mago deitado no chão de uma biblioteca modesta, lendo sobre a aplicação do éter para formar novas camadas, com todos os riscos e recompensas envolvidos. O que diria esse livro? Quem o escreveria?
Enquanto um ramo da minha consciência seguia essa trilha, outro se fixava em Bairon, Varay e Claire. Nunca foi minha intenção arrastar a Srta. Bladeheart para tão fundo nas entranhas das Mandíbulas do Basilisco. Ela foi essencial em nossa fuga das Relictombs, mas por mais impressionantes que fossem as exoformas, não a salvariam de um confronto contra Agrona.
Varay, Bairon e Mica haviam não apenas se colocado à disposição, mas insistiram em me acompanhar contra Agrona. Na sala de reuniões, era uma equação simples: eles aumentavam minhas chances de sucesso. Agora, no entanto — meus olhos recaíram sobre o corpo imóvel de Bairon — sacrificar Varay na batalha seguinte parecia… um desperdício.
— Varay, Claire. Levem o corpo de Bairon e retornem a Seris. Mantenham todos afastados da fortaleza. Não sabemos que outras armadilhas Agrona deixou para trás.
O Gambito do Rei servia como meu escudo contra a raiva ou frustração de manter Tessia ao meu lado. Ela corria um perigo terrível aqui, mas eu não conhecia a estrutura de Taegrin Caelum, e não conseguia sentir Agrona para rastreá-lo diretamente. Tessia tinha vivido aqui, explorado até mesmo seus santuários privados. Eu precisava dela.
Varay ergueu o corpo inerte de Bairon com facilidade, então pairou a poucos centímetros do chão. Seu olhar pousou em mim, firme, os olhos ardendo sob a luz da minha coroa cintilante.
— Eu ainda lutaria ao seu lado contra Agrona, Arthur. Mesmo agora. Mas já sei qual será sua resposta. Então, só digo uma coisa… termine isso. Por Bairon. Por Aya. Por Olfred e Alea.
Ela não esperou minha resposta antes de voar pela janela, atravessando a sacada, onde parou apenas o tempo suficiente para que Claire a alcançasse. As asas da exoforma de Claire se abriram, e ela olhou para trás, acenando com um enorme braço mecânico antes de segui-la.
De repente, a mão de Tessia estava na minha, e sua cabeça repousava contra o meu peito. A armadura relíquia fluiu dela para me envolver por completo. Ela me fitava de cima, agora com a mão separada da minha apenas pelas finas escamas entre nós.
— Acho que ela acredita que você precisará mais do que eu — disse, tentando soar estoica, mas sem sucesso.
Eu sabia que a relíquia havia respondido ao meu foco exclusivo em Agrona. Um fragmento distante da minha consciência reconheceu o egoísmo inerente daquele momento. Meu impulso não era proteger Tessia a qualquer custo, mas buscar toda e qualquer vantagem para o combate que se aproximava. Outro fio de pensamento rebateu essa culpa: derrotar Agrona e impedir Epheotus de cair do céu era como eu a protegeria. Ela e todos os outros.
Apertei sua mão com mais força, depois a soltei, indicando a porta com um gesto silencioso.
— Por onde começamos?
— Ji-ae. — Foi tudo que ela disse.
Adentramos um corredor amplo, arqueado, adornado com bestas de mana empalhadas.
Mantive-me alguns passos à frente enquanto Tessia nos guiava por aquele emaranhado de corredores e câmaras. Sylvie e Regis vinham logo atrás. Embora estivéssemos prontos para sermos atacados a cada curva, não havia sinal de qualquer outra vida dentro da fortaleza. Mesmo concentrando o Gambito do Rei em conjunto com Realmheart, não consegui sentir nenhuma assinatura de mana além da nossa.
Por duas vezes, chegamos a becos sem saída: uma escadaria terminando em parede sólida, uma das quais trazia entalhado na pedra um irônico “Fora de Serviço”. Um andar inteiro havia sido transformado em um labirinto, os corredores e salas rearranjados de maneira improvisada e confusa.
