Volume 1 - Capítulo 6

Ling Qi começou sua primeira manhã como discípula da Seita vasculhando sonolenta a minúscula cozinha em busca de algo simples para comer. Ela ficou aliviada por terem reabastecido a despensa na noite anterior; odiaria ter que ir até o depósito antes de conseguir acordar direito.

Sinceramente, ainda parecia um pouco estranho pensar que ela não precisava mais se preocupar com a comida. Seus devaneios serviram como distração enquanto ela terminava de preparar o café da manhã. Ela se surpreendeu ao notar que a porta de Meizhen ainda estava fechada e não havia sinal de que a outra garota tivesse acordado. Ling Qi não a imaginava como o tipo que dormia até tarde.

Um rápido olhar pela janela enquanto ela se sentava para comer mostrou que já passava de uma hora do nascer do sol. Mesmo depois de terminar de comer e voltar para seu quarto para fazer um esforço inútil para domar seus cabelos e se arrumar para o dia, a porta da colega de quarto permaneceu fechada. Ling Qi considerou bater, ou até mesmo abrir um pouco a porta para verificar como ela estava, mas o aviso da outra garota ecoava em sua mente.

Em vez disso, ela decidiu passar a manhã continuando a praticar os exercícios da técnica Alma de Prata até perto do meio-dia. Sentar-se de pernas cruzadas na sala de meditação escura, simplesmente respirando, era estranhamente relaxante assim que ela conseguiu acalmar seus pensamentos, e Ling Qi rapidamente sentiu seu cansaço diminuir.

Sem usar uma pedra espiritual, ela não sentiu nenhum aumento no tênue brilho de calor que restava da meditação da noite anterior, mas ainda era bom sentir aquele calor "respirando" junto com ela. Pela primeira vez em memória recente, ela sentiu que era realmente boa em algo. Sabia que provavelmente era apenas um pensamento otimista, mas permitiu que a ideia persistisse.

Quando ela saiu da sala de meditação, descobriu que Bai Meizhen finalmente havia acordado. A garota estava sentada perto da lareira tomando um copo d'água, parecendo tão impecável quanto no dia anterior. Ling Qi sentiu um aperto de inveja pela aparente facilidade com que a outra garota mantinha sua aparência. Ela havia se conformado há muito tempo com suas próprias peculiaridades.

Mais importante, a garota pálida era diferente em um aspecto principal: a cobra que ela havia visto era agora totalmente visível, enroscada frouxamente no pescoço de Bai Meizhen. Era uma criatura chamativa, com escamas verde-brilhantes que lhe lembravam jade caro. Era também bastante pequena, com apenas a largura de dois dedos juntos.

A cobra e a garota olharam para cima com uma sincronia assustadora quando Ling Qi surgiu, e ela não pôde deixar de notar que os olhos da cobrinha eram exatamente da mesma tonalidade que os de Meizhen. Antes que o silêncio pudesse ficar constrangedor, Ling Qi voltou a olhar para o rosto de sua colega de quarto.

“Ah, você já está acordada. Bom dia.” Ela não sentiu a necessidade de tentar falar melhor perto da outra garota, que parecia não ter reação de qualquer forma.

“Bom dia”, respondeu Bai Meizhen, sem interromper o contato visual... ou piscar. Ling Qi realmente desejava que ela piscasse com mais frequência. “Sua prática foi bem?”

Ling Qi deu de ombros, sentindo-se um pouco insegura. Ela gostava de pensar que sim, mas não tinha nada com o que comparar. “Acho que sim. Quero dizer... não acho que consegui ‘despertar’, mas acho que consigo sentir algo no meu ‘dantian’ agora?” Ling Qi gaguejou mais do que gostaria.

A garota pálida simplesmente assentiu levemente em resposta, colocando sua xícara agora vazia. “Isso é esperado. Seria altamente incomum que você tivesse alcançado o estágio Alma Vermelha em uma única noite de cultivo sem recursos significativamente maiores.” Ela ergueu a mão para acariciar indolentemente a pequena cabeça em forma de pá de sua serpente com um dedo, e o réptil se aconchegou em seu toque.

“Imagino que você não terá problemas em alcançá-lo até o final da semana, se você se esforçar”, acrescentou ela. Seu tom era tão neutro como sempre, mas Ling Qi achou que ela estava tentando ser encorajadora. Talvez. Ela também poderia estar dando um ultimato; era difícil dizer.

