Volume 12 - Capítulo 518
The Beginning After The End
POV JI-AE
Eu recuei, retirando minha presença da beirada das Relictombs.
Meus sistemas cintilaram com a luz e energia que formavam e mantinham essa projeção da minha mente consciente. Agora, o cristal havia substituído a suave massa cinzenta que outrora abrigara meus pensamentos, memórias e personalidade. E por quê? Por que aqueles de nós que permaneceram o fizeram? Toda a raça djinn havia dado tudo de si para construir as Relictombs, mas eu e os outros literalmente entregamos tudo pela manutenção do nosso projeto eterno.
Essa reflexão não passou pela minha consciência com amargura. A pergunta não surgiu como um questionamento das minhas próprias ações.
Mas eu me respondi.
Para garantir que nosso conhecimento sobrevivesse. Para protegê-lo. Para encontrar aqueles que talvez pudessem usá-lo de formas que nós não conseguimos, nem mesmo para nos salvar.
Toda a razão da minha existência era assegurar que o conhecimento acumulado da nossa espécie não se extinguisse conosco. Mesmo que apenas um único e reluzente farol de sabedoria e esperança levasse a informação armazenada dentro de nossa grande enciclopédia e deixasse este mundo — para compartilhar o conhecimento do éter com seres de outros mundos, de outros tempos — isso se assemelharia ao cumprimento da minha missão.
Assemelhar-se?
Hesitei, travando na palavra. Passei algum tempo flutuando à beira do nada, circulando mentalmente a palavra “assemelhar”. Na verdade, eu queria ter pensado em “representar”. E, no entanto, não foi isso que ocorreu. Um erro assim poderia indicar alguma falha nos mecanismos complexos e na magia que sustentavam minha mente, mas era mais provável que fosse apenas o resultado de processos mentais simultâneos e conflitantes acontecendo dentro da matriz do meu cérebro. Examinei esses conflitos com cuidado.
Enquanto isso, Arthur Leywin e seus companheiros se moviam para executar seu plano. Minha percepção de suas ações era limitada, pois eu precisava de um tempo longe das investidas de Tessia Eralith para chegar à conclusão dessas reflexões. Era inquietante a forma como ela conseguia sentir e se conectar com minha consciência quando eu a manifestava por completo na borda das Relictombs para observá-los. Porém, é claro, ela havia me conhecido como a Legado, então estava mais consciente de minha existência. Eu deveria ter previsto isso.
O plano deles dependia da habilidade de Varay Aurae em interromper e conter a pressão constante da mana, dando a Arthur Leywin a abertura necessária para canalizar o rio de éter e dobrar o espaço para sair das Relictombs, abrindo um portal de volta ao reino físico. Dada a recente Integração da mulher humana e a força da corrente do rio — que limitava as capacidades de Arthur Leywin —, um cálculo rápido sugeria que as chances de sucesso não superavam trinta por cento.
Isso, é claro, dizia respeito apenas à criação de uma saída. A capacidade de realmente atravessá-la era uma questão bem diferente.
Quando me senti pronta para focar novamente, minha consciência retornou ao espaço entre o rio etéreo, as Relictombs e o nada absoluto. Permaneci oculta nas profundezas da margem turva, onde sabia que não poderiam olhar sem que suas mentes rejeitassem o que viam.
Tessia Eralith estava agachada ao lado de Varay Aurae, em uma conversa séria. A entidade manifestada, Regis, estava sentado com elas, suas orelhas se contraindo a cada ruído percebido.
— Não, cancelar o feitiço por si só não parece surtir efeito — dizia a mulher humana. — Isso pode ser pela falta de compreensão sobre a formação do feitiço, ou talvez pela força bruta da intenção que mantém a mana em sua forma atual. A rotação de mana, como Arthur sugeriu, parece estar me ajudando a… me conectar com o feitiço, mas é um processo lento.
Tessia Eralith apertou o antebraço da outra mulher.
— Às vezes o insight vem devagar, outras vezes num rompante repentino. Teve algum progresso em visualizar as partículas?
— Estou tentando visualizá-las mentalmente enquanto acompanho seu movimento, mas não consigo vê-las de fato.
A jovem elfa franziu o cenho, pensativa, e desenhou algo na areia com os dedos.