— Ele está brincando conosco — murmurei ao nos depararmos com um beco sem saída diante de uma janela, acima da qual havia uma placa: “Saída de Emergência”.
— Distrações infantis para nos confundir e frustrar. — Sylvie resmungou em concordância.
Tessia soltou um longo suspiro, tentando se recompor.
— Isso não parece a atitude de uma divindade encurralada — disse ela.
— Pessoalmente, eu preferiria que ele estivesse desesperado para nos manter afastados — rosnou Regis. — O campo da morte e o portal das Relictombs tinham um ar de gravidade apropriado, sabe? Isso aqui é só… um insulto.
Por fim, quando alcançamos a câmara que dava acesso à ala privada de Agrona na fortaleza — como Tessia a descreveu — fomos mais uma vez surpreendidos por uma visão grotesca.
Um crânio de dragão estava cravado na entrada, mantendo abertas as duas enormes portas chamuscadas pelo fogo. A mandíbula escancarada nos obrigava a atravessá-la se quiséssemos seguir adiante.
— É… é minha mãe? — perguntou Sylvie, empalidecendo. Um calor doentio subiu pelo meu pescoço enquanto as emoções dela se infiltravam em mim.
Com o Gambito do Rei servindo de escudo contra minha própria agitação emocional, sobrepus na mente as feições de Sylvia àquele crânio, comparando o tamanho e os contornos.
Não respondi à pergunta de Sylvie. Não era necessário.
Um a um, passamos pelas mandíbulas e saímos pela parte de trás do crânio, adentrando a câmara seguinte. Um amplo tapete vermelho se estendia dali até a sala adiante.
As mandíbulas rangiram levemente quando Sylvie passou entre elas, e uma sussurrante voz no ar, quase inaudível, me fez estremecer. Um ódio frio e amargo remexeu-se no fundo do meu estômago como bile.
Apertei o ombro de Sylvie:
— Isso vai acabar em breve.
Uma voz se derramou pelas pedras ao nosso redor:
— Tanta confiança! Sempre teve uma opinião elevada de si mesmo, Matador de Deuses.
Todos congelamos, os olhos vasculhando o ambiente. O éter inundou meus canais, concentrando-se nos membros e nas mãos enquanto me preparava para reagir.
— Ah, mas estou sentindo… um certo nervosismo? — continuou a voz. Era um barítono rico, jocoso, inconfundível. — Ora, venham, venham. É rude fazer seu Alto Soberano esperar, especialmente após marcarem uma visita tão inoportuna. Estou ocupado saboreando minha vitória, mas sempre tenho tempo para minha filha… e seus bichinhos de estimação.
O tapete vermelho nos guiou por câmaras luxuosas até uma escadaria incongruente, esculpida no meio de uma sala pré-existente.
Os degraus nos levaram a um grande espaço vazio. Parecia ocupar todo um nível daquela ala; vasto, desolado, sem paredes, sem corredores, apenas um único elemento central. No coração daquele vazio, um grande pedestal, encimado por um cristal reluzente e cercado por anéis de pedra giratórios, parecia pequeno diante da imensidão ao redor.
A estrutura cristalina era idêntica às que havia visto nas ruínas das Relictombs.
— Ji-ae — confirmou Tessia um instante depois.
Agrona surgiu de trás do monumento, banhado pelo brilho do cristal.
— Sejam bem-vindos, ilustres convidados, ao coração do Taegrin Caelum.
O Agrona diante de nós era idêntico ao golem de carne que havia sido aprisionado em Epheotus. Tinha uma estatura próxima à minha, mas os chifres ramificados o faziam parecer mais alto. Ele não havia recolocado a decoração que antes ficava pendurada entre as galhadas. Em vez disso, os chifres negros e afiados conferiam-lhe um ar ainda mais imponente, realçado pela armadura vermelha feita de escamas brancas que lhe cobria o corpo do pescoço aos pés.
