Terramar: O Mar Encoberto

Capítulo 968

Terramar: O Mar Encoberto

Ao ouvir a resposta de Li Long, Wang Sheng inclinou-se um pouco e virou as costas para ele.

Com um sorrisinho de desprezo, disse: "Tanto faz. Agora vejo a sua verdadeira face. Você é só ganancioso e sem vergonha. Pula em oportunidades quando parecem fáceis, mas encolhe-se no primeiro sinal de dificuldade. Não é à toa que a Sacerdotisa Suprema não vê valor em você."

"Não mude de assunto," Li Long insistiu. "A sua família é grande; não deve ser difícil arranjar um emprego pra você. Não se esqueça de quem cuidou de você quando tava sofrendo com abstinência lá no deserto! HEY! Não finge de morto, está ouvindo o que eu estou dizendo! Você prometeu lá atrás!"

Uma sensação de amargura subiu ao peito de Wang Sheng. Sua cabeça não estava mais preocupada com o pedido de Li Long, mas sim com o fato de que logo veria seu pai novamente.

Ele deve estar furioso agora. Pensou Wang Sheng. Esquece de arranjar um emprego pra Li Long, pode até ser que ele seja punido e fique de castigo em casa pelos próximos anos. É como se ele tivesse acabado de escapar de uma prisão só pra cair na outra.

Será que eu sou realmente inútil sem ele? Sou de verdade nada sem aquele velhote? A ideia o consumia, enchendo-o de um sentimento pesado de derrota.

O avião rangia ao tocar o solo, suas rodas raspando contra a pista até parar completamente. Eles tinham chegado ao destino.

Seguindo as orientações de Wang Jianshe, ignoraram a alfândega e embarcaram num ônibus azul céu que aguardava do lado de fora do terminal.

Como puderam passar sem revista de segurança, as armas de fogo que os Fhtagnistas haviam roubado do Local 66 também foram levadas ao ônibus.

À medida que o ônibus se afastava do movimentado aeroporto em direção a áreas cada vez mais desoladas, os Fhtagnistas não resistiram e, com as mãos dentro das roupas, encostaram os dedos nas coronhas metálicas e geladas das armas.

"Relaxa," Anna falou suavemente, sua voz cortando a tensão palpável que pairava no ar. Enquanto rolava um dado translúcido entre os dedos, ela continuou: "Ele não vai fazer nada de mais."

Homens e mulheres usando pingentes de prata com o símbolo de Fhtagn ao peito assentiram em uníssono. Num movimento fluido, retiraram as mãos das dobras volumosas de suas roupas.

A ordem da Sacerdotisa Suprema era tudo pra eles. Só assim poderiam reviver seu Deus, Fhtagn.

Perto dali, Wang Sheng apertou os dentes. Com uma mistura de desespero e determinação, implorou: "Sacerdotisa Suprema, por favor, deixe-me ficar ao seu lado. Eu sou muito mais útil do que eles!"

Até agora, ele não conseguia entender por que Anna insistia em mandá-lo de volta sem dar boas razões. Ela não explicou nada, apenas lhe disse para perguntar ao pai dele quando voltasse.

Os Fhtagnistas trocaram olhares e zombaram em uníssono ao ouvir Wang Sheng menosprezá-los.

"Garoto, quem você acha que está desdenhando? Veja como tá esse seu corpo frágil, tomado por drogas. O que te faz pensar que é melhor que a gente?"

"Você nem foi reconhecido pelo Grande. Que direito tem de falar assim?" disparou outro.

Porém, comparado ao primeiro encontro, seus olhos estavam mais claros do que antes.

"Você não disse que seguiria minhas ordens incondicionalmente?" Anna perguntou casualmente, enquanto guardava o dado translúcido no bolso de um casaco descartado ao lado.

"Sim!" respondeu Wang Sheng imediatamente.

"Muito bem. Então, escute o que eu digo e volte para o seu pai. Se eu precisar de você, vou procurar."

"Mas—"

"Sem ‘mas’," interrompeu Anna com firmeza. "Não tenho tempo pra lidar com você. Olha, já chegamos."

Wang Sheng levantou o rosto e olhou pelo para-brisa da frente do ônibus. Ao seu lado, pôde ver seu pai na sua frente, o rosto pálido de raiva, apoiado pesadamente na bengala.

Wang Jianshe veio sozinho, sem guarda-costas. Atrás dele, apenas um carro. Ele aparentemente tinha percebido que, por mais preparado que estivesse, nada adiantaria contra alguém como Anna. Então, decidiu economizar tempo e esforço.

Pum!

A porta do ônibus se fechou com um sibilo. Anna, segurando Wang Sheng pelo ombro, empurrou-o para frente enquanto seu grupo de Fhtagnistas seguia logo atrás.

Quando a distância entre Wang Sheng e Wang Jianshe reduziu-se a menos de dez metros, Anna empurrou Wang Sheng com força nas costas.

Wang Sheng cambaleou e, relutante, olhou para trás, para os companheiros com quem lutou e sofreu, um pouco relutante no rosto. Então, virou lentamente na direção do pai e arrastou os pés até ele.

