Volume 10 - Capítulo 390
The Beginning After The End
VARAY AURAE
A areia movediça do mapa de batalha girava sob o controle cuidadoso de três magos anões trabalhando em conjunto. O projeto tridimensional mostrava os túneis e pontos de saída dentro e ao redor de Vildorial em detalhes, a imagem dele mantida nas mentes dos estrategistas anões. No curto espaço de tempo desde nossa chegada e expulsão das forças alacryanas, a maioria dos túneis já havia sido desviado ou tampado, isolando a capital escura da maior rede subterrânea que a conectava a outras cidades anãs.
“Apenas um punhado de túneis permanecem abertos para o norte da cidade, bem aqui.” Carnelian Earthborn, o pai de Mica, apontou para uma seção de pequenos túneis que se ligavam a várias vias muito maiores. “Mas estarão fechados nas próximas duas horas. Todas as operações de mineração e agricultura fora da cidade foram interrompidas e todos os civis foram trazidos para a cidade.”
“Que ágeis”, falei agradecida. “E os portões da cidade?” perguntei, virando-me para Daglun Silvershale, que fora encarregado do trabalho dentro da própria grande caverna.
“A cidade está mais fechada do que o esfíncter de um verme das pedras”, ele confirmou, acenando com a cabeça sombriamente. “E o Palácio Real foi aberto para fornecer abrigo para alguns milhares, pelo menos.”
Mordi minha língua. Isso fazia parte do plano com o qual não concordei, mas os lordes anões insistiram que os anões de mais alto escalão – eles mesmos, em outras palavras – e suas famílias fossem evacuados para o Palácio Real dos Greysunders. O próprio Carnelian fez Mica prometer que protegeria o Palácio.
Apesar desse desperdício frustrante de recursos, fui forçada a reconhecer que as Lanças não estavam “no comando” dos anões e não tinham o direito, além do fornecido por nosso poder e proeza, de dar ordens ou fazer proclamações. Já tínhamos concordado que as Lanças não forçariam o controle longe dos lordes em algum tipo de golpe militar autoritário.
Já havia lutas internas suficientes e precisávamos nos concentrar nos alacryanos. O povo anão tinha muita coisa para fazer quando esta guerra acabasse. E repetidas vezes, seus líderes falharam com eles. Se o povo quisesse a ajuda das Lanças para corrigir isso depois da guerra, ficarei mais do que feliz em concordar, mas tínhamos que sobreviver à tempestade que se aproximava antes que pudéssemos começar a limpar a bagunça que era nossa própria casa.
No entanto, não tentei esconder meu desprezo pelo plano deles quando encontrei os olhos de Lorde Silvershale. “E as fortificações para as outras estruturas da cidade, como pedi?”
Ele limpou a garganta. “Em andamento, Lança.”
Carnelian começou a falar com um sorriso sombrio. “Um pelotão de magos da Guilda Earthmovers pode ser realocado dos túneis para a cidade para fortalecer as fortificações.”
Silvershale puxou as tranças de sua barba, parecia querer discutir, mas aparentou pensar um pouco mais e desistiu, se acalmando ligeiramente. “Sim, poderíamos usar como assistência.”
Se os alacryanos atacassem a cidade, teriam que explodir para entrar. Isso colocou os muitos anões, cujas casas foram construídas nas paredes da caverna, em perigo e as pedras desalojadas do teto da caverna teriam a velocidade das pedras de catapulta no momento em que atingissem os níveis mais baixos, demolindo facilmente estruturas não fortificadas. Simplesmente instruir as pessoas a se abrigarem no lugar não foi suficiente. Nem de perto.
“Não há como dizer quanto tempo teremos para nos prepararmos”, lembrei aos dois lordes. “Nós mordemos a mão dos alacryanos, mas em algum lugar, essa mão está se curvando em um punho para atacar de volta.”
Como se conjurado em realidade pelo peso de minhas palavras, um estrondo ameaçador sacudiu as fundações do Instituto Earthborn, enviando tremores através das solas de minhas botas.
Carnelian correu para a porta da câmara e olhou para o corredor. Vozes de pânico podiam ser ouvidas ecoando pelo Instituto. O mapa tridimensional desmoronou de volta em pó quando os magos se voltaram para seus lordes em busca de direção.
“Vão para suas posições defensivas”, disse imediatamente. “Mande um esquadrão de magos para aqueles túneis do norte para terminar de fechá-los.”