Minha mandíbula se contraiu ao observar mais atentamente a armadura.
Agrona inclinou a cabeça, arqueando as sobrancelhas.
— Ah! Esse olhar no seu rosto. — Riu profundamente. — Sei o que você está pensando, mas não, não fiz minha armadura com o corpo da pessoa que um dia amei. Trazer o crânio dela das masmorras para lhe dar as boas-vindas à minha casa, Sylvie querida, era o que Sylvia teria desejado. Embora ela não pôde me proteger em vida, nem mesmo de si mesma. Não confiaria nela para fazê-lo na morte.
Fez questão de alisar a armadura com as mãos enluvadas, como se acomodasse as escamas.
— Quem sabe estas pertenceram a algum parente seu? Nem perguntei o nome antes de esfolá-lo. Honestamente? Que bom que vieram! Faz bem ter um motivo para tirar as velharias do armário, sabe? — Seu sorriso se curvou num traço faminto. — A ocasião exige, né?! Reunir-me com minha filha e com o filho adotivo que nunca tive, na véspera da minha vitória final… bem, exige certa elegância.
Enquanto uma parte da minha mente acompanhava as bravatas de Agrona, os demais fios da consciência se concentravam em outras frentes.
O cristal pulsava, a luz saltando através dele rapidamente, e eu sentia a projeção djinn em seu interior espalhar seus sentidos pela sala como tentáculos invisíveis. Sem dúvida ela alimentava Agrona com um fluxo constante de informações sobre cada arrepio em nossa pele ou cada fio de cabelo que se eriçava, nos lendo como livros abertos.
Seus sentidos não eram a única coisa no ar, no entanto. Não precisei ativar a runa divina espacial para sentir a atração e repulsão de uma a dobra dimensional. Foi por isso que ele esvaziou a câmara: para ter espaço suficiente para condensar e manipular algum tipo de dimensão de bolso, não muito diferente da que eu havia me escondido para explorar a quarta relíquia.
Foi assim, percebi, que ele derrotou os assassinos enviados por Kezess. Agora que eu estava tão perto da dobra no espaço, parecia óbvio. Agrona havia aprendido algum truque que lhe permitia formar dimensões de bolso por conta própria. Como ele fez isso era uma questão interessante, mas não a mais importante. Por que o espaço estava dobrado nesta sala? Outra armadilha? Com a ajuda do Gambito do Rei, comecei a costurar uma rede densa de teorias que pintavam um quadro claro.
— Ora, não fiquem parados aí nas escadas. Entrem — continuou Agrona, abrindo os braços.
O tapete sob nossos pés começou a se mover, e fomos todos puxados alguns metros à frente antes que eu impusesse minha vontade contra a dele. O tapete se rasgou ao meio, se dobrando à nossa frente. Imediatamente, derreteu-se num rasto de sangue que correu rapidamente para as grades por baixo do local onde, momentos antes, estava o tapete.
Agrona pareceu não notar.
— Tessia Eralith. Tess. “O fantoche de carne da Cecília”. Que bom ver você de novo. Que surpresa vê-la dona de si outra vez, com um corpo totalmente funcional e um núcleo branco e brilhante, um belo truque, aliás. Imagine só, trabalhar tanto para se libertar de todo propósito e de tudo que a tornava especial. Você poderia ter cavalgado nos ombros da grandeza, mas agora não será nada. Quando este mundo se for, ninguém restará para lembrar de suas conquistas medíocres.
Tess se enrijeceu ao meu lado, os músculos da mandíbula cerrando.
— Não fale com ela — respondeu Sylvie, avançando para ficar entre Agrona e o resto de nós, exatamente quando eu prestes a fazer o mesmo. — Você não tem o direito de se dirigir à Tessia. É assim mesmo que pretende passar seus momentos finais, pai? Desperdiçando esses últimos suspiros com provocações fúteis e grosseiras?