— Regis? Posso te mostrar uma coisa?
Regis respondeu com um encolher de ombros despreocupado antes de se tornar incorpóreo e fundir-se à forma física dela.
“É isso que você quer, Ji-ae? O fim de toda a vida — de toda a vida possível — neste mundo?”
Essa havia sido a pergunta da jovem para mim após a visão da adolescente dragão. Minha resposta foi simples e óbvia, mas ainda lutava para compreender seu significado.
No final, tudo se resumia à matemática. Eu tinha um único propósito. Estatisticamente, qualquer curso de ação tornava meu sucesso mais ou menos provável, e um grande benefício da minha situação atual era que, estando implantada na matriz, tornava-me prodigiosa no cálculo de probabilidades.
Por muito tempo, o trabalho de Agrona nas Relictombs — o foco central da nossa enciclopédia dentro da cultura que ele construiu — representava o melhor e, geralmente, o único método com reais chances de levar à compreensão e disseminação do conhecimento que havíamos armazenado. Sylvia Indrath representava uma possível ramificação dessa rede de possibilidades e, embora eu não pudesse prever o surgimento de Arthur Leywin, desde então passei a entender por que senti tamanha mudança tectônica nas probabilidades a partir de Sylvia.
E desde então, cada ação, tanto de Agrona quanto de Arthur Leywin, os aproximava mais do equilíbrio. Duas rotas distintas para o sucesso. Rotas que… assemelhavam-se. E, ainda assim, na realidade, eram bastante diferentes. A matemática havia mudado.
Uma vez que Epheotus fosse totalmente exumado da dimensão de bolso onde residia, Agrona provavelmente seria o único sobrevivente deste mundo. Não restaria civilização alguma para dar continuidade à pesquisa dos djinn sobre o éter, mas meu propósito não exigia o povo deste mundo. Juntos, Agrona e eu poderíamos levar o conhecimento dos djinn e procurar por outros povos, com outras magias, que talvez estivessem mais bem preparados para compreendê-lo. Pois não havia qualquer dúvida de que, quando o bolsão etéreo formado na superfície deste mundo eventualmente se rompesse, o éter se espalharia por todos os cantos do universo — muito além do que os olhos do meu povo jamais haviam alcançado.
Não era possível calcular com honestidade ou realismo qualquer probabilidade de sucesso. As variáveis desconhecidas eram tão vastas quanto o espaço entre as estrelas.
E então havia Arthur Leywin. Se ele fosse bem-sucedido, as novas raças deste mundo — elfos, anões e humanos — sobreviveriam, junto com os asuras. O reino etéreo seria liberado em harmonia com as necessidades dessas pessoas, em vez de agir como uma ameaça direta às suas vidas. Nesse cenário, as variáveis eram menores, mas a probabilidade de sucesso permanecia igualmente difícil de calcular — ou melhor, era baixa, e eu hesitava em admitir isso.
Por que estou agindo de forma tão… humana?, perguntei a mim mesma, desviando brevemente minha atenção para examinar a estabilidade interna de meu invólucro.
Fisicamente e estruturalmente, é claro, tudo estava em ordem. Emocionalmente, contudo, me sentia abalada. Calcular probabilidades era algo muito diferente de vislumbrar um mundo sem vida em chamas. Era algo que eu não sentia desde…
Uma imagem cruzou meus pensamentos de uma só vez: um mundo em chamas, mas não o futuro. O passado.
Comecei a me dissociar, desligando todos os pensamentos e passando a agir apenas como uma observadora passiva do que estava acontecendo.
Arthur Leywin havia se aproximado das duas mulheres. A conversa entre elas havia cessado enquanto observavam, com nervosismo, Claire Bladeheart — a piloto da máquina que chamavam de exoforma — enfrentar uma aparição etérea. Ela a destruiu rapidamente, e a atenção das duas voltou à conversa.
Um brilho suave emanava da região lombar de Arthur Leywin, visível através da camisa. Pelo sutil ajuste em seu olhar, ele observava a constante pressão da mana empurrando o rio etéreo. Regis transferiu-se de Tessia Eralith para Varay Aurae, cujos olhos agora seguiam o mesmo caminho que os de Arthur. Sua expressão inicialmente incerta transformou-se em surpresa e entusiasmo.
