Brasas do Mar Profundo

Volume 1 - Capítulo 66

Brasas do Mar Profundo

A bela manhã a bordo do Banido começou com o grito estrondoso do capitão no convés.

Duncan estava do lado de fora de sua cabine, apontando para uma visão inusitada: a cabeça de uma boneca pendurada em uma viga próxima. Seu olho tremia levemente enquanto observava o corpo da boneca, trajando um longo vestido gótico roxo, se levantando desajeitadamente para pegar a cabeça que balançava no ar.

Com um som nítido de ‘pop’, a senhorita boneca recolocou sua cabeça e correu até Duncan, deixando escapar um riso tímido:

Hehe…”

‘Hehe’ o quê? Por que diabos você pendurou a cabeça na minha porta logo cedo?” Duncan vociferou, fitando a boneca amaldiçoada que frequentemente causava problemas. Convenhamos, acordar e encontrar uma cabeça decapitada balançando à brisa matinal não era algo fácil de ignorar. “E nem me diga que estava servindo de vigia – já temos a pomba para isso!”

“Eu lavei meu cabelo pela manhã…” Alice encolheu os ombros, falando de forma hesitante. “Ele não secava de jeito nenhum, então pensei em pendurá-lo no alto para pegar um pouco de vento…”

Duncan permaneceu em silêncio, o olhar fixo nela, até que finalmente murmurou: “Razoável.”

Depois de conter um leve espasmo em sua expressão, ele teve que admitir que, no estilo de vida peculiar de Alice – catalogada como ‘Anomalia 099’ – pendurar a cabeça para secar ao vento fazia sentido. Afinal, naquela embarcação, até o guincho do navio tirava cochilos à tarde, e o balde usado para lavar o convés tomava banho de sol todos os dias. Para viver naquele barco, era preciso ter a mente aberta.

Na verdade, Alice estava se integrando cada vez melhor ao ambiente único do Banido.

“Capitão, ainda bem que o senhor não está bravo!” Alice sorriu aliviada. Ela parecia não apenas adaptada à vida no navio, mas também começava a compreender o temperamento peculiar de Duncan. Embora ainda o respeitasse profundamente, já não tinha o medo paralisante de antes. “Então… eu posso continuar pendurando minha cabeça, mas em outro lugar?”

“Não na porta da minha cabine – em qualquer outro lugar, escolha você mesma”, Duncan cortou, lançando-lhe um olhar. “Eu prefiro não abrir a porta e dar de cara com a cabeça decapitada de um tripulante ou com um corpo sem cabeça vagando por aí.”

Alice abaixou a cabeça, resignada: “Entendido, capitão.”

Mas Duncan continuou a encará-la, como se estivesse perdido em pensamentos.

“Capitão?” Alice perguntou, inquieta. “Por que está me olhando assim…?”

“Estava pensando em algo”, Duncan disse calmamente. “Você perde cabelo, certo? Quando lava, ele também cai? E… você consegue fazer ele crescer de novo?”

Alice congelou, seu rosto assumindo a expressão de um pássaro assustado.

Após alguns segundos de silêncio constrangedor, ela finalmente balbuciou: “Eu… eu nunca pensei nisso! Capitão, o senhor—”

Ela parou de falar abruptamente, reprimindo a vontade de dizer que ele era um verdadeiro demônio. Tinha medo de que o Sr. Cabeça de Bode a repreendesse por subestimar o poder de Duncan e enaltecer demais a imagem do maior desastre do mar.

Duncan, por outro lado, ignorou a hesitação dela. Sua mente já havia ido além: “Veja bem, você pode andar, falar e se mexer como uma humana, mas seu corpo ainda é o de uma boneca. Você não come, não bebe, e suas articulações podem ser recolocadas no lugar. Isso não significa que seu cabelo é um recurso não renovável? Se lavar muito, ele não vai acabar? E se pentear demais, não seria pior?”

Alice estava quase às lágrimas.

“Capitão, por que o senhor pensa em algo tão horrível…”

“Na verdade, essa dúvida surgiu quando você fez aquela sopa de cabeça de peixe”, Duncan comentou com naturalidade.

Alice, mesmo imersa na tristeza, ficou confusa.

“Mas… eu só fiz uma sopa de peixe…”

“Ora, tinha peixe, cabeça e sopa. Por que não seria sopa de cabeça de peixe?” Duncan respondeu com confiança.

Alice suspirou resignada: “O senhor tem razão, capitão…”

Assim, a peculiar manhã a bordo do Banido começou com todos concordando que, no final das contas, os argumentos do outro eram razoáveis.