“Eles estarão bem na linha de fogo se os alacryanos vierem do norte”, disse Carnelian, seu tom hesitante e levemente questionador, como se pedisse confirmação.
“E nossas defesas são violadas antes mesmo do início da batalha se esses túneis não estiverem selados”, respondi, entendendo completamente os riscos. Esta não foi a primeira vez que enviei soldados para o que poderia muito bem ser suas mortes. “E envie o alarme. As pessoas precisam se abrigar onde puderem.”
Esperando apenas o tempo suficiente para ver os dois lordes acenando cheios de compreensão, girei e voei para fora da sala, ao longo de uma série de túneis quadrados e depois para fora pelos portões da frente do Instituto Earthborn.
Mica veio voando de algum nível inferior, a gema preta no lugar de seu olho dava a ela um olhar ameaçador, enquanto olhava através das paredes de pedra na direção do estrondo. “Alguém está abrindo os túneis bloqueados… ou tentando. Eles devem ter disparado uma das armadilhas de bainha de pedra.”
Os anões eram, sem surpresa, bastante hábeis em esconder todo tipo de armadilhas tortuosas dentro dos túneis de sua casa. Mesmo que os alacryanos tivessem anões entre suas forças, eles achariam difícil forçar seu caminho através dos muitos obstáculos que os vildorianos haviam erguido ao redor da cidade.
A aproximação de uma aura poderosa fez com que Mica e eu nos virássemos em uníssono, mas era apenas Arthur aparecendo dos portões do Instituto Earthborn. Enquanto ele caminhava propositadamente em nossa direção, não pude deixar de olhar para ele, meus olhos viajando lentamente por suas feições enquanto tentava, novamente, combinar esse homem com o garoto de dezesseis anos que ele conhecia.
Seu cabelo loiro trigo estava de pé pela velocidade de seu próprio movimento, pendurado em torno de um rosto que poderia ter sido esculpido em pedra, qualquer suavidade juvenil apagada pelas provações desta guerra. O mais surpreendente, porém, foram seus olhos. Aquelas esferas douradas queimavam como o sol, seu olhar carregando um calor físico, um poder bruto e indefinível, sempre que caía sobre mim. Sua presença repentina causou arrepios ao longo das costas dos meus braços e pescoço, lembrando-me desconfortavelmente de como me senti na presença do General Aldir.
Pequena. Insubstancial. Sem propósito.
“O que está acontecendo?” Arthur perguntou, parando ao meu lado.
Me dei um tremor mental antes de responder. “Movimento nos túneis. Nenhuma palavra dos batedores ainda, mas algumas de nossas armadilhas foram acionadas. Os alacryanos estão chegando.”
“Então, vamos nos preparar”, respondeu Arthur, seu tom inabalável.
Após a pressa de preparação, Vildorial caiu em uma quietude tensa e trêmula. Garanti que as forças defensivas estavam se movendo para a posição conforme as instruções, então caí de volta para uma curva remota da rodovia que cercava a cidade para que eu pudesse ver toda a caverna de uma vez. Observei. Esperei. Mas não havia sinal dos alacryanos. Ainda não.
Uma assinatura de mana se aproximando atraiu meu olhar para cima e observei enquanto Mica voava pela extensão aberta para pousar ao meu lado.
“Os lordes e suas famílias, bem como alguns poucos… residentes importantes, foram vistos com segurança no Palácio Real”, disse Mica, com as bochechas vermelhas de claro constrangimento. “Mica… digo, estarei, é…, protegendo o palácio. Há algo que você precise antes que…?”
Balancei a cabeça, tentando não direcionar minha irritação para ela. “As forças anãs foram colocadas ao redor da cidade nos pontos de entrada mais prováveis caso os alacryanos cheguem à cidade. Bairon e eu vamos ficar rotacionando entre essas forças.”
“O grupo de reconhecimento voltou?”
Mais uma vez neguei com a cabeça. Enviamos uma dúzia de magos de elite, todos altamente capazes de manipulação terra, para os túneis orientais para investigar a fonte do distúrbio original, mas eles estavam desaparecidos há horas.
Quase como se ele tivesse ouvido nossa pergunta, o ar vibrou e Bairon apareceu, voando em alta velocidade. Uma nuvem de poeira explodiu do chão com a força de sua aterrissagem. “Um punhado de magos acabou de voltar dos túneis do norte”, ele estava dizendo antes que a poeira se dissipasse. “Menos de um quarto dos magos enviados para fechar os túneis.”
“O que aconteceu?” Mica perguntou, sua agitação colocando as pedras sob meus pés em constante vibração.
“Eles alegam que foram atacados por sombras”, disse Bairon, com a voz baixa e cortada com uma ponta de superstição. “E pelos cadáveres de seus colegas mortos.”
Este anúncio foi recebido com um momento de silêncio.
“Nem fodendo, tá de sacanagem, caralho?”
“Que tipo de magia poderia fazer uma coisa dessas?” Perguntei, ignorando a linguagem suja de Mica.
“Nenhuma que ouvi falar ou me deparei anteriormente”, disse Bairon ameaçadoramente.
Cerrei meu punho de gelo e deixei a mana calmamente fluir através de mim, esfriando meus nervos. “Conseguiram fechar os túneis antes do ataque?”
Bairon flutuou no ar, uma rajada de vento ondulando sobre ele enquanto a eletricidade se arrastava sobre sua armadura. “Conseguiram, embora não tão completamente quanto deveria ter sido feito. Pode não aguentar, especialmente se o inimigo já estiver lá.”
“Bairon, veja se os sinalizadores estão no lugar nas duas últimas entradas. Mica, aos seus deveres.”
As outras Lanças acenaram sombriamente, depois partiram, me deixando sozinha. Os anões corriam como formigas lá embaixo, correndo para qualquer refúgio que tivessem arranjado para si mesmos. A maioria dos refugiados élficos foram levados para o Instituto Earthborn, enquanto nossos magos mais fortes, Glayders, Chifres Gêmeos e guardas sobreviventes, se juntaram à defesa durante toda a caverna.
Me perguntei ociosamente onde Virion estava escondido. Ele estava ausente da maioria das reuniões preparatórias e não o vi no último dia. Embora meu juramento de sangue tivesse sido feito aos Glayders, Virion tinha sido nosso comandante durante o auge da guerra e tenho grande respeito por ele. Observá-lo desaparecer causou uma dor glacial lenta que eu não estava preparada para enfrentar.
Um flash de luz roxa atravessou meus pensamentos e dei um passo rápido para trás antes de perceber que era Arthur. “Nunca vou me acostumar com isso”, murmurei triste.
As feições estóicas de Arthur foram esculpidas em uma leve carranca. “Você viu minha mãe ou irmã?” Ele perguntou sem preâmbulo. “Elas não estão com os refugiados no Instituto Earthborn.” Então, parecendo um pouco envergonhado enquanto esfregava a nuca, ele acrescentou “Só queria ter certeza de que elas estavam em algum lugar seguro antes…”
“Não precisa se explicar para mim”, falei, salvando-o de uma vergonha ainda maior. “E sim, para deixar sua mente à vontade, vi sua irmã e o urso levando sua mãe ao nível mais alto um tempo atrás, em direção ao Palácio Real. E”, um pequeno sorriso surgiu sem que eu queira em minha face, “Posso ter ouvido Eleanor repreendendo Alice sobre como o palácio seria o lugar mais seguro para ela, considerando que Lança Mica o protegerá.”
A dureza das feições de Arthur sumiu e soltou um suspiro de alívio. “Ah. Ótimo. Fiquei… preocupado que ela pudesse fugir para a batalha novamente.”
Limpei minha garganta e voltei minha atenção para o movimento abaixo. “Odeio essa espera.”
Arthur me deu um sorriso malicioso que me lembrou muito do garoto que ele já fora. “A imperturbável General Varay, talvez, esteja levemente ansiosa?”
Ri, pega de surpresa por sua provocação. “Não deveria. Afinal, temos a poderosa Lança Godspell presente para nos proteger.”
O sorriso de Arthur vacilou, se contorcendo em algo mais irônico e, pensei, até um pouco amargo. “Um título que não tenho certeza se já ganhei, Lança Zero.”
Não esperava tal autodepreciação e tive que tirar um momento para considerar uma resposta. Era fácil esquecer que Arthur ainda era apenas um menino, realmente, não mais velho do que talvez dezenove ou vinte. Embora ele tivesse um poder tremendo, mais do que eu poderia seguramente imaginar, ele foi submetido a provações horríveis e muita dor antes e durante esta guerra.
Mas então, talvez seja isso que faça uma Lança, pensei antes de imediatamente me cortar e retornar minha mente para a conversa em questão.
“Se não for esse, então talvez outro? Ouvi alguns dos sobreviventes do santuário chamando você de Matador de Deuses…”
Arthur bufou em descrença. “Não sou um exatamente…”
Um zumbido estático penetrante vibrou pelo ar, fazendo meus ouvidos soarem desconfortavelmente. “Mas o quê…?”
“Povo de Vildorial”, uma voz magicamente ampliada anunciou, ressoando de todas as superfícies ao mesmo tempo, dobrando-se para dentro e através de si mesma, como uma onda batendo e depois recuando da face de um penhasco.
“Lyra Dreide”, falei, procurando na caverna por sua assinatura de mana.
“Por favor, ouça com atenção o que tenho a dizer”, a voz implorou gravemente. “Vocês cometeram um erro muito infeliz ao lutar contra os soldados alacryanos em seu meio. Ao se alinhar com os rebeldes conhecidos como Lanças, vocês irritaram o Alto Soberano Agrona.”
Ela deixou essas palavras caírem uma sobre a outra, ecoando e girando dentro da grande caverna. “Mas o Lorde dos Vritra não é alguém sem misericórdia. Ele sabe que muitos de vocês se sentem como se não tivessem escolha. Ele não os culpa pela confusão, pela falta de coragem. Vocês terão uma segunda chance de ter uma vida em sua nova Dicathen, desde que simplesmente não revidem.”
Arthur zombou. “É mais provável que ele mate todos nesta cidade para garantir que o resto fique na linha, se o deixarmos.”
“Não vamos”, assegurei a ele. “Já derrotamos essa retentora uma vez. Ela não pode pensar nem imaginar lutar contra você.”
“Por favor, povo de Vildorial. Como sua regente, não desejo vê-los serem massacrados, mas vou garantir que todos os que estão contra o Alto Soberano Agrona sejam punidos adequadamente.”
Suas palavras grudaram grotescamente no interior do meu ouvido. “Criatura terrível”, murmurei, balançando a cabeça como se pudesse desalojar a voz.
“Generais!” uma voz rouca soprou. Me virei para ver um anão atarracado correndo furiosamente em nossa direção. “O… o…” Ele tossiu, engasgando-se com a própria língua enquanto lutava para formar as palavras sem fôlego suficiente em seus pulmões.
Arthur desapareceu e reapareceu ao lado do homem, vestido com um relâmpago roxo dançante. “O que foi?”
“O portal!” ele ofegou, parando com as mãos nos joelhos. “Um grupo de anões… o pegou e… o ativou.”
Encontrei os olhos de Arthur, minha mente girando. “Se eles estão chamando nossa atenção para os arredores…”
“Então, sua força mais forte provavelmente está vindo através do portal”, Arthur terminou para mim. Observei enquanto seu olhar inflexível varria a caverna, permanecendo no Palácio Real onde sua família estava. Então, algo se encaixou em sua expressão. “Vou segurar todas as forças que vierem pelo portal, se necessário vou destruí-lo. Você e os outros—”
“Claro”, respondi com firmeza, me erguendo a toda a minha altura. “Cansei de perder batalhas, Arthur.”
Sua mandíbula se apertou, e então ele se foi, deixando nada para trás, exceto a imagem púrpura-branca de um raio.
“Devemos reunir reforços para proteger a boca do túnel no caso de algum dos atacantes escapar da Lança Godspell?” o homem perguntou, tropeçando em suas palavras.
“Não”, retruquei, meus olhos ainda estavam no lugar onde Arthur havia desaparecido. “Precisamos dessas pessoas em outros lugares. Se esse inimigo puder passar pelo General Arthur, então estamos perdidos em qualquer caso.
O anão, abalado e levemente pálido, acenou compreensivamente. “Sim, general.” Então, saiu novamente, bufando de volta pela ampla espiral da estrada.
Fiquei olhando de entrada por entrada selada, sentindo quaisquer assinaturas de mana, tentando adivinhar de que direção elas viriam, quando minha visão fraquejou estranhamente e eu tive que estender a mão para me estabilizar. Gritos de terror completo e absoluto tremiam nos níveis mais baixos, milhares de vozes tão penetrantes que cortavam rocha e terra para encher a caverna.
Observei, horrorizada e paralisada, enquanto uma foice negra de energia cortava vários edifícios, desabando-os sobre os civis amontoados lá dentro. Os gritos só ficavam mais altos.
“Não”, bufei em descrença. Como os alacryanos entraram na cidade?
Dando um passo à frente, caí da beira da rodovia e em direção à comoção abaixo. A luz mudou novamente, como uma sombra cruzando sobre mim de cima e eu vacilei no meio do voo. Uma pressão apunhalou minhas têmporas, uma dor quente sangrando atrás dos meus olhos, fazendo o mundo escurecer…
No último instante, parei, mas ainda bati no chão com força suficiente para quebrar as pedras de pavimentação. Nas proximidades, a moldura de uma casa parcialmente desabada mudou e caiu sobre si mesma.
Aqui embaixo, os gritos eram ainda mais altos.
Cadê todo mundo? As forças anãs? Bairon? Quem está fazendo todo esse barulho?
Me virei, procurando freneticamente por quaisquer sinais de vida. Mas eram só as vozes. Gritando, gritando… e havia palavras nos uivos de dor.
Inspirei e fiquei sufocada com um suspiro preso na minha garganta.
“Você! A culpa é sua!” os gritos disseram. “Você poderia ter nos protegido! Nos salvado!”
“Por quê?” outras vozes imploravam através de seus lamentáveis gemidos moribundos. “Por que você não se certificou de que estaríamos seguros?”
“Você salvou os lordes e nos deixou para morrer! Você deveria ter feito mais!”
Meu pulso acelerou e uma sensação de pavor parecia roubar o ar dos meus pulmões.
Uma voz fria e amarga soou na minha cabeça, cortando todos os outros ruídos. Você pode esconder seu medo e dúvida do resto do mundo, mas não de si mesmo. Coloque sua máscara de gelo e proteja-se atrás de seu próprio poder inadequado, mas quando a geada derreter, o seu verdadeiro eu sempre estará logo abaixo da superfície.
Fechei os olhos com força, apertando até ver flocos de neve brilhando na luz brilhante do arco-íris. Respire fundo, respire longa e constantemente. Uma sombra se contorceu nas bordas da minha visão.
Você nunca pode escapar do que realmente é. Assustada, solitária e fraca. Mesmo a força que fez de você uma Lança não é sua. Você não poderia salvar Alea, ou Rei e Rainha Glayder, ou Aya. Você perdeu a guerra e logo todos que conhece estarão mortos. Deite-se e morra, covarde.
Meus olhos se abriram. Já ouvi essas palavras antes. Sussurrei-as para mim mesma na calada da noite em nossa caverna escura e sem esperança na Clareira das Feras depois de termos sido derrotados e enviados para se esconder. Quando vi o Rei e a Rainha Glayder sucumbirem continuamente à sua própria fraqueza e egoísmo, ouvi essas palavras em meu quarto de pelúcia em seu castelo. E eu as escutei quando a Foice, Cadell, zombou de mim, seus olhos vermelhos ardendo de desdém, pouco antes de me golpear como uma mosca.
Concentrei-me em proteger meu núcleo ao mesmo tempo em que reunia mana em minha mão. As sombras se moveram na borda da minha visão. Uma estaca de gelo voou.
O mundo se contorceu enojadamente e depois voltou ao lugar. As sombras desapareceram e a realidade da minha situação surgiu.
Estava de joelhos em uma cratera no centro do andar mais baixo da cidade. Vários edifícios ao meu redor haviam desmoronado e dezenas de pessoas estavam amontoadas em cantos e atrás de qualquer proteção escassa que pudessem encontrar. Olhos salientes e aterrorizados não me encaravam, mas havia uma mulher parada na beira da cratera olhando para baixo.
Ela levantou a mão para o pescoço e limpou um fino gotejamento de sangue onde meu feitiço a ferira, depois lambeu o sangue do polegar. “Dadas as histórias de Cadell sobre o quão patéticos vocês, Lanças, eram na guerra, estou surpresa que tenham conseguido superar até mesmo parte das minhas ilusões.”
Cabelos roxos escuros escorriam sobre seus ombros e emolduraram a pele cinza pálida de seu rosto. Seus olhos estavam incolores na luz sombria da caverna, duas brasas pretas fixadas em seu rosto inexpressivo. As vestes brancas e cinzentas, que se encaixavam em seu corpo fino, eram penduradas com cordão de prata e desses cordões pendiam protuberâncias cinza-amarelas que só podiam ser dezenas de vértebras.
Sua face inexpressiva não mudou quando ela seguiu meu olhar até os pedaços de osso. “Macabro, eu sei. Mas cada um representa uma vida, uma história. Alguns até carregam a fraca aura da mana do proprietário anterior. A sua vai para cá.” disse ela, tocando uma corda que corria de baixo de suas costelas e através de seu corpo até seu quadril oposto.
“Você está tentando me cansar brincando com meus piores medos, mas algo assim…” Fiz uma pausa, minha boca de repente seca. “Não é nada pior do que vejo quando fecho meus olhos, Foice.”
Ela assentiu enquanto eu chegava a toda a minha altura. “Estou aqui porque vocês, Lanças, se acovardaram e evitaram essa luta por muito tempo.”
“Você está muito cheia de si por nos chamar de covardes” falei, lutando para manter minha voz uniforme. “Onde você esteve durante esta guerra? Segura em casa, escondida atrás das saias do Clã Vritra.”
A Foice não pestanejou, apenas olhou para a nossa direita.
Houve um estrondo de pedra e a cabeça de um enorme martelo explodiu através da parede de um prédio meio caído. Fiquei tensa, pronta para atacar ao lado de Mica, mas então a vi.
A Lança anã atravessou o buraco que ela fez, olhos enormes e brilhantes, como duas luas refletidas na superfície de um lago. Seu rosto pálido estava manchado de sujeira e sangue, e ela estava balançando o martelo ao redor dela em movimentos curtos e agudos. Vários civis se afastaram, chorando de medo.
“Não, Olfred, para! M-Mica tá arrependida! Por favor…”
Ela apelava por algo, até que virou o martelo e o esmagou no chão. A pedra cedeu e ela caiu no abismo que havia feito com um grito de terror absoluto.
“Mica!” Lancei-me para o lado da cratera, preparei-me para me lançar no abismo atrás dela, mas a luz cintilou doentiamente e, quando voltou, ela se foi, junto com o buraco pelo qual havia caído.
Um grunhido áspero emitiu espontaneamente da parte de trás da minha garganta e arremessei minhas lâminas de gelo na direção da Foice. Eles passaram inofensivamente ao redor e através dela para quebrar contra a rocha dura. “Onde ela está? O que está fazendo comigo?” Eu exigi, conjurando um novo arsenal, mas não desperdiçando minha energia em atacar novamente.
Preciso descobrir qual era o poder dessa Foice e como me defender dela.
“A anã tem um labirinto incrivelmente complexo de demônios internos para navegar”, disse ela, balançando os dedos. Quando fez isso, consegui apenas ouvir o eco da voz de Mica, como se estivesse escorrendo pelo chão sólido, mas não conseguia entender as palavras. “Você, por outro lado, é bastante simples, na verdade. Que chato. Tão clichê.”
Senti a dor quente atrás dos meus olhos novamente. Focando em meu interior, encontrei o conforto frio do meu poder esperando por mim. O gelo começou a se formar ao longo da minha pele, correndo do meu esterno para cima dos meus ombros e para baixo das minhas pernas, finalmente envolvendo minha cabeça. O toque acalmou me acalmou e diminuiu o poder e a voz da Foice.
“Saia da minha cabeça, bruxa.”
Levantando minhas duas mãos, enviei as estacas e lâminas em direção a Foice. Uma sombra negra cortou o ar e os projéteis explodiram. A Foice deu um passo para trás, sua forma parecendo ondular ao fazê-la, dividindo-se em três imagens. Por um lado, as figuras pareciam ser várias pessoas ao mesmo tempo e então elas se solidificaram. No meio, Lorde Glayder olhou para mim desaprovadoramente. Ele parecia mais alto e mais forte, mas seu olhar de desaprovação fria era tão amargo e afiado quanto nunca. De um lado, Alea Triscan estava olhando para mim de olhos vazios e arruinados, seu corpo sem pernas pendurado no ar como um manequim horrível. No outro lado de Glayder… Aya. Minha amiga e companheira de longa data tinha um buraco aberto onde seu núcleo deveria estar.
“Você deveria ser a mais forte de nós”, disseram os três em uníssono, suas vozes sangrando juntas em uma cacofonia tênue e irreconhecível. “Mas você falhou com todos nós.” O braço restante de Alea se levantou.
Vinte metros a minha esquerda, havia uma rajada de vento. Quatro anões, amontoados atrás de um carrinho virado, foram levantados gritando no ar. Seus olhos selvagens se voltaram para mim por um único momento devastador, então eles explodiram em névoa vermelha enquanto cortes de vento negro os apagavam da existência.
Cerrei meus dentes em fúria impotente, então coloquei minha mão na direção dos sobreviventes e os envolvi em grossas barreiras de gelo.
“Você não pode protegê-los”, as vozes misturadas disseram novamente. “Quantos eram assim como nós? Quantos você falhou, quantos você enviou para a morte deles?”
Algo explodiu do chão entre meus pés e agarrou meu tornozelo. Olhei para baixo horrorizado enquanto mais e mais mãos se livravam da terra, estendendo a mão para mim. Tentei voar, mas o aperto segurou, mantendo-me presa. Então, as cabeças ficaram expostas e eu vi uma dúzia de anões, recentemente mortos, suas carnes pálidas e rasgadas, seus olhos sem vida e feridas sem sangue.
O horror ameaçou arrancar minha última refeição das minhas entranhas, mas eu não pude me afastar.
“Você nos mandou para os túneis sabendo que morreríamos”, um anão gemeu em torno de uma língua cinza e sem vida.
“Junte-se a nós”, outro grunhiu, mostrando os dentes e brandindo um machado coberto de lama. “Seja justa, Lança.”
O machado balançou, mas eu não tinha os meios para tentar bloqueá-lo. Quando atingiu o gelo ao meu redor, o cabo estalou e a cabeça caiu, deixando uma lasca rasa na minha armadura.
Ao contrário das imagens do Rei Glayder, Alea e Aya, o machado não era uma ilusão. Ela estava animando os cadáveres de nossos mortos e os usava contra nós…
“Desculpa”, murmurei, depois soltei um suspiro profundo.
A névoa gelada ondulou sobre e através dos cadáveres ambulantes, depois congelou em toda pele que a névoa encostava, envolvendo-os em conchas de gelo. Tirei meu tornozelo do cadáver assassino que ainda me segurava. A mão morta quebrou.
“Seus truques são obsoletos”, falei, fazendo o meu melhor para ignorar as ilusões enquanto procurava algum sinal da verdadeira Foice. “Os outros eram mais diretos. Eles sabiam como ficar de pé e lutar!” Forcei um sorriso sarcástico no meu rosto. “O resto de vocês ficou com medo desde que um dos seus foi massacrado?”
Levantei um braço bem a tempo de desviar uma linha de vento escuro, depois observei enquanto a linha preta passava pelo gelo que cobria meu corpo e depois pelo meu braço, que estalou com os azulejos de pedra quebrados e se despedaçou.
Sombras se uniram na minha frente, formando a foice pálida e de cabelos roxos. A parte de trás de sua mão com garras cedeu no gelo ao redor do meu peito e me fez ser arremessada para trás. Senti-me olhando para fora de uma das barreiras de gelo protegendo um grupo de anões amontoados, depois perdi toda a sensação de subir e descer enquanto meu corpo saltava ao longo do chão como uma bola.
Ao longe, pude ouvir o riso derretido de Aya, Alea e Rei Glayder desaparecendo.
Ela parecia flutuar quando se aproximou, seus olhos tinham uma coloração escura, vazia e infernal que ameaçavam me consumir. “Acabou. Minha irmã já deve ter matado o ‘Senhor do Trovão’ e a anã logo sucumbirá ao meu poder.” A menor sugestão de um sorriso apareceu nos cantos de seus lábios pela primeira vez. “E se você acha que seu anjo da guarda com os olhos dourados vai surgir para salvá-lo, temo que você esteja muito, muito errada.”
Me levantei a sujeira de minhas roupas, depois olhei diretamente em seus olhos mortos. “Não há razão para continuar cuspindo farpas inúteis uma à outra, não é?”
O chão sob a Foice explodiu para cima quando a cabeça de um dragão formado inteiramente de gelo azul profundo rasgou os azulejos de pedra. As enormes mandíbulas se fecharam ao redor da Foice, levantando-a no ar enquanto a construção se abria por baixo da terra. Dentro de sua barriga, atordoada e quase inconsciente, estava Mica.
Linhas negras de vento penetrante perfuraram o crânio do dragão, mas eu reforcei o gelo antes que ele pudesse quebrar.
O dragão chutou o chão e começou a voar para o ar, enquanto ao mesmo tempo o bolsão de ar contendo Mica deslizava para baixo através de seu corpo, eventualmente expulsando-a a quinze metros de altura.
Prendi a respiração, tentando manter a forma do dragão inteira enquanto também observava Mica despencar três metros, seis, nove. Quando ficou claro que ela não conseguia se conter, conjurei uma rampa inclinada logo abaixo de seu corpo. Ela deslizou descontroladamente até o fim da rampa e rolou para o chão até chegar aos meus pés.
Acima, o gelo se quebrou quando a cabeça do dragão explodiu para fora.
A Foice, envolta em uma capa preta de sua mana de vento girou. Linhas escuras cortaram o dragão em uma dúzia de lugares e liberei meu domínio sobre sua forma, deixando o gelo se dissipar inofensivamente em vez de cair sobre qualquer civil próximo.
Mica gemeu.
Acima, o manto de sombras estava se expandindo ao redor da Foice, enquanto ao mesmo tempo se enrolava para dentro como enormes garras negras, todas apontadas para mim.
Alcançando meu núcleo, me preparei para defender o ataque, se pudesse.
Mas antes de cair, uma linha vermelha cortou o ar, direto na Foice. Seu poder se uniu em um escudo, mas a linha vermelha atravessou. Ela se contorceu no último segundo, evitando o míssil escarlate, mas pude ver a ondulação correndo através de sua mana do buraco ardente que havia ficado.
A linha vermelha ardente se virou no ar e voou de volta pela Foice e pela minha cabeça. Me virei para ver.
Estendendo a mão, Bairon pegou a lança. Um brilho vermelho manchou seus cabelos loiros quando a lança brilhou com sua própria luz interna. Quando a luz desapareceu, no entanto, percebi que não era apenas isso que o manchava de vermelho.
Bairon estava coberto de sangue desde as pontas de seus cabelos bem aparados até os calcanhares de suas botas. Pelas feridas que pude ver, parecia ser dele.
Ele caminhou para frente, favorecendo seu lado esquerdo. Sua perna se arrastou e seu braço ficou mole, mas havia um fogo ardente em seus olhos que me dizia que ele estava longe de aceitar a derrota.
“Uma foice”, disse ele, seu barítono profundo se esforçou com a dor de suas muitas feridas.
Apenas balancei a cabeça, olhando de volta para a mulher de cabelos roxos. Ela estava lutando contra a crescente agitação em sua magia enquanto as sombras a rodeavam como um mar sendo influenciado pelo vento.
“Não, outra”, disse Bairon, inclinando-se para a lança para tirar o peso do lado esquerdo. “Lutei com uma mulher com chifres de cabelo branco. Então são… duas.”
Tossindo, Mica se ajoelhou. O sangue escorria como uma lágrima de sua órbita arruinada. Seu núcleo parecia esgotado; ela havia usado uma quantidade excessiva de sua própria mana lutando contra si mesma.
“Para de me olhar assim”, ela resmungou, limpando o sangue. “Tô viva. E muito puta.”
“E o Palácio Real?”
Mica acenou para mim. “As forças alacryanas… se moveram para bloquear rotas de fuga, mas estão se afastando da cidade. Os lordes só vão entrar em perigo se a gente… perder.”
Balançando ligeiramente, uma segunda mulher apareceu no céu, voando em direção à primeira. Dois chifres pretos grossos brotaram de seu cabelo branco brilhante e se curvaram para fora. Sua mão foi pressionada contra um corte em seu lado, profundo o suficiente para expor as costelas. Gotas de sangue brilhavam como rubis caindo sob ela.
“Você lutou contra ela sozinha?” Perguntei a Bairon, incapaz de suprimir a maravilha em meu tom.
Bairon bufou. “A lança. Um golpe de sorte. Cortei a mana dela, mas só por um tempo.”
Me lembrei bem o suficiente da sensação da lâmina escarlate interrompendo minha mana enquanto lutávamos uma batalha perdida contra o asura. “É assim que a gente vai segurar elas”, falei, estendendo a mão para Mica.
Uma aura áspera caiu como uma cortina de ferro em cima de nós quando Mica se levantou e ouvi as barreiras de gelo que eu ainda estava focada se quebrando. As pessoas abaixo delas gritaram.
“Truques e mais truques não vão te salvar!” a segunda Foice gritou, seus olhos vermelho-sangue saltando em sua cabeça. A Foice de cabelos roxos havia recuperado o controle de sua mana após o ataque de Bairon e ela era mais firme do que sua contraparte, o único sinal de qualquer emoção, uma ligeira queima de suas narinas.
Duas foices… essa era uma batalha que tínhamos perdido antes, em Etistin.
Bairon se aproximou de mim, a lança asuriana segurada em um aperto firme enquanto a lançava contra nosso inimigo. Mica se moveu para o meu outro lado, incapaz de manter a carranca apreensiva longe de seu rosto. Consegui entender, enquanto lutava para ignorar as garras frias da dúvida e da incerteza que se agarravam às minhas entranhas.
E então me lembrei de Arthur, da maneira como ele havia olhado para o Palácio Real, medindo a segurança de sua família antes de confiar em nós para proteger a cidade e então o que eu havia dito a ele. “Cansei de perder batalhas, Arthur.”