
Volume 2 - Capítulo 141
Brasas do Mar Profundo
A verdade é que, neste mundo repleto de coisas estranhas e bizarras, a ‘terapia mental’ era algo muito mais intenso do que Duncan havia imaginado. Na realidade, a intensidade dessa prática já ultrapassava o conceito de ‘técnica’ e avançava diretamente para o território do “ofício”…
Mas, felizmente, aquela caixa cheia de instrumentos não era para Nina. A psiquiatra Heidi percebeu a expressão de puro terror no rosto do tio e da sobrinha e respondeu com um sorriso que claramente dizia ‘já vi essa reação antes’. Em seguida, puxou um formulário impresso do fundo da maleta e o entregou a Nina:
“Preencha isso primeiro.”
Nina soltou um suspiro aliviado:
“Eu achei que aquelas… ferramentas eram para mim.”
“Essas são para o meu trabalho”, Heidi riu. “Quando estou lidando com a Igreja e as autoridades, tenho que interrogar indivíduos extremamente teimosos e perigosos. Métodos comuns não funcionam em mentes reforçadas por ideologias heréticas.”
Quanto mais Duncan ouvia, mais algo parecia estranho naquela explicação. Shirley, que tentava diminuir sua presença ao máximo, mas ainda assim não conseguia conter sua curiosidade, instintivamente encolheu os ombros. Ela rapidamente se afastou um pouco mais e começou a limpar distraidamente as prateleiras, ao mesmo tempo que murmurava mentalmente através de sua conexão com Cão, que permanecia oculto:
“Isso é assustador, isso é muito assustador… Esse lugar já era intimidador o suficiente com o Sr. Duncan. Agora apareceu uma Inquisidora… e essa Heidi também…”
A voz de Cão ressoou em sua mente, ainda mais hesitante do que ela:
“Como diabos eu deveria saber?! Primeiro, a gente tenta levar uma vida discreta na cidade e acaba capturado por um Capitão Fantasma. Agora, estamos vivendo sob o teto dele e, de repente, uma Inquisidora aparece para uma visita. O que está errado aqui?! Somos nós que enlouquecemos ou o mundo inteiro ficou maluco?! Você acha que acreditariam se contássemos para alguém?!”
Shirley continuou observando discretamente o que acontecia perto do balcão, ao mesmo tempo que suspirava internamente:
“Quem acreditaria? Se você dissesse a um peixe que um dia morreria atropelado, ele também não acreditaria…”
“… Não fale de ‘peixe’, isso me dá medo…”
Shirley piscou, confusa:
“Desde quando você tem medo de peixes?”
“E para de falar comigo agora! Não deixe aquela Inquisidora suspeitar de nada. Tecnicamente, estou em estado de ocultação, mas quando estou perto do Sr. Duncan, sinto que meus poderes funcionam de forma completamente imprevisível…”
Imediatamente, Shirley se forçou a parar de pensar no assunto e se afastou ainda mais, ocupando-se com as prateleiras.
Enquanto isso, perto do balcão, ninguém parecia prestar atenção nela.
Nina olhava para o formulário à sua frente e percebeu que continha perguntas bastante comuns para uma avaliação psicológica. Parecia o mesmo tipo de questionário que ela já havia preenchido antes das aulas de esoterismo na escola ou durante visitas ao museu. A única diferença era que este formulário tinha mais perguntas — algumas das quais eram um pouco incomuns.
Enquanto preenchia o formulário, Nina perguntou com curiosidade:
“Eu ouvi você dizer antes que seus métodos de tratamento são mais especializados. Achei que não usaria um questionário tão comum, que qualquer médico pode aplicar…”
“Preencher formulários é a base da avaliação psicológica. Mas a diferença entre mim e esses amadores é que, para eles, o diagnóstico termina quando o paciente termina de preencher o questionário.” Heidi sorriu e tirou o pingente de ametista que usava no pescoço, brincando com ele enquanto falava. “Já no meu caso, o tratamento começa exatamente nesse momento.”
