Brasas do Mar Profundo

Volume 2 - Capítulo 115

Brasas do Mar Profundo

A Chama Espiritual esverdeada se espalhou pelo galpão, deslizando como uma sombra flutuante.

Em questão de segundos, essa energia, que emanava de um poder sobrenatural superior, passou pelo espaço como um vento invisível, erguendo a cortina que cobria a ‘realidade’.

E então, aquilo que estava escondido por trás da cortina foi revelado aos olhos de Shirley e Duncan.

Cinzas.

Cinzas por toda parte.

Cinzas humanas, formas contorcidas, resíduos disformes, paredes enegrecidas pelo fogo, telhados derretidos, máquinas deformadas pelo calor—pilhas de metal fundido acumuladas em um cenário que mais parecia um inferno de chamas recém-apagado.

A fábrica não era uma ruína comum.

Era uma paisagem de destruição, como se a temperatura abrasadora ainda estivesse impregnada no ar, apesar do fogo ter sido apagado há muito tempo.

Shirley permaneceu imóvel no centro do que restava desse inferno, olhando ao redor com um olhar perdido.

O Cão de Caça Abissal, sem dizer uma palavra, se aproximou e pressionou levemente seu corpo ossudo contra ela, como se quisesse lhe dar suporte.

Então, a Chama Espiritual começou a desaparecer.

Em um piscar de olhos, toda a cena voltou ao seu estado original.

Duncan olhou para suas mãos com uma leve insatisfação.

Esse corpo ainda era ‘humano demais’.