A senhorita boneca saiu cambaleando, mergulhada em pensamentos profundos. Parecia que um dilema existencial acabara de lhe ser imposto. Enquanto isso, Duncan se sentia estranhamente animado. Ele respirou o ar marítimo, sentou-se para um café da manhã simples – peixe grelhado preparado por Alice no dia anterior, pedaços de queijo e um licor forte da cidade-estado de Pland – e saboreou a melhor refeição que o Banido poderia oferecer.

No interior da cabine do capitão, no compartimento onde ficavam os mapas, o Cabeça de Bode observava curiosamente Duncan, que parecia de bom humor.

“Capitão, o que aconteceu com a Srta. Alice? Notei que ela voltou para a cabine completamente distraída, e no caminho bateu na porta duas vezes… Ela parece estar com muitas coisas na cabeça.”

“Ela está enfrentando um grande desafio na vida”, Duncan respondeu enquanto girava o copo de licor, um sorriso travesso nos lábios. “Acho que por um bom tempo você não precisará se preocupar com ela brigando com as coisas estranhas deste navio.”

“Ah? Um desafio? Que tipo de desafio?”

“Se uma boneca amaldiçoada perder todo o cabelo, ela se tornará uma boneca careca?” Duncan perguntou, extremamente sério. “Essas entidades sobrenaturais não deveriam ter algum tipo de poder extraordinário para manter certas características? Infelizmente, Alice fugiu antes que eu pudesse discutir isso com ela.”

O Cabeça de Bode ficou mudo por um instante.

“Por que você não diz nada?” Duncan perguntou, lançando um olhar curioso para a criatura normalmente tagarela.

Depois de um momento de esforço, o Cabeça de Bode finalmente respondeu:

“Capitão, você é realmente o terror mais implacável dos mares infinitos… Eu jamais conseguiria pensar em uma pergunta dessas, muito menos fazer.”

Duncan deu de ombros e se levantou da mesa náutica.

“Vou sair de novo”, ele informou, estalando os dedos. Uma chama verde surgiu do nada, e Ai, a pomba em sua forma de pássaro espectral, materializou-se, pousando no ombro de Duncan. “Você fica no comando como de costume.”

“Às ordens, capitão. Este servo leal não o desapontará!” respondeu o Cabeça de Bode em tom teatral, antes de continuar, curioso: “Capitão, ultimamente você parece muito interessado em andar pelo mundo espiritual. Há algo em terra que chamou sua atenção?”

Duncan hesitou por um momento antes de responder:

“Descobri recentemente que, após um século de desenvolvimento, o mundo se tornou um lugar um pouco mais interessante.”

A resposta foi cuidadosamente pensada: era vaga o suficiente para não revelar nenhuma deficiência de conhecimento, mas plantava uma semente que justificava seu crescente interesse no mundo terrestre. Além disso, era coerente com a personalidade de Duncan, o Capitão do Banido.

O Cabeça de Cabra assentiu, achando tudo absolutamente natural: “Você tem razão, capitão. Depois de tantos anos, é natural que esses frágeis estados tenham criado algo que valha sua atenção. Faz sentido que queira se entreter um pouco… Nesse caso, devemos preparar o Banido? Pretende invadir Pland? Lensa? Ou as terras geladas do norte, como Porto Frio?”

Duncan começou a concordar internamente com a lógica do Cabeça de Bode, mas congelou ao ouvir a última parte. Sangue gelado parecia correr em suas veias enquanto interrompia a criatura: “Quando foi que eu falei sobre invadir cidades-estado? Algo interessante acabou de surgir; destruí-lo seria um desperdício.”

“Ah… claro, tem razão. Minha sugestão foi precipitada”, o Cabeça de Bode recuou rapidamente. “Na verdade, presumi que pretendia simplesmente navegar até lá para dar uma olhada. Mas, se não é esse o caso, retiro minha ideia. De qualquer forma, é verdade que grandes cidades-estados possuem algum poder, e se aproximar sem preparação pode ser arriscado…”

“Não mencione casualmente a ideia de invadir cidades-estado”, Duncan advertiu, lançando-lhe um olhar penetrante. “Estamos fora de contato com o mundo há um século. Preciso entender como a civilização mudou e isso pode exigir ajustes a longo prazo. Até que eu dê ordens específicas, não faça planos desnecessários.”

“Como desejar, capitão. Suas ordens serão seguidas à risca.”