Bairon Wykes retornou de sua patrulha. Seu queixo estava tenso, os olhos movendo-se nervosamente entre Varay Aurae e Arthur Leywin. A discussão se intensificou, ganhando impulso. Como uma pedra rolando morro abaixo.
A probabilidade de sucesso aumentou. Estavam no caminho certo e alcançariam a conclusão necessária mesmo sem minha intervenção. Ao processar essa informação, voltei a mim. Se tivesse um corpo físico, um calafrio percorreria minha espinha.
Quando Varay começou a ciclar a mana através de si mesma, absorvendo e expelindo-a em rotação constante, os outros recuaram, a conversa cessando. Aproveitei esse momento para deslizar para fora do espaço, retraindo meus sentidos de volta a Taegrin Caelum.
Agrona estava me esperando.
O relicário havia sido realocado. Os corredores estreitos e as dezenas de pequenas salas trancadas agora davam lugar a uma vasta extensão plana e vazia ao redor do meu invólucro cristalino. Parecia vazio, até solitário, sem os pequenos, mas constantes, pulsos de magia dos artefatos próximos.
Agrona me observava, obviamente ciente da minha atenção. Seus traços eram afiados, idênticos ao corpo de Khaernos Vritra que ele esculpiu como golem e habitou por tanto tempo. Seus lábios estavam curvados para baixo, num franzir de questionamento. Seus lábios estavam curvados para baixo, num franzir de questionamento. Ele vinha se esforçando demais, consumindo e absorvendo mana em quantidades que até mesmo ele mal conseguia suportar. Ao menos havia vestido sua armadura: um traje completo de escamas de dragão brancas, com as bordas tingidas de vermelho.
— Você precisa se recompor — falei, sem cair na tentação de bajulá-lo. Minha voz ressoou oca e imponente naquele espaço aberto. — Eles já superaram o primeiro obstáculo. Aqueles que foram arrastados pelo portal com Arthur Leywin têm habilidades complementares além do que ele poderia realizar sozinho. Não há dúvida de que ele será capaz de enfrentar o que está por vir. Eles ainda não veem a barreira final, mas calculo agora uma chance de noventa e cinco por cento de que se libertem antes que Epheotus emerja por completo da fenda aberta.
Ele suspirou de forma dramática e levou uma mão ao chifre, mas nem se dera ao trabalho de recolocar os enfeites que normalmente pendiam dele. A mão desceu até o rosto, e seus dedos tamborilaram na linha do maxilar.
— Bem, não importa. Suponho que fazê-lo desaparecer num vazio inescapável não teria sido o desfecho emocionante que nossa saga merece, não é? — Ele soltou uma risada baixa e então virou-se, parecendo olhar para o nada. — Está tudo pronto aqui. Eu estava prestes a recompensar a vitória da Seris jogando uma montanha em cima dela e de todos os seus traidores de seu sangue, mas acho que ela pode esperar um pouco mais.
Quis perguntar se ele tinha certeza sobre seu rumo, mas sabia que isso apenas revelaria minha própria incerteza no processo. Agrona nunca duvidava de si mesmo nem repensava suas decisões. Era um dos seus maiores pontos fortes. Não haveria como mudar seu curso. E, no fundo, eu não queria que houvesse. Aquela pureza de visão era o que o tornava tão propenso ao sucesso.
Pulsando luz através do invólucro cristalino e me reconectei com as Relictombs, navegando rapidamente por várias dezenas de capítulos até alcançar a extremidade do espaço — um lugar que havia se formado, mas ainda não fora construído.
O tempo havia passado rapidamente para Arthur Leywin e seus companheiros.
Percebi imediatamente a mudança no fluxo de mana. Varay Aurae flutuava a seis metros do chão, logo acima do ponto onde o rio encontrava a areia negra. Suas mãos se moviam num ritmo constante e entrelaçado à sua frente, enquanto ela murmurava uma sequência repetitiva de cânticos de concentração. A mana fluía para dentro e para fora dela em medidas iguais, enquanto a força de sua vontade enfrentava a pressão da mana que restringia o rio.
Arthur estava parado abaixo dela, de costas para o rio. A cada onda que lambia a margem, as águas etéreas tocavam seus pés descalços; breves contatos onde faíscas violetas cintilavam em sua pele como estrelas refletidas na água.
