
Capítulo 999
Terramar: O Mar Encoberto
Em um quarto aconchegante, Lily, vestindo um par de meias brancas, sentava-se de pernas cruzadas na cama. O Novo Testamento da Ordem da Luz Divina estava em suas mãos. Os textos escritos nas páginas do livro soavam enigmáticos e quase indecifráveis, mas Lily conseguiu entendê-los, embora com alguma dificuldade.
Era a primeira vez que ela aprendia sobre a Ordem da Luz Divina por vontade própria. Além das informações obtidas com o Sr. Charles, uma imagem do Deus da Luz falecido começava a se formar lentamente em sua cabeça.
Lily recostou-se e caiu na cama. Assim, ela se esticou na cama e fixou o olhar no dispositivo de iluminação no teto.
Poucos segundos depois, ela levantou suavemente a mão direita, e fios de luz do sol filtraram-se pelas lacunas entre suas unhas, convergindo em pleno ar para formar um mini sol deslumbrante.
Lily agarrou o mini sol com uma mão, e as pontas de seus cabelos, assim como suas roupas, começaram a emitir um brilho suave e gentil, deixando-a com aparência sagrada.
Lentamente, Lily rolou na cama e se deitou de bruços. Ela virou um pouco a cabeça e encarou a luz na palma da mão.
"Por que você deixou essa energia poderosa dentro de mim? Para que me serve? O poder de um deus deve ser incrivelmente raro; por que você deixou isso em mim sem hesitar?" murmurou Lily para si mesma.
O mini sol dissipou-se, e Lily simplesmente enfiou a cabeça no travesseiro. Suas pernas balançavam de um lado para o outro enquanto ela fechava os olhos e gritava: "Aaaah! Isso não ajuda nada! Ainda não encontrei o propósito da minha vida!"
Alguns momentos depois, uma tênue luz emanou de Lily enquanto ela levitava, voando para fora da janela como uma estrela cadente. Ela passou raspando pelos telhados em direção ao cemitério.
Os cemitérios eram lugares assustadores que costumavam deixar qualquer um desconfortável, mas Lily era uma exceção.Lily se sentia em paz enquanto observava as lápides das pessoas que haviam morrido no Narwhale. Sentia como se elas não estivessem realmente mortas; era como se estivessem ao seu lado.
Sentada na lápide do velho médico do navio, com as pernas juntas, ela apreciava a brisa passando pelas suas bochechas. Isso não ajudava exatamente com sua situação, mas aliviava um pouco seu coração.
O cemitério vazio estava silencioso, e, olhando as lápides ao redor, Lily de repente se lembrou das palavras do velho bibliotecário. Ela fechou os olhos e eliminou todas as distrações. Logo, sua inquietação foi se acalmando.
Quando o mundo ao seu redor caiu em silêncio, Lily decidiu seguir o conselho do velho bibliotecário e ouvir seu coração, mas, mesmo esperando um bom tempo, não conseguiu sentir nada.
"Não, não está funcionando," falou Lily, com aparência desanimada. Quando abriu os olhos, no entanto, viu um jovem parado na sua frente. Ele parecia bem mais novo, mas Lily imediatamente o reconheceu como o Sr. Charles.
"Sr. Charles!" exclamou Lily, animada, e voou em direção a ele, mas, no meio do caminho, parou bruscamente. A expressão do jovem estava estranha; ele parecia extremamente frio e desprovido de qualquer emoção.
Claramente, aquele jovem não era seu Charles; ele era o Charles deste plano.
"É melhor você nem se aproximar daqui. Essas pessoas não são seus camaradas. As sepulturas dos seus camaradas ficam do outro lado. O que você está fazendo é como marcar o barco para encontrar a espada[1]," disse o jovem Charles.
Com isso, ele foi até a lápide do velho médico do navio, pegou uma garrafa de conhaque e despejou o conteúdo sobre a pedra tombada.
Lily se sentiu muito desconfortável ao ouvir as palavras do jovem Charles. Em vez de responder, virou-se para ir para casa, mas imediatamente parou antes de dar mais um passo.
"Hum, você pode me dizer como o Sr. Charles do outro lado está se saindo?"
"Ele está lidando com uma coisa complicada, mas e daí? Ele só precisa resolver, e se não der, a gente morre junto," respondeu o jovem Charles. Então, sua figura tornou-se ilusória antes de desaparecer definitivamente.