— Que dragão feroz você se tornou — respondeu Agrona. Seus dedos brincavam com as bordas das escamas de dragão que compunham sua armadura. — Você poderia ter sido muito mais, mas, enfim… Kezess Indrath realmente tem um dom especial para arruinar tudo que toca, e nem mesmo meu sangue pôde protegê-la disso.
— Acabou, Agrona — falei, enquanto Tessia e eu avançávamos para ficar ao lado de Sylvie, com Regis pressionando o outro lado de Tessia de forma protetora. — Eu vou te matar, e seu povo vai aplaudir sua morte.
— Ah, mas é claro, Matador de Deuses. Seu brutamontes sem coração. Um assassino cruel nesta vida e na anterior. Assassinou a namorada do melhor amigo não uma, mas duas vezes! — Ele estalou a língua, cruzou os braços e balançou a cabeça em zombaria. — Imagine só, trabalhei tanto para dar a Cecilia e Nico uma segunda chance neste mundo depois que você arrancou o coração de Nico enfiando uma espada no de Cecilia, só para você vir e fazer tudo de novo aqui.
Inclinei levemente a cabeça, lidando com a conversa com um dos fios da minha mente enquanto os outros se espalhavam ao meu redor, rastreando meus amigos, sentindo os limites da dimensão de bolso, lendo a mana e o éter enquanto interagiam com os sentidos de Ji-ae, e, mais importante, alcançando o vínculo de Myre, através do qual ela me conectou a Kezess.
— Eu não os assassinei — corrigi, surpreso por ele não saber mais sobre o que havia acontecido. — Você corrompeu Cecilia em algo irreconhecível, e Nico a seguiria em qualquer buraco, por mais profundo e escuro que fosse. Enquanto você estivesse na vida deles, não haveria possibilidade de redenção. Mas minha vitória não exigia a redenção deles. — Olhei para Tessia: — Eu não perdoo nenhum dos dois por todas as coisas terríveis que fizeram com suas vidas aqui, especialmente por usarem seu corpo para cometer esses crimes. — Meu olhar voltou para Agrona, endurecendo. — Mas Cecilia não escolheu ser o Legado. Isso a tornou um alvo em ambas as vidas, impedindo que ela tivesse qualquer chance. Então eu tirei, arranquei dela, e abri um caminho de volta para a Terra. Lá, eles viverão vidas mundanas, sem poderes. Não porque merecessem, mas porque isso te prejudica. Se encontrarão ou não alguma redenção por lá, eu nunca saberei. E estou em paz com isso.
— “Estou em paz com isso” — repetiu Agrona, balançando a cabeça de um lado para o outro. — Tão maduro da sua parte. Tenho certeza de que as famílias e linhagens de todas as pessoas que eles mataram a meu serviço compreendem perfeitamente. — Ele fez um gesto desdenhoso em minha direção. — Sua arrogância realmente é espantosa. Afinal, você veio até aqui, basicamente sozinho, achando que vai me matar. Que audácia!
Um pequeno sorriso curvou meus lábios.
O vínculo que me ligava a Kezess esquentou. Senti o portal se abrir, a aproximação repentina, o espaço se dobrando e todas as energias dos dois mundos se reequilibrando.
— E quem disse que estou sozinho?
Os olhos de Agrona se voltaram para nossa esquerda no instante em que a luz branca se condensou em duas figuras. Por um momento, as silhuetas ficaram congeladas naquela luz, como buracos queimados na realidade.
As auras de Kezess e Windsom preencheram Taegrin Caelum um instante depois, enquanto os dois encaravam Agrona do outro lado da câmara deserta.
— Finalmente — disse Agrona com um sorriso acolhedor.
A armadilha que eu havia sentido se fechou naquele instante.
Windsom avançou suavemente à frente de Kezess, cujo rosto permaneceu inexpressivo. Éter se flexionou ao redor dele enquanto ele fisicamente agarrava as bordas da dimensão de bolso antes que ela pudesse se fechar ao redor da dupla.