Ele absorvia o éter, um toque de cada vez, extraindo apenas um fragmento a cada contato.
Tessia, Bairon e Sylvie observavam à distância, trocando olhares nervosos entre os dois conjuradores e Claire, que combatia três aparições do rio. Regis parecia ter voltado a se fundir com seu mestre.
O éter estava ficando agitado, movendo-se para se defender. Não apenas hostil à presença deles, mas cada vez mais desesperado em sua tentativa de eliminá-los. Eles já estariam mortos se não fossem as regras das Relictombs que vazavam para este espaço, inibindo o éter e forçando-o a responder com força equivalente.
Ira, mas ainda contida, pensei. Com tempo suficiente, o éter que tomava forma nessas aparições provavelmente perceberia que não precisava seguir as regras escritas para as demais criaturas das Relictombs.
O espaço começou a dobrar-se dentro da parede sem sentido nem forma, enquanto Arthur absorvia éter em pequenas rajadas do rio e o usava para manipular o próprio espaço. Seus cabelos claros flutuavam, e runas djinn brilhavam sob seus olhos.
Circulei ao redor para observar melhor o que ele estava fazendo. Tessia me viu imediatamente.
— Você voltou — pensou ela, sua voz mental suave. — Achei que talvez tivesse decidido nos deixar aqui.
— Meu propósito é apenas monitorá-los — respondi, posicionando-me ao lado dela. Tessia e seus companheiros estavam desconfortáveis, incapazes de encarar Arthur diretamente devido à desorientação que isso causava, mas também relutantes em tirar os olhos do rio, onde Claire ainda lutava por eles.
A pressão de Varay sobre a mana se intensificava gradualmente, permitindo que Arthur absorvesse mais éter do rio. Isso intensificou o ataque das aparições, que se lançavam contra Claire como bestas enraivecidas. Sylvie estava com um dos pés dentro da água, olhos fechados, mas os globos oculares se moviam sob as pálpebras. Bairon permanecia imóvel, mas a eletricidade estática se acumulava em sua pele e ocasionalmente faiscava por sua armadura.
— Arthur, a água… — A voz de Sylvie soou distante, nervosa.
O rio agora lambia os tornozelos de Arthur a cada avanço em direção à margem. Os outros recuaram, apreensivos. Sob sua pele, um brilho violeta destacava seus canais etéreos.
O espaço distorcido, moldado sob a aplicação do éter de Arthur como cordas de violino sob o arco de um mestre músico, começou a se solidificar. Algo surgindo do nada. Cristalizou-se, conta por conta, como uma cortina de vidro negro-púrpura. Cada cristal era afiado e frágil. Apesar do controle de Arthur, um simples pulso de mana ou éter provavelmente faria toda a estrutura desmoronar, expondo-o ao peso completo do espaço incompreensível além dela.
Sylvie agora estava com os dois pés firmemente dentro da água, até as canelas. O rio avançava e recuava, uma maré criada pelo empurra e puxa entre mana e éter. A cada onda, subia mais pelas pernas de Arthur.
— É demais! — Sylvie gritou, desespero em sua voz. — Arthur, você não consegue controlar isso!
— Não… tenho… escolha — respondeu ele entre os dentes cerrados.
— Ajude-o! — Tessia ordenou em meus pensamentos.
— Não há nada que eu possa fazer — respondi com sinceridade.
A pressão crescia ao redor e dentro de Arthur enquanto ele continuava a drenar energia do rio e a liberava através das runas em suas costas, moldando o espaço. Ele cerrou os dentes, e uma luz violeta brilhou em seus olhos enquanto uma coroa luminosa surgiu sobre sua cabeça.
Seu feitiço etéreo tremia, a cortina cristalina tilintava como vidro. Algumas contas caíram e se estilhaçaram no chão antes de se dissolverem na areia negra.
— Ele está perdendo muito éter para o rio. Não conseguirá sustentar o feitiço — pensei para Tessia.
— Varay! Ajude-me a contê-lo… — Sylvie havia se posicionado atrás dele, sua consciência se fundindo às águas etéreas. Eu podia senti-la tentando redirecionar o fluxo, acalmar a maré oscilante.