Apesar disso, Ling Qi teve a sensação de que as opiniões dessa garota sobre a velocidade de progressão natural poderiam ser um pouco distorcidas. “Eu sei que vou conseguir”, respondeu ela com mais confiança do que realmente sentia. “Mas preciso sair, então te vejo mais tarde.” Ela gostaria de perguntar mais sobre algumas das coisas que a outra garota mencionou, mas se atrasaria se o fizesse.

Bai Meizhen respondeu com um pequeno aceno de cabeça enquanto Ling Qi se virava para ir, voltando sua atenção completa para a serpente em seu pescoço. A última imagem que ela teve delas foi a cobra verde-brilhante levantando a cabeça e sibilando no ouvido de Bai Meizhen, quase como se estivesse sussurrando para ela.

Era um dia claro e brilhante, embora o frio do outono fosse bastante intenso. Ling Qi ficou aliviada ao descobrir que o uniforme de discípula era quente, apesar de não ser exatamente roupa de inverno. Era realmente o melhor conjunto de roupas que ela já teve. Ela ainda queria modificá-lo um pouco, mesmo que fosse só por causa do ajuste ruim. Talvez ela pudesse tentar usar o kit de costura que lhe foi fornecido.

Esses pensamentos ficaram em segundo plano, pois a maior parte da atenção de Ling Qi estava em garantir que ela não se metesse em problemas a caminho da praça. Ela não sabia se sua "amizade" com Bai Meizhen seria suficiente para provocar uma retaliação real, mas não sentia necessidade de arriscar.

Sem ninguém procurando ativamente por ela e com a falta de multidões reais, não foi difícil simplesmente seguir um caminho indireto até a borda da área. Lá, contornou o perímetro até chegar ao caminho de entrada esculpido na encosta da montanha. Ela manteve a cabeça baixa e curvou-se sutilmente para esconder sua altura, saindo sem problemas.

Ficaria mais difícil com o tempo, mas, por enquanto, seus pequenos truques para evitar serem notada eram suficientes. Felizmente, havia poucas pessoas no caminho para a praça, e aquelas que estavam viajando por ele estavam bastante dispersas e muito ocupadas com seus próprios pensamentos para prestar atenção nela. A própria praça era mais populosa, e foi ali que ela viu pela primeira vez as discípulas mais velhas. Havia ainda mais delas do que estudantes da sua idade. De onde elas tinham vindo?

Ela ficou na beirada da praça por um tempo para observar, mas acabou relaxando. Nenhuma das discípulas mais velhas parecia ter qualquer interesse nas do seu grupo. Na verdade, elas pareciam estar quase deliberadamente ignorando-as enquanto seguiam seus afazeres. A maioria seguiu para o grande prédio de palestras, mas outras simplesmente ficaram em grupos conversando ou seguindo por outros...

Aqueles portões não estavam lá ontem. Agora havia quatro outros portões – dois no lado leste e dois no lado oeste – marcando caminhos que subiam ou desciam a montanha. Ling Qi balançou a cabeça ao ver aquilo. Mais magia. Ela realmente estava fora de sua liga. A confiança que ela sentira na noite anterior e naquela manhã estava diminuindo rapidamente. Eventualmente, ela saiu da sombra dos portões e começou a procurar por Han Jian.

Ela sabia que era tolice, mas entre seu constrangimento com Sun Liling e a natureza... taciturna de sua colega de quarto, ela realmente estava ansiosa por alguma interação simples e amigável. Ela não conseguia se convencer a desconfiar do rapaz bonito.

Essa foi a única razão pela qual ela parou em vez de ir embora quando o viu já conversando com outra discípula. Era outro garoto, menor que os dois por uma cabeça, mas significativamente mais largo nos ombros e mais largo na cintura. Se alguma coisa, ele parecia quase o oposto de Han Jian: atarracado e musculoso, com traços ferozes e cabelos pretos espetados.

Ela não estava perto o suficiente para ouvi-los sobre o baixo murmúrio do resto da praça, mas viu que o garoto menor estava falando mais, gesticulando freneticamente. Ele parecia ter uma personalidade bastante bombástica à primeira vista.

O sorriso de Han Jian parecia bastante fixo. Han Jian encontrou seus olhos, então, notando-a onde ela havia parado na sombra de uma das árvores de pêssego espalhadas. Por um instante, Ling Qi viu algo como alívio em seus olhos. Isso foi o suficiente para fazê-la se mover novamente. Quando ela se aproximou, Han Jian levantou a mão, interrompendo o outro garoto.