Atrás de Windsom, Kezess não se moveu, mas o mundo parecia se mover ao redor dele, se remodelando. Por um instante, ele parecia ser tanto o homem jovial relaxado quanto um dragão gigantesco, coberto por escamas branco e douradas. O chão e o teto se deformaram e se romperam para acomodá-lo.
Sangue espirrou pelo chão e o espaço pareceu se distorcer. Ativando a runa divina espacial, empurrei Sylvie e Tessia para longe, criando mais distância entre elas e a armadilha que se fechava.
O equilíbrio de poder mudou de forma tão súbita que foi como ter o ar sugado da sala. Minha visão ficou branca. O som seco de pedras caindo martelou meus ouvidos, e o pó invadiu meus pulmões. A preocupação de Sylvie tocou minha mente, e Regis se moveu ao meu lado, ativando a runa da Destruição em defesa.
Pisquei várias vezes até a visão voltar. Kezess havia desaparecido. Windsom ficou exatamente onde estava um momento atrás. Seus olhos, como duas galáxias brilhantes, estavam arregalados, a boca se movendo sem emitir som.
Sangue começou a escorrer de sua bochecha, e uma mancha escura se espalhou por seu uniforme militar, com o vermelho contrastando com os detalhes dourados sobre o preto. A luz e a cor desapareceram de seus olhos, e um tardio: “Ah…” escapou por seus lábios manchados de sangue. Então, seu corpo desabou em vários pedaços.
Um silêncio persistente se espalhou pela sala.
Regis deu um passo à frente, inspecionando o monte ensanguentado com a cabeça levemente inclinada.
— Hm. Parece que o Windsom ficou só no “som”. E não “win” dessa vez.
Agrona, a apenas seis metros de distância ao lado do receptáculo da djinn, explodiu em gargalhadas. Ele não havia se movido, mas o mana irrompeu violentamente ao seu redor. Riu por um bom tempo.
— Ah, essa foi boa. — Ele enxugou uma lágrima e me encarou com mais seriedade. — Muito bem, Arthur. Eu sabia que você, mais do que qualquer outro, convenceria Kezess a sair do seu esconderijo. A morte lenta e dolorosa que ele vai sofrer, com o corpo murchando e apodrecendo dentro desta prisão… é exatamente o que os djinn desejariam para ele. Não concorda, Ji-ae?
— Arthur… — Era a voz de Sylvie em minha mente. Ela havia sido puxada para trás, sem conseguir manter uma conexão constante por causa do Gambito do Rei, mas deixou transparecer sua incerteza no tom.
O medo dela era justificado, mas eu não o compartilhava.
— Não quer dar uma olhadinha nele, só para ter certeza de que está mesmo contido? — perguntei com a voz calma, encobrindo com curiosidade fingida a expressão do rosto.
As sobrancelhas de Agrona se uniram, os dedos se flexionaram. A mana ondulou em resposta, fazendo os anéis giratórios do receptáculo de Ji-ae tremularem em sua órbita.
— Chega de jogos. Foi divertido, mas terminou exatamente como eu pretendia. Não tenho mais utilidade para você, minha filha ou o fantoche de carne, então…
— Eu insisto — interrompi.
Agrona reagiu no mesmo instante, liberando seu poder. O próprio ar se dividiu ao se tornar uma arma, um espaço vazio onde partículas de mana e matéria eram separadas.
Regis se dissolveu em incorporeidade pouco antes do ataque, deslizando para dentro do meu peito.
O espaço entre as dimensões já estava se flexionando ao nosso redor quando o puxei com a runa divina espacial. Engoliu o ataque de Agrona e então se fechou ao nosso redor.
O rosto dele se contorceu num rosnado furioso, mas ele já havia me mostrado a rapidez com que sua armadilha podia se fechar quando capturou Kezess. Seu brilho arrogante de vitória azedou e apodreceu em medo. Meu último vislumbre do mundo físico, antes que a dimensão de bolso nos engolisse, foi de Sylvie, com o rosto tenso, mas controlado, agarrando uma Tessia em pânico. Então, o espaço nos absorveu por completo.