O mana respondeu lentamente quando Varay desviou seu foco para erguer uma barreira, impedindo o rio de consumir o éter purificado de Arthur — até mesmo o que estava em seu núcleo.
Vinhas verde-esmeralda brotaram da areia, torcendo-se em uma barricada, mas as águas escorriam pelas rachaduras ou transbordavam por cima.
Bairon estendeu a mão para Arthur, aparentemente tentando puxá-lo.
— Parem! — ordenou Arthur, e todos os seus companheiros congelaram. Algo mudou dentro dele, e senti o fluxo de éter saindo de seu corpo e retornando ao rio se intensificar. Ele soltou um gemido de dor.
O núcleo dele…
Era como se eu pudesse ver a luz irradiando através de seu esterno, vinda de um núcleo com três camadas de éter endurecido e condensado, envolvendo a casca quebrada de um núcleo de mana. A luz revelava cada linha, cada fissura, como se o núcleo tivesse sido retirado de seu peito.
E agora, estava se partindo de novo. Estava se partindo por completo. A quantidade de éter fluindo por ele era absurda.
Fascinada, aproximei-me ainda mais, passando por Tessia, cruzando as águas turbulentas e entrando em seu corpo. Encontrei-me diante de seu núcleo. Regis, uma centelha de energia sombria com olhos brilhantes, girava ao redor dele, empurrando e puxando o éter, tentando reforçar o núcleo.
— Nada está funcionando — pensou a centelha desesperadamente. Duvido que Regis soubesse que eu podia ouvi-lo.
— Já fizemos isso antes — respondeu Arthur, sua voz mental tão tensa quanto seu corpo físico. — É igual à vez em que formamos a segunda camada, lembra? Só precisamos…
— Naquela vez não era um rio do tamanho do universo querendo te matar, era?!
A corrente etérea oscilou, então explodiu. Afastei-me, retornando ao meu lugar ao lado de Tessia.
A pele de Arthur começou a se romper. Relâmpagos branco-arroxeados jorravam das feridas, atingindo o rio que agora lhe subia pelos joelhos. Os outros já haviam recuado, exceto Sylvie e Varay. Um raio após o outro faiscava, quase atingindo Sylvie. As vinhas desapareceram, Varay tremia em seu esforço para conter a maré de mana.
E então… a energia voltou-se para dentro. As feridas se curavam, se abriam novamente, e voltavam a se curar. Em vez de explodir para fora, a luz se enrolava ao seu redor, não mais relâmpagos, mas como um manto de pura energia que descia por suas costas, faiscando ao tocar as águas, ondulando como se jogada por um vento que só o afetava. A luz retornava para dentro dele, ardendo em seus ossos, se condensando até que toda aquela luz estivesse contida em seu peito. Eu já não conseguia mais ver a forma de seu núcleo, nem as rachaduras, apenas luz.
A cortina cristalina balançou como se uma brisa passasse por ela, e de repente respirei com mais facilidade à medida que meu vínculo com meu invólucro ficava mais forte, como se aquela passagem me puxasse de volta.
Arthur elevou-se acima das águas, seus cabelos eriçados, olhos brilhantes com poder, a coroa reluzente, o manto de pura e brilhante energia arrastando-se atrás de seus pés. Varay soltou seu controle e flutuou até seu nível. Abaixo deles, o rio recuou.
— O que acabou de acontecer? — perguntou Claire com sua voz metálica enquanto se aproximava do rio. Nenhuma outra aparição os atacaria agora.
— Está… feito — respondeu Arthur, com a voz áspera.
Regis se manifestou novamente, andando pela areia negra.
— Esse é meu mano. Dois meses para forjar a terceira camada do núcleo, dois minutos para a quarta.
— O que isso significa? — Tessia perguntou, os dedos pressionando seu próprio esterno, como se o núcleo dela também tivesse se rachado ao ver o de Arthur.
— Significa que vamos chutar a bunda do Agrona — respondeu Regis por ele, ofegando do esforço.
Arthur e Varay pousaram. Sylvie passou entre eles, mas não olhava para seu vínculo. Seus olhos estavam fixos em Tessia.
— Pergunte a ela o que podemos fazer — disse Sylvie, num sussurro quase inaudível. — Agora que o portal foi formado, como passamos por ele?