“Ling Qi! Aqui! Que bom que você conseguiu chegar.” Essa era uma maneira de se desculpar de uma conversa, embora ela não estivesse muito satisfeita com a atenção que isso chamou para ela. De sua parte, o garoto menor se virou rapidamente na direção do olhar de Han Jian, uma expressão ansiosa em seu rosto... apenas para desaparecer assim que seus olhos pousaram sobre ela.

Ling Qi reprimiu sua expressão séria e, em vez disso, acenou polidamente para Han Jian enquanto fechava a distância.

“Bom dia, Han Jian. Desculpe se me atrasei.” Com ele, ela sentiu que pelo menos deveria se esforçar para ser educada.

Ling Qi olhou para seu companheiro. Ele estava a encarando infelizmente. Qual era o problema dele? “Quem é sua-”

“Sério, Jian?”, interrompeu o garoto menor, lançando um olhar incrédulo para o outro garoto. “Quando ouvi dizer que um pegador como você ia sair para encontrar uma garota, pensei que teria a chance de conhecer uma beleza, não um palito com pretensões!”

Suas palavras eram altas e grosseiras, mesmo desconsiderando seu conteúdo. Ling Qi sentiu sua expressão congelar em seu rosto, mesmo quando Han Jian fez uma careta quase imperceptivelmente. Se ela não tivesse notado seu desconforto com o outro garoto, ela poderia ter feito ou dito algo infeliz. Como estava, ela se conteve, mas por pouco, serrando os dentes. No silêncio que se seguiu, Han Jian conseguiu se recompor.

“...Yu, não é um pouco demais? Não há necessidade de ser rude com outro praticante. Além disso, eu te disse que não era nada disso.”

“Isso foi definitivamente mais do que um pouco demais”, interveio Ling Qi amargamente, lançando um olhar furioso para o garoto menor e ignorando a pontada desagradável que as palavras de Han Jian causaram sem nenhuma razão que ela admitiria.

‘Yu’ simplesmente deu um aceno de mão displicente para suas palavras, fazendo sua raiva aumentar ainda mais. Ele nem mesmo olhou para ela. “Ela é apenas uma plebeia, Jian. Você pode dizer olhando. Você realmente vai perder tempo com isso?”

Ling Qi não se deu ao trabalho de dizer nada desta vez, embora sua expressão ficasse mais séria. Ela não podia fazer nada sobre isso agora, mas certamente se lembraria do insulto. A expressão de Han Jian era cautelosa enquanto ele respondia.

“Eu não vou quebrar uma promessa, Yu.” Era provavelmente a coisa menos amigável que ela já o ouvira dizer.

O garoto menor resmungou em resposta. “Tudo bem. Acho que não vou te invejar seus gostos, Jian. Só tente não perder muito tempo. Eu não vou tolerar um irmão meu ficando para trás!” Ele foi embora sozinho enquanto suas palavras se desvaneciam no ar da manhã, deixando os dois em silêncio constrangedor. Bem, Han Jian parecia constrangido. Ling Qi estava furiosa internamente.

“Então... irmão?”, ela perguntou sem entusiasmo, olhando para Han Jian com uma expressão pouco impressionada.

Ele fez uma careta, esfregando a nuca com a mão. Foi só então que ela percebeu que o filhote de tigre havia desaparecido. “Não de sangue. É só...” ele interrompeu, aparentemente procurando palavras. “Você já teve um colega que seus pais praticamente te ordenaram para ser amigo? É assim.”

Ling Qi nunca tinha tido essa experiência, mas ela conseguia entender o que ele queria dizer. Ela havia sido "amigável" com pessoas menos agradáveis durante o tempo que viveu nas ruas. Ela sentiu sua raiva diminuindo. Não era culpa de Han Jian.

“Pegador?” Ela ergueu uma sobrancelha.

Agora, o rapaz bonito parecia apenas cansado e exasperado.

“É uma piada idiota que começou há alguns anos por causa das irmãs de um amigo. Yu simplesmente leva muito a sério porque...” Ele interrompeu e gesticulou sem jeito para seu rosto bonito.

Ling Qi achou que ele parecia sincero, mas não pôde deixar de ficar um pouco mais cautelosa agora. Embora, se ela estivesse sendo mais razoável, era um pouco bobo um garoto de quatorze anos ser considerado um "pegador". “Então, o que acontece agora?”

Ele suspirou. “Posso te dar algumas dicas para começar seu cultivo e, se você quiser, posso te ajudar a praticar um pouco como eu disse que faria”, respondeu ele sinceramente. “Mas irei às aulas que os Anciãos estão dando à tarde.”