Lily fez bico. Virou-se e saiu sem dizer uma palavra. Depois de subir na cama, fechou os olhos e forçou-se a adormecer, mas quanto mais tentava dormir, mais longe seu sonho parecia estar.
Justo quando Lily entrou no estado de transição entre sono e vigília, ouviu passos ecoando logo do lado de fora da janela. Os passos eram de estudantes que voltavam de uma festa de celebração.
"O que você pretende fazer no futuro?"
"Já me candidatei a uma vaga na filiação da Fortaleza do Buraco Colossal, do Instituto de Pesquisas de Relíquias."
"Quer um emprego tão longe de casa? Você tem certeza de que sua família está disposta a abrir mão de você?"
"Não sou mais uma criança, cara. E não posso ficar ao lado da minha família para sempre."
Então, Lily lembrou-se das palavras de Sarthe. Pela primeira vez, ela ignorou todos os conflitos dentro de si mesma e encarou seu coração — ela finalmente decidiu enfrentar seu verdadeiro eu.
As memórias do tempo em que ela viajava com os outros, das coisas que Charles fez por ela antes de morrer, e de como ele se ajoelhou diante daquelas esculturas pedindo que as salvassem — tudo veio à sua cabeça.
Naquele momento, Lily finalmente soube o que queria fazer — ela havia descoberto seu propósito de vida. Desta vez, o que ela faria era uma decisão por vontade própria, e não algo que os outros tinham decidido por ela.
Lily queria apenas voltar. Ela queria voltar para perto de Sr. Charles e ajudá-lo com o poder do Deus da Luz que havia dentro dela. O poder dentro de si era de um deus; talvez ela estivesse destinada a nunca viver uma vida mortal, afinal.
Os olhos de Lily se abriram de repente. Ela discretamente abriu a gaveta e pegou uma caixinha delicada. Dentro dela havia um papel com uma linha de palavras escritas por Charles.
Depois de reler várias vezes, Lily virou-se e desceu as escadas. Aproximou-se da porta do quarto dos pais e bateu de leve.
O doutor Oliver, ainda sonolento, e sua esposa abriram a porta e, para surpresa deles, viram a filha olhá-los com olhos cheios de lágrimas.
"O que aconteceu, Lily?"
"Papai, mamãe, minha filha tem coisas importantes para fazer — coisas bem mais importantes do que ficar aqui. Desculpem-me," anunciou Lily, com a voz tremula. Ela sempre achou que devia ficar ao lado da família para sempre, afinal, finalmente tinha conseguido voltar para casa após tantos anos.
Porém, ela estava enganada. Sua vontade de ter uma infância normal tinha sido só a busca por um propósito de vida, esquecendo que todos um dia teriam que deixar seus pais para seguir seus sonhos.
Oliver e sua esposa olharam um para o outro. Depois, abriram os braços e a abraçaram.
"Filha, você nunca tinha dito isso antes, mas sabíamos que você não conseguia esquecer aquele lugar, então respeitamos sua escolha."
Lily se emocionou ao ouvir aquilo. Reforçou o abraço com as duas mãos e deixou as lágrimas correrem sem parar.
Naquela noite, os pais de Lily mal conseguiram dormir, tamanha era a correria para preparar a longa jornada da filha mais velha. Quando o primeiro raio de sol apareceu, chegou a hora de se despedir.
"Esta garrafinha tem sua sopa de peixe doce favorita. Também preparei bolachas de lagosta e bananas secas para você comer no caminho."
"Seu dinheiro tem algumas moedas soltas, e o restante está na conta do Banco Albion. Você pode consultar no extrato, mas só tire o dinheiro quando precisar."
"Na mala, tem quatro conjuntos de roupas. Dois de roupas grossas e dois de roupas finas. Coloquei algumas joias de ouro entre as roupas grossas. São seu fundo de emergência, venda se sua carteira for roubada."
Lilly começou a chorar ao escutar os pacientes lembretes da mãe.
Oliver acariciou a cabeça da filha, visivelmente relutante, e disse: "Para de chorar agora, tá bom? Se sentir saudade da gente, é só vir nos visitar. Seu quarto estará sempre à sua disposição."
Lily concordou firmemente. Então, beijou seus pais e abriu a porta com a mala ao lado.
"Tchau, mana! Volte logo!" a irmã de Lily acenou animadamente.
As lágrimas que Lily continha finalmente exploded em seus olhos. Ela correu de volta, deu um abraço apertado na família. Depois, virou-se e saiu às pressas com a mala nos braços.