A confusão no rosto de Tessia despertou minha empatia — e uma pontada de pena. Ela pediu que Sylvie repetisse, claramente achando que havia entendido errado, e então se virou para mim.
— Ela já sabe. Já viu. Só não consegue aceitar — disse, balançando a cabeça.
Tessia passou minhas palavras adiante, e a jovem dragão balançou a cabeça com força, me encarando como se eu não estivesse ali.
— O que foi? — perguntou Tessia, mas Sylvie não respondeu, e eu mantive meu silêncio. Não era meu papel revelar o custo final da fuga deles.
A cortina cristalina pairava no ar, algo real no irreal.
Sylvie lançou um olhar indecifrável aos outros. Indecifrável para eles. Eu sabia exatamente o que ela estava sentindo, pois ela já havia visto o resultado no rio do tempo.
— O que estamos esperando? — perguntou Bairon enquanto todos permaneciam num silêncio constrangedor. — Nossas tropas ainda podem estar lutando! Precisamos voltar!
— Sylvie vai primeiro — disse Arthur com o mesmo tom áspero, como se houvesse fogo de forja em sua garganta.
Ela cerrou a mandíbula e avançou. Sua mão se estendeu para tocar a cortina, e ela oscilou. Ao tentar atravessá-la, algo a repeliu. De repente, ela fez uma careta e cambaleou para trás, enquanto partículas de éter, visíveis a olho nu, eram arrancadas de sua pele, sugadas e absorvidas pelo rio. Senti seu controle se fechar em torno dela, interrompendo o fluxo porque o rio a drenava.
— O que foi isso? — perguntou Varay, com o punho de gelo conjurado rangendo e liberando vapor.
— É a atração do rio sobre o éter — disse Sylvie, confirmando que suas visões coincidiam com meus próprios cálculos. — Acredito que atravessar o portal desestabiliza o éter dentro de nossos corpos, e o rio então o puxa de nós.
Houve uma longa pausa. Os outros se entreolhavam, mas Tessia me encarava.
— Se Arthur e eu trabalharmos juntos para conter a mana e o éter, como fizemos para criar o portal… — começou Varay, mas sua frase se perdeu em um silêncio pensativo.
— Vale a pena tentar — disse Arthur com firmeza.
E juntos, tentaram, com Varay mais uma vez desestabilizando a pressão esmagadora da mana, enquanto Arthur puxava uma fração mínima do éter do rio para conjurar uma barreira de repulsão que empurrava contra a força do rio.
Sylvie tentou novamente, mas também falhou. Bairon testou depois, argumentando que alguém sem controle sobre o éter sofreria menos, mas desmaiou e precisou ser reanimado por Tessia.
Após um longo momento silencioso, Arthur voltou sua atenção para Sylvie.
— O que foi? Você viu algo mais, mas está escondendo.
Ela mordeu o lábio e baixou a cabeça, uma mecha de cabelo loiro-trigo caindo sobre o rosto.
— Só vi um caminho possível.
— Qual é? — perguntou Tessia, com a voz tensa, os olhos arregalados saltando entre Sylvie e eu.
— Não significa que só haja esse caminho, mas… se eu disser… isso o tornará realidade — concluiu Sylvie.
O que ela disse não era totalmente preciso. Não existia um estado quântico em que o conhecimento de um método garantisse um resultado, mas as chances eram incrivelmente altas de que, uma vez que os outros compreendessem sua situação e a possível chave para sua fuga e sobrevivência, não conseguiriam pensar em outra solução.
Eu escolhi este local exatamente por isso. Se Arthur estivesse aqui sozinho, ou mesmo apenas com Regis e Sylvie, essa fuga teria sido muito mais difícil.
Uma parte de mim agora examinava as escolhas que nos trouxeram até este ponto. Explorei minhas emoções, em busca de arrependimento ou pesar, mas os eventos ainda seguiam da forma mais provável de resultar em um desfecho positivo. Ou assim eu dizia a mim mesma, talvez para silenciar os vermes fantasmas que se contorciam no meu estômago inexistente.
— Um de nós precisa ficar para trás — disse Varay, interpretando corretamente o desconforto de Sylvie.
Os lábios de Sylvie se apertaram, sua cabeça inclinou-se levemente, os olhos ainda fixos no portal.