Cada passo parecia carregado de mil arrependimentos e de uma dor lancinante. Mas mesmo a caminhada mais lenta tinha seu fim.

Pouf!

Uma bofetada soou quando a mão de Wang Jianshe atingiu a face de Wang Sheng, imprimindo uma marca vermelha e ardente em sua bochecha direita.

Pum!

Outra veio logo em seguida, fazendo sua bochecha esquerda inchar também.

Ficando furioso, Wang Jianshe levantou sua bengala e a desferiu com força contra Wang Sheng.

Os golpes foram rápidos e duros. Wang Sheng encolheu-se, de braços protegendo a cabeça, mas foi em vão. Logo ficou cheio de hematomas e sangrando.

"Seu idiota!" — berrou Wang Jianshe enquanto chutava Wang Sheng, fazendo-o cair no chão. Ele levantou a bengala mais uma vez e, sem mais golpes brutais, continuou: "Você foi iludido por uma loucura de culto! Se eles mandassem você comer merda, você faria também?!

"Você acha que é tão importante pra ela? Por que acha que ela está tentando salvar você? Você é só uma peça—uma peça descartável que ela vai jogar fora assim que não for mais útil! O que estava pensando?!"

"Responde pra mim!" — Wang Jianshe ergueu a bengala mais uma vez, pronto para acertar. "Você ficou mudo? Como é que acabei tendo um lixo de filho?!"

Enquanto isso, Anna não tinha pressa. Ela ficou ao lado, assistindo à cena como uma plateia divertida num teatro. Perto dali, Tobba murmurava alguma coisa para o palhaço.

A bengala desferia golpes incessantes, deixando Wang Sheng naufragado, sangrando e machucado. Sua cabeça doía e hematomas se espalhavam por todo o corpo, mas ele cerrava a mandíbula, recusando-se a emitir qualquer protesto. Decidiu seguir sua resposta habitual nesse roteiro bem ensaiado.

Huff…Huff…

Claro que Wang Jianshe não tinha se envolvido em uma briga física há anos. O suor escorria das têmporas enquanto ele ficava de pé, com uma mão na cintura; sua respiração ofegava e seus ombros se agitavam.

Quando conseguiu se recuperar, agarrou Wang Sheng pela orelha já roxa e o levantou de um jeito surpreendente. Com força, empurrou o filho em direção ao carro que esperava. "Entre! E nem pense em sair de casa de novo!"

Assim que a porta do carro fechou, o motor rugiu e o veículo partiu em alta velocidade.

Anna finalmente quebrou o silêncio com uma voz calma: "Seu filho voltou. Agora, cadê o que eu pedi?"

Pegando um lenço branco limpo do bolso, Wang Jianshe secou o suor na testa enquanto caminhava em direção a Anna.

Ele tirou um telefone e, após uma breve demora, a tela escura acendeu, exibindo um único endereço.

Não era uma residência, mas sim umas coordenadas de uma linha férrea. Afinal, Charles não estava longe—ele estava nesta própria cidade.

"A pessoa que você procura está morando aqui com alguns moradores de rua," explicou Wang Jianshe. "Não conseguimos rastreá-lo antes porque o garoto nem existe oficialmente. Ele está fora do sistema, sem registros, sem identidade. Um completo fantasma."

Anna pegou o telefone e analisou as coordenadas, memorizando-as. Um sorriso tênue apareceu nos lábios dela enquanto seus olhos se cruzavam com os de Wang Jianshe.

Apesar de suas feições delicadas, o sorriso que ela exibia era tudo menos reconfortante. Ao ver seu sorriso, Wang Jianshe sentiu um calafrio percorrer sua espinha.

Devagar, Anna levantou a mão direita, onde as chamas corrosivas de tom verde-claro lambiam sua antebraço de forma fátua. Imediatamente, a atenção de todos se voltou para ela.

Sei lá, parece que ela já sabe o que eu vou fazer, pensou Wang Jianshe, enquanto sua respiração ficava presa. Contudo, seus olhos não indicavam medo algum.

Então é isso? Ela vai me silenciar? Ainda bem que me preparei. Se Wang Sheng descobrir que ela me matou, talvez ele finalmente cresça?

Mas ao invés de liberar as chamas tumultuosas, Anna apenas colocou a mão brevemente sobre o ombro de Wang Jianshe e lhe deu um tapinha de consolo. Com uma entonação quase de compreensão, ela disse: "Ter um filho como ele deve ser cansativo. Eu entendo sua frustração."

Com isso, Anna virou-se de costas e guiou as outras pessoas até o ônibus que esperava. Sua atitude deixou Wang Jianshe paralisado, as ideias embolando-se com surpresa e incredulidade.

Ao subir os degraus do ônibus, Anna voltou-se para Wang Jianshe e ergueu o telefone na mão. "Não pense que acabou. Se esse local for falso, você vai descobrir o que significa mentir pra mim."

O motorista foi retirado sem cerimônias do ônibus, enquanto o palhaço assumia o volante. O motor rugiu e o ônibus começou sua viagem firme rumo às coordenadas na tela do telefone.