“Eu também”, disse Ling Qi, sentindo-se um pouco aliviada. “Isso será algo único, então?”

“Acho que posso reservar uma ou duas horas a cada poucos dias, se você quiser.” Han Jian parecia mesmo quase demais gentil. Aquele amigo babaca dele tinha razão, no entanto. Ela era apenas uma plebeia; por que ele estava disposto a passar tempo com ela? Ela gostaria que a resposta fosse que ele simplesmente gostava dela, mas não tinha certeza se podia acreditar nisso.

“Eu gostaria disso.” Ling Qi considerou simplesmente perguntar a ele, mas não poderia arriscar ofendê-lo e perder sua ajuda. Ela precisava de todos os recursos que pudesse obter agora. Ela se sentiu um pouco triste por o encontro com o outro garoto tê-la tornado desconfiada, mas era melhor assim.

“Por onde devemos começar?”, perguntou ela. “Minha colega de quarto me ajudou a ter uma ideia do meu dantian, e acho que domino o primeiro exercício de respiração.”

“Ah? Isso foi rápido”, disse Han Jian, erguendo as sobrancelhas. “Acho que você está se referindo aos exercícios da Alma de Prata”, continuou ele, ao que ela acenou com a cabeça. “Vou deixar isso para o Ancião mais tarde. Se você entende seu dantian...”

“Não tenho certeza se entendo”, admitiu Ling Qi. “Ela meio que... forçou. Eu entendo que é seu centro espiritual e onde você armazena o qi, mas...” Ela interrompeu, espalhando as mãos em um gesto de impotência.

Ele a olhou de maneira estranha, encostando-se ao tronco da árvore de pêssego sob a qual eles estavam.

“...Certo, essa é a essência disso. O dantian não é um órgão físico como seu coração ou seu estômago, mas exercitá-lo e expandi-lo é fundamental para melhorar sua capacidade de conter e usar o qi. Pense nele como o coração do seu espírito.”

Ling Qi estava vagamente ciente dos órgãos do corpo, a partir de um diagrama meio lembrado em um texto de médico que ela havia roubado e penhorado no ano passado. Ela vasculhou seus pensamentos em busca de informações de um texto que ela havia folheado apenas em um momento de ociosidade enquanto esperava um cliente.

“Isso significa que, assim que eu o despertar, ele começará a mover o qi pelo resto do meu corpo?”

Ele sorriu e, apesar de si mesma, ela se sentiu um pouco mais aquecida.

“Sim. Mas, ao contrário de suas veias físicas, você terá que abrir seus meridianos manualmente. É... bastante difícil e doloroso, mas você precisará aguentar porque seu qi não poderá afetar o mundo sem canais abertos.”

Cultivo não era fácil, parecia. Ling Qi sentou-se no banco debaixo da árvore enquanto eles continuavam a conversar, discutindo os fundamentos do cultivo.

Havia um número muito grande de meridianos potenciais no corpo humano e quais ela escolhesse abrir afetariam quais técnicas e artes ela poderia aprender. Artes eram como os cultivadores chamavam sua magia, e técnicas eram feitiços individuais dentro de uma arte. Muito disso passou por cima de sua cabeça, mas ela achou que entendeu a ideia básica.

Han Jian tinha meridianos alinhados ao vento abertos em suas pernas, bem como meridianos alinhados ao fogo em seu coração e espinha. Um praticante essencialmente tinha uma quantidade limitada de espaço em seu corpo para usar para canalizar qi, o que permitia o uso de artes. Um meridiano só podia canalizar um único tipo de qi de cada vez, limitando o número de artes que um cultivador podia usar. À medida que alguém crescia em poder, seu corpo conseguia suportar a abertura de mais meridianos, permitindo-lhe uma gama maior de técnicas.

Isso significava que Ling Qi, que estava apenas começando, seria limitada a uma única arte no início. Isso era preocupante. Se as aulas não descobrissem nada sobre o assunto, ela talvez tivesse que pedir conselho a Bai Meizhen.

Apesar de ter gostado do tempo que passou com Han Jian, isso não poderia durar para sempre. Depois de uma hora mais ou menos, ela tinha um controle um pouco melhor das coisas, e ele havia corrigido alguns erros que ela estava cometendo com os exercícios da Alma de Prata. Foi com uma confiança um pouco restaurada que ela caminhou ao lado dele até a sala de palestras enquanto o sol passava do zênite e a hora das aulas da tarde começava.

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