— Mas por quê? Como isso ajuda? — Tessia explodiu, virando-se para mim: — Você disse que nos ajudaria!
— Não — respondi. — Eu apenas concordei que a destruição que vimos não é o que desejo.
Sylvie se endireitou, cerrando o maxilar. Parecia muito mais velha. — Só posso dizer o que vi. Isso não responde o porquê. Enquanto os outros trabalhavam, passei muito do meu tempo tentando alcançar essas aparições etéricas que continuam nos atacando, tentando me comunicar, chegar a algum entendimento, mas tudo o que existe aqui é a fúria de incontáveis mortos, sua essência condensada nessas monstruosidades.
Luz etérea percorreu os braços de Arthur:
— As criaturas que se manifestam aqui são resistentes à atração do rio. Se não fossem, seriam levadas correnteza abaixo e nunca nos atacariam.
— Nos futuros que vi, uma aparição protegeu nosso éter da atração do rio — completou Sylvie.
Arthur passou os dedos pelos cabelos, seu rosto se entristeceu.
— Seu éter estava sendo arrancado de você quando tentou atravessar o portal…
Sylvie assentiu, e vi compreensão se espalhar pelo rosto de Arthur.
Bairon vinha observando atentamente o rosto dos outros enquanto falavam. Os mecanismos de sua mente claramente giravam, tentando acompanhar uma conversa em que apenas metade do que era dito se tornava explícito. Então vi quando a compreensão também o atingiu. Ele se virou, enquanto os outros estavam distraídos, olhando para o portal como se fosse as mandíbulas da própria morte, os cristais eram os dentes que o mastigariam e cuspiriam outra coisa.
Começou a caminhar em direção a ele.
— Bairon! — Varay exclamou, agarrando seu pulso.
Ele não a olhou, não encontrou seus olhos. Sua expressão era firme, o maxilar rígido, os ombros tensos. Já havia tomado sua decisão.
— Todos cumpriram seu papel. Tudo estava bem arrumado e organizado, todos sendo necessários, cada um desempenhando um papel específico. O Destino, acho, ainda está brincando conosco. Claramente, este é o meu. — Quando Varay não o soltou, ele se desvencilhou dela com suavidade, mas firmeza. — Sou um soldado, Varay. Um escudo para ficar entre aqueles que eu protejo e o que os ameaça.
Seu braço se libertou. Ele sustentou o olhar de Varay por um longo momento, depois passou os olhos rapidamente pelos demais rostos.
Tessia cobriu a boca com uma das mãos, lágrimas prestes a cair brilhando em seus olhos. A testa de Sylvie se franziu, mas ela não fez menção de interromper. Claire, protegida pelo aparato mecânico que a envolvia, assentiu com firmeza e compreensão.
Arthur deu um passo à frente e estendeu a mão. Seus lábios se entreabriram levemente, mas ele não falou. Mil palavras não ditas permaneceram em seus olhos dourados.
Bairon cedeu, oferecendo a Arthur um sorriso torto enquanto apertavam as mãos.
— Cuide do Virion por mim. O velho já sofreu bastante. — Ele deu um passo para trás. — Por Sapin. Por Dicathen.
Então ele entrou no portal.
A estrutura tremeu, resistindo à sua entrada. Os cristais vibraram, enchendo a margem com um som tilintante, como vidro se estilhaçando. Correntes de éter se projetavam atrás dele como relâmpagos congelados no céu. Quando seu corpo atravessou a superfície do portal, foi repentinamente sugado para dentro, levado pela corrente.
Entretanto, Bairon Wykes, Lança de Sapin e de Dicathen, ficou para trás. Ou melhor, tudo que fazia dele ser ele mesmo, ficou.
A corrente do rio já começava a puxá-lo. Uma forma indistinta e espectral, moldada à sua imagem, se alongava enquanto asas de éter, semelhantes a raios, se expandiam atrás dele. Instintivamente, os outros recuaram, evitando contato com a aparição etérea.
Seus traços, formados por puro éter, estavam inexpressivos, os olhos cerrados.
— Bairon! — Sylvie gritou.
Os olhos da aparição se abriram num lampejo, revelando orbes brancas em um rosto de brilho ametista. As asas de raio se expandiram ainda mais, alcançando o céu antes de descerem com força para envolver os demais como um casulo protetor.