De certo modo, parecia que nem havíamos nos movido. Ainda estávamos sobre pedra sólida, com o amplo salão se estendendo à nossa volta, mas o ar estava mais frio, e a carga de mana e éter era diferente. À medida que meus olhos se ajustavam, o cômodo parecia se expandir ao infinito. Nos limites da minha percepção, uma névoa se elevava, curvando-se acima de nossas cabeças como se estivéssemos dentro de um globo de neve.
Kezess, a uns trinta metros de distância, virou-se lentamente para nos encarar. Relâmpagos violetas faiscavam no meio do trovão púrpura de suas íris.
Agrona suavizou os traços do rosto, esboçando um sorriso irônico, quase impressionado. Imediatamente pareceu diminuído, pequeno dentro da vastidão indefinida da dimensão de bolso.
— Que truquezinho interessante, não?! — disse, tenso. Sua vontade pressionou as paredes do espaço, mas a dimensão exterior reagiu, impedindo sua saída. — Impressionante. Você… o que você fez? Envolveu minha dimensão de bolso dentro de outra?
Balancei a cabeça e o olhei como se ele fosse uma criança particularmente lenta.
— Isso teria dado muito mais trabalho do que o necessário.
Bastou condensar o espaço ao redor da dimensão dele no momento em que fomos sugados para dentro, uma pequena fração do poder da runa divina espacial. Ele não conseguia abrir a saída porque a pressão externa era intensa demais. A única saída era se eu liberasse a runa divina.
Kezess olhou para mim.
— Windsom?
Balancei a cabeça.
— Morto — falei.
As narinas de Kezess se dilataram, e sua cabeça se voltou novamente para Agrona.
Agrona ainda estava focado em mim.
— Depois de tudo isso, tudo o que aprendeu, você nos trancou juntos… e ainda fica do lado dele? — Ele revirou os olhos. — Em contraste com o genocídio dele, quais exatamente são os meus crimes? Tornar o meu povo forte? Lutar contra o autoritarismo dele? Ajudar o último remanescente da raça djinn a buscar justiça pelo extermínio do seu povo? — Ele agora gesticulava a cada palavra. — Garanto a você, Arthur, se pesar os mortos que estão na conta dele contra os meus, a pira dele será cem vezes maior.
Na verdade, o número era muito maior do que Agrona sequer imaginava. Fiz questão de hesitar, fingindo considerar suas palavras.
À minha direita, Agrona, cujos crimes foram diretamente contra mim e os meus. Sua guerra matou meu pai, e amigos demais para contar. Ele massacrou Sylvia, que o havia amado, e ordenou a morte do meu vínculo, sua própria filha. Qualquer um desses crimes bastava para condená-lo à morte aos meus olhos.
À minha esquerda, Kezess. Ele me levou ao seu mundo, me treinou e me nomeou asura. Sim, nós tivemos nossos conflitos, e pessoas que eu amava sofreram por causa de sua ordem de usar a Técnica Devoradora de Mundos, mas mesmo aquilo foi um ato de guerra. Em minha vida anterior, fiz quase a mesma escolha. Não, os crimes de Kezess não foram contra mim, mas contra os que já se foram. Pessoas que nunca conheci, civilizações que hoje existem apenas como pontos apagados num mapa em minha mente.
— Não concordo com tudo que Kezess fez, mas o entendo — respondi, liberando os portões do meu núcleo para que o éter inundasse meu corpo e me erguesse do chão. — E quando você estiver morto, e tivermos salvado este mundo e Epheotus, vamos protegê-los. De um modo mais… humano. — Não olhei para Kezess ao dizer isso.
Agrona não pareceu surpreso e deu uma risada amarga.
— Tolo até o fim. Eu diria que ele vai mastigar você e cuspir os ossos, mas não vou deixar que isso aconteça. Você ainda está preso dentro do trono do meu poder, isolado do seu próprio. — Um sorriso grotesco cortou seu rosto. — Venha. Você desejou a morte, e eu sou, acima de tudo… generoso.