O olhar de Vanna foi automaticamente atraído pelo pingente de cristal roxo. Curiosa, ela comentou:
“Notei que você tem usado esse colar novo nos últimos dias… Parece que gosta bastante dele.”
Heidi piscou, surpresa. Ela olhou para o pingente por um instante, como se se lembrasse de algo, mas logo balançou a cabeça e riu:
“Foi apenas um presente raro do meu pai, só isso. Ah, Vanna, você sabia? Meu pai comprou esse pingente aqui nesta loja.”
Ela enfatizou propositalmente a palavra comprou, como se quisesse deixar bem claro que não se tratava de um brinde. Duncan, ao lado, apenas sorriu levemente e assentiu:
“Sim, é um dos produtos da loja. Espero que esse pingente lhe traga sorte.”
Vanna não conseguiu evitar de olhar novamente para o suposto ‘cristal’, que, a seus olhos, era claramente uma imitação barata. Por um breve instante, ela quase soltou o que pensava: Até mesmo um estudioso renomado como Morris caiu nesse golpe?!
Mas, por sorte, ela ainda tinha algum senso de decoro e engoliu as palavras antes que escapassem.
Enquanto isso, Nina rapidamente finalizou o preenchimento do questionário. Ela deslizou o formulário até Heidi e perguntou:
“Terminei. Pode verificar se está tudo certo?”
“Já revisei tudo enquanto você preenchia – inclusive os pequenos detalhes das suas expressões e gestos.” Heidi pegou o papel sem nem olhar novamente para ele e foi direto ao ponto: “Você tem uma sombra psicológica reprimida há anos. Nos últimos tempos, alguma pressão adicional fez com que isso voltasse à sua mente? Seus sonhos estranhos começaram a diminuir nos últimos dois dias… Isso aconteceu porque o fator de estresse desapareceu, ou porque foi substituído por outro?”
Os olhos de Nina se arregalaram, como se Heidi tivesse acertado um ponto sensível. Instintivamente, ela lançou um olhar na direção de Duncan, hesitando por um momento.
“Precisamos de um ambiente calmo e reservado para continuar com o processo de liberação e alívio mental.” Heidi então se virou para Duncan. “Mas, antes de prosseguir, preciso da permissão do seu responsável legal e, claro, da cooperação da própria Srta. Nina.”
“Vamos para o andar de cima.” Duncan assentiu e então olhou para Nina. “Tudo bem para você?”
“Sim.” Nina respondeu prontamente, sem demonstrar qualquer resistência. No entanto, no fundo de seus olhos, ainda havia um leve traço de nervosismo – um detalhe sutil que não passou despercebido por Heidi.
“Não se preocupe, Nina. É apenas uma técnica simples de relaxamento mental – você não tem nenhum problema real, apenas está lidando com um pouco de estresse e ansiedade.” O tom de Heidi era calmo, e seu sorriso transmitia uma tranquilidade que parecia dissipar, pouco a pouco, qualquer tensão que restasse no coração da jovem. Enquanto falava, ela fechou sua maleta e a colocou de lado. “Acredito que nem precisaremos de ferramentas, incensos ou medicamentos. Apenas algumas perguntas serão suficientes.”
Só então Nina relaxou completamente. Ela lançou um breve olhar para Duncan, depois assentiu e começou a subir a escada junto com Heidi, rumo ao segundo andar.
O som de seus passos foi desaparecendo conforme subiam.
Enquanto isso, Shirley continuava ocupada reorganizando objetos em um canto distante da loja, completamente focada na ‘limpeza’.
Agora, ao lado do balcão, restavam apenas Duncan e a jovem Inquisidora.
Este era o primeiro encontro cara a cara entre Duncan e Vanna desde que, por um golpe do destino, a Inquisidora foi marcada pela chama espiritual. E, naquele instante, Duncan conseguia sentir essa marca com clareza, como se fosse uma extensão de sua própria consciência. Ele notou que aquela chama, antes extremamente fraca, agora estava lentamente se fortalecendo conforme eles se mantinham próximos.
Mesmo sem um contato direto, a centelha dentro de Vanna estava absorvendo energia de sua fonte original. Ela se alimentava sutilmente de sua presença e se espalhava em seu espírito, como uma brasa prestes a inflamar.
Ao perceber isso, Duncan imediatamente suprimiu o crescimento da marca. Ele não queria que a misteriosa Deusa da Tempestade percebesse essa mudança repentina – isso poderia custar a ele a oportunidade de manter Vanna como um ‘nó’ especial dentro de sua rede.
Ele tinha curiosidade sobre Vanna. Para ser mais exato, o que realmente lhe interessava era o fato de ela ser uma sacerdotisa – e, mais ainda, a fé que ela representava.
Mas, ao mesmo tempo, Vanna também estava curiosa. Ela examinava o ambiente ao seu redor com atenção, analisando cada detalhe da loja de antiguidades… E, é claro, observava o homem sentado à sua frente.
Hoje, Vanna viera à loja para acompanhar Heidi em uma visita de agradecimento, mas havia outro motivo por trás de sua presença. Havia elementos demais naquele incêndio do museu que eram simplesmente inexplicáveis.
Um fogo que, teoricamente, jamais poderia ter sido extinto em tão pouco tempo desapareceu subitamente. Heidi afirmava ter visto uma projeção que lembrava um Fragmento do Sol no meio das chamas. E então havia Duncan – um homem comum, que se atirou para dentro do incêndio e emergiu ileso, trazendo consigo as sobreviventes.
Não havia provas concretas que ligassem esses acontecimentos entre si. No entanto, sua intuição lhe dizia que valia a pena vir a esta loja de antiguidades e dar uma olhada.
“Sr. Duncan”, Vanna finalmente quebrou o silêncio. Seu olhar era calmo e fixo enquanto encarava o homem à sua frente. “Gostaria de esclarecer algumas dúvidas sobre o incêndio no museu. Você poderia me ajudar?”
“Claro.” Duncan assentiu sem hesitar. “Eu estava no local na hora, talvez possa fornecer algumas informações úteis.”
“Obrigada pela colaboração.” Vanna acenou levemente com a cabeça. “Você entrou no prédio em chamas para resgatar as pessoas, certo? Naquele momento, o fogo ainda estava ativo?”
“Sim.” Duncan respondeu sem qualquer hesitação. Ele não sabia exatamente quais informações a Inquisidora já possuía, então, para as partes que poderiam ter deixado rastros ou provas físicas, decidiu ser honesto. “As chamas eram intensas. Especialmente no corredor que levava ao salão principal – estava quase todo tomado pelo fogo.”
“Mas, no final, vocês saíram de lá sem um único arranhão.” Vanna continuou. “Pode me contar o que aconteceu depois que entrou no museu?”
Duncan fez uma pausa, fingindo refletir por alguns segundos antes de responder com uma leve incerteza na voz:
“Até eu achei um milagre termos saído vivos… Mas o fogo simplesmente… desapareceu. Você consegue imaginar? Não foi apagado pelos bombeiros, nem se extinguiu naturalmente por falta de material inflamável. Ele simplesmente sumiu, como se nunca tivesse existido. Até a fumaça desapareceu…”
Enquanto falava, ele fez um gesto com as mãos, como se ainda achasse o evento inacreditável. “Só pode ter sido uma bênção da Deusa, não acha?”
Assim que ele terminou a frase, um estrondo veio do outro lado da loja – Shirley havia derrubado uma escultura de madeira que estava encostada na parede.
“Cuidado!” Duncan virou-se imediatamente e a repreendeu como um verdadeiro dono de loja preocupado com seus produtos. “Essa peça já quebrou uma vez e eu tive que colá-la com adesivo. Se cair de novo, vai despedaçar de vez!”
Vanna olhou para ele com uma expressão um tanto peculiar e respondeu devagar:
“… A Deusa protege a todos os habitantes das cidades-estado.” Seu olhar se fixou no de Duncan. “Está claro para mim que você é… um homem muito honesto.”
Duncan manteve uma expressão séria e sincera.
“Mas é claro. No nosso ramo, a honestidade vem em primeiro lugar – ninguém gosta de ser enganado quando faz negócios.”