Brasas do Mar Profundo

Volume 2 - Capítulo 125

Brasas do Mar Profundo

O foco de Nina parecia estar em um detalhe bastante peculiar, mas para Shirley, isso era uma coisa boa.

No fundo de sua alma, ela já havia aceitado que essa garota, que parecia tão comum e inocente, era, na verdade, uma escolhida do Subespaço—e não apenas uma escolhida qualquer, mas alguém que recebia um nível de cuidado equivalente ao de uma filha querida. Quanto menos má impressão ela deixasse nessa ‘escolhida’, maiores seriam suas chances de sobrevivência diante do grande senhor.

Nina, no entanto, não fazia ideia das preocupações escondidas por trás do sorriso rígido e constrangido de Shirley. Ela estava animada e curiosa. Nunca antes estivera tão próxima de um verdadeiro ser transcendente(exceto quando ia à igreja, o que não contava). Seu conhecimento sobre esse mundo vinha apenas dos livros. Agora, diante dela, estava alguém que havia se infiltrado na escola com ‘artes místicas’ para investigar um mistério. Aos olhos de Nina, Shirley estava cercada por uma aura de mistério e poder.

Por um momento, ela até esqueceu que Shirley tinha mentido para ela. Seu foco agora era descobrir tudo sobre a vida extraordinária dos transcendentes—mesmo que a maior parte dessas aventuras estivesse sendo construída em sua própria imaginação.

“Você mora onde normalmente? Tem uma base secreta ou algo assim? Ou faz parte de alguma organização misteriosa?”

“Você se esconde em cavernas? Ou em esgotos? Tem um galpão cheio de artefatos esotéricos para rituais?”

“Você nasceu com habilidades especiais? Ou tem algum artefato sobrenatural incrível? Você é daquele tipo que chamam de ‘arcanista’? Li que existem arcanistas antigos que não precisam da ajuda de nenhum deus para lançar feitiços! Dizem que o poder deles vem do sangue…”

“O que você come no dia a dia? Precisa beber infusões de ervas ou o sangue de algum animal estranho? O quê? Você come comida normal? Sério?”

As perguntas de Nina vinham uma atrás da outra, como um turbilhão incessante. No meio daquilo, Shirley começou a suar frio.

Não era porque não sabia como responder.

Era porque Duncan estava ali.

Desde o início da conversa, ele não disse uma única palavra. Apenas observava Shirley em silêncio, com um sorriso tranquilo—o típico sorriso que um tio ou um pai mostraria ao receber as amigas da filha para uma visita em casa.

Simples. Acolhedor. Totalmente inofensivo.

Mas sempre que ele sorria, Shirley sentia um calafrio percorrer sua espinha.

“Você parece estar com muito medo do meu tio.” Até mesmo Nina, por mais lenta que fosse em notar certas coisas, não pôde deixar de perceber o comportamento estranho de Shirley. Lembrando-se também de como ela havia reagido no museu, Nina não conseguiu evitar a pergunta:

“O que exatamente aconteceu entre vocês dois?”

“Na-Não foi nada! De verdade!” Shirley quase saltou para se sentar ereta, gesticulando desesperadamente com as mãos. “O q… O que poderia ter acontecido entre seu tio e eu? Eu ainda sou uma criança!”

Duncan ouviu aquilo e imediatamente sentiu que algo estava errado. Ele sabia que não podia deixar as duas continuarem improvisando essa conversa por conta própria. Antes que Shirley começasse a falar ainda mais besteira, ele limpou a garganta e interrompeu:

“Na verdade, não foi nada demais. Ela simplesmente pegou um transporte sem pagar e eu acabei pegando ela no flagra.”

“Foi só por isso?” Nina olhou para Shirley, surpresa. “Não precisava ficar tão traumatizada com isso… Mas meu tio está certo, fugir sem pagar não é certo.”

Shirley estava quase chorando. “Eu juro que nunca mais farei isso, tá bom?!”

Nina assentiu, mas então algo pareceu lhe ocorrer. Seus olhos ficaram sérios e ela olhou para Shirley com atenção.

“Então… pode me contar? O que você está investigando exatamente? Você quis ser minha amiga por causa da sua ‘investigação’?”

Shirley ficou tensa, seu corpo enrijecendo. Seus olhos começaram a vagar pelo ambiente, buscando uma distração—mas, no meio disso, encontrou o olhar tranquilo e firme de Duncan.

“Estou investigando o incêndio de onze anos atrás.” De repente, Shirley abaixou um pouco a cabeça, como se algo dentro dela tivesse finalmente se encaixado… ou como se tivesse simplesmente desistido de esconder a verdade. Sua voz soou baixa e contida. “O incêndio que foi registrado oficialmente como um vazamento na fábrica do Sexto Distrito…”

“O incêndio de onze anos atrás?” Nina arregalou os olhos, surpresa. “Espera… você também sabe sobre aquele incêndio?!”

“… Você também sabe?!” Shirley pareceu igualmente chocada. Ela se levantou abruptamente da cadeira. “Você estava lá?!”

“É claro que sei! Meus pais morreram naquele incêndio—eu tinha seis anos na época. Foi o tio Duncan quem me salvou.” Nina falou rapidamente, fazendo gestos inconscientes com as mãos. “Mas todo mundo sempre disse que eu estava delirando por causa da fumaça tóxica. Todos insistem que nunca houve incêndio nenhum. Até os jornais mais tarde relataram apenas um acidente na fábrica…”

“Naquele ano… eu também tinha seis anos. Meus pais também morreram naquele incêndio. Eu lembro claramente.” Shirley fitou Nina diretamente nos olhos. “Mas as pessoas ao meu redor sempre disseram que não houve incêndio algum… Então era isso… Não é à toa que Cão disse que sentiu um cheiro familiar em você…”

Assim que Shirley terminou de falar, a voz de Duncan soou ao lado dela:

“Então foi Cão quem te guiou até Nina, e foi por isso que você se infiltrou na escola—mas você mesma não sabia por quê. E só agora, ouvindo a história de Nina, ficou tão surpresa quanto ela.”

Sob o olhar calmo de Duncan, Shirley assentiu rapidamente. Nina, por outro lado, franziu a testa, intrigada.

“Cão? Quem é Cão?”

“Cão é…” Shirley começou a responder, mas hesitou no momento seguinte. Ela olhou para Duncan, depois para Nina. “Cão é meu amigo. Ele está aqui comigo, mas… sua aparência pode ser um pouco assustadora…”

Embora dissesse isso, ela sentiu uma estranha ironia na situação.

Afinal, bem ali, ao lado delas, estava uma Sombra do Subespaço mil vezes mais aterrorizante que Cão.

E esse ser vivia com Nina todos os dias.

E agora, ela tinha que continuar participando da ‘brincadeira particular’ desse grande senhor e fingir que Cão era a coisa mais assustadora presente no local—enquanto continuava tratando Duncan como um mero humano comum.

Se fosse comparar, todos os encontros que tivera com cultistas, oficiais da lei e até mesmo sacerdotes de igrejas locais não chegavam nem perto do nível de tensão e perigo que sentia ao passar dez minutos dentro desta loja de antiguidades.

Aos seus olhos, este estabelecimento simples e inofensivo parecia estar no mesmo nível de uma entrada para o Subespaço.

Enquanto isso, Nina olhava ao redor, tentando encontrar alguma pista da presença de Cão. Depois de procurar por um tempo sem sucesso, inclinou a cabeça e perguntou, curiosa:

“Então, deixe Cão aparecer para me conhecer! Se ele é seu amigo… por que eu teria medo?”

Shirley hesitou, ainda insegura, mas então Duncan deu duas leves batidas na mesa e disse calmamente para Nina:

“Então é melhor você se preparar. Eu já vi Cão, e ele é realmente muito feio.”

“… Agora fiquei ainda mais curiosa.” Em vez de se assustar, Nina ficou ainda mais animada. “Quero muito conhecer o senhor Cão e descobrir por que ele tem um nome tão estranho…”

“Bom, já que você quer ver…” Duncan suspirou levemente e então olhou para Shirley, um tanto resignado. “Deixe Cão aparecer para dar um oi. Afinal, ele também é um dos ‘convidados’ de hoje.”

Normalmente, Shirley jamais revelaria seu segredo ou a existência de Cão para outras pessoas. Afinal, nas cidades-estado governadas pela ordem, viajar ao lado de um demônio das Profundezas Abissais era um crime gravíssimo.

Se qualquer sacerdote da Igreja do Mar Profundo sequer suspeitasse da presença de algo vindo das Profundezas, ele não hesitaria em apontar contra ela canhões de oito libras e metralhadoras de seis canos.

No entanto, agora, uma Sombra do Subespaço estava exigindo que ela convocasse Cão.

“… Oh.”

Shirley assentiu e lentamente ergueu o braço.

No instante seguinte, sob o olhar surpreso e levemente tenso de Nina, chamas negras e fumaça densa subiram repentinamente ao redor de Shirley!

Correntes emergiram das labaredas, e na escuridão fumegante, uma silhueta tomou forma—a figura de um Demônio das Profundezas Abissais.

A Cão de Caça Abissal apareceu em meio às chamas, mas, no instante seguinte, rapidamente se encolheu, trazendo as patas dianteiras para cobrir sua cabeça e ocultar suas aterrorizantes órbitas oculares. Envolto em uma nuvem de fumaça negra, ele falou em um tom abafado e formal:

“Boa tarde, senhorita. Eu sou Cão, amigo e guardião de Shirley. Minha aparência pode não estar em conformidade com os padrões estéticos da humanidade, mas, se você me observar com uma perspectiva mais abstrata e tolerante, verá apenas uma pilha de ossos organizados de maneira engenhosa, envolta em chamas de uma tonalidade ligeiramente peculiar…”

Duncan lançou um olhar tranquilo para Shirley.

“Para ser sincero, nunca vi um cachorro tão ‘adaptável’ na minha vida… No quesito personalidade, ele até que é adorável.”

Nina, por sua vez, ficou de boca aberta. Por um longo momento, apenas olhou para Cão, completamente atônita.

Então, finalmente, soltou um grito de surpresa:

“Ah!”

Shirley imediatamente tentou amenizar a situação:

“Eu avisei que você poderia se assus—”

Mas, antes que pudesse terminar, Nina completou sua exclamação com entusiasmo:

“Isso é incrível também!”

Shirley: “…?”

Aproveitando-se da surpresa de Shirley, Nina já havia se inclinado ligeiramente para frente, olhando para Cão com uma expressão cheia de curiosidade.

“Oi… Olá?” Ela tentou cumprimentá-lo, ainda um pouco hesitante. “Senhor Cão? Uh… você é um ‘senhor’?”

“Os Demônios das Profundezas Abissais não possuem gênero definido, mas, se preferir, pode me chamar assim.” Cão respondeu em sua voz abafada, parecendo igualmente surpreso. “Você… não tem medo de mim?”

“Ah, mais ou menos. Você realmente parece um pouco assustador.” Nina pensou por um momento e, em seguida, abriu um grande sorriso radiante.

“Mas eu sou bem corajosa~”