Com meus sentidos espalhados por todo o espaço, percebi quando a atenção do rio — o foco de sua força, a pressão da mana — se voltou completamente para o que restava de Bairon. Os últimos fragmentos de sua consciência, sustentados apenas por pura tensão. E, ao fazê-lo, o poder de atração do rio enfraqueceu em todas as outras direções.
Sylvie não olhou para trás ao mergulhar no portal. Varay a seguiu, mas parou à beira do portal, encarando estoicamente a tempestade que seu companheiro se tornou. Então, também atravessou. Tessia apertou a mão de Arthur e depois conduziu Claire e sua enorme exoforma para o portal. Regis ficou junto à entrada, aguardando Arthur.
Arthur fitou a tempestade que agora era Bairon Wykes.
— Obrigado, Thunderlord. — Então ele também partiu, seguido por Regis.
As asas de Bairon foram puxadas para trás, mergulhando na água. Seu corpo se alongou, desfazendo-se pouco a pouco, e o éter que o compunha se dispersou, sendo absorvido pelo rio.
O portal começou a colapsar, os cristais que o sustentavam caíram sobre a areia, onde se desfizeram, tornando-se apenas mais uma parte da margem — assim como Bairon agora fazia parte do rio.
Eu não estava sozinha. Ao me virar, dei de frente com uma figura humanoide feita de pura luz. Braços, tronco e uma cabeça sem feições entrelaçados por fios dourados, cuja luminosidade parecia distorcer e repelir a escuridão púrpura do reino etéreo. Milhares, talvez dezenas de milhares, de fios se estendiam para o infinito atrás daquela entidade.
Eu reconhecia aquela presença; já a senti antes. Não apenas quando falou comigo ou me salvou do colapso provocado pela destruição do simulacro de Agrona, mas também através da minha ligação com a magia primordial deste mundo.
Quando falou, a luz de seu corpo pulsou, reverberando em ondas suaves.
— Você conteve sua mão. Não interveio, nem para ajudar nem para atrapalhar. Você se posicionou em equilíbrio entre as duas forças: Agrona Vritra e Arthur Leywin.
— A chance de qualquer um sair vitorioso está por um fio — respondi, certa de que entenderia o peso das minhas palavras.
— Você é capaz de separar a parte de si que se entregou ao ódio por Kezess Indrath? — perguntou. — Pode manter sua dedicação à tarefa que assumiu? Ou acabará se tornando pouco mais do que um dos fantasmas etéreos que atacam aqui?
Refleti cuidadosamente antes de responder.
— Não posso prever o desfecho do conflito que se aproxima, então não ganharei nada por me envolver nele. As coisas devem seguir seu curso… mas você já sabe disso, porque está escondendo essa informação de mim. — Hesitei, uma percepção repentina me atravessando como um raio. — Ou então mesmo você não tenha visão ou entendimento além daqui. A confluência desses poderes é realmente tão grande que o futuro inteiro depende exclusivamente deste ponto?
O Destino não respondeu. Não era necessário.
Um único fio se estendeu do meu peito até se conectar àquela entidade. Estendi uma mão intangível, que era apenas a manifestação da minha consciência, e toquei o fio com o dedo indicador.
A luz pulsou em ambas as direções, e senti uma centelha de compreensão.
— Você tem me usado desde o começo — falei. — Mas sempre alinhando suas necessidades aos meus objetivos. A destruição deste mundo torna improvável que eu atinja o que busco, mesmo que isso signifique a realização do seu propósito e a liberação do éter contido. No entanto, a própria ameaça dessa destruição torna mais provável que Arthur alcance seu objetivo. Os lados estão equilibrados, quase em perfeita simetria.
— Não existe um caminho único a ser trilhado no rio do tempo, apenas aqueles que se tornam mais ou menos difíceis devido às escolhas individuais — respondeu a voz. — Suas decisões serão fundamentais para alcançar aquilo que deseja.
E então, a figura começou a desaparecer. Fiquei ali por um tempo, na penumbra, embalada pelo sussurro do rio e o chamado de um universo mais vasto me permitindo esquecer, por um momento, o que havia me tornado e o que ainda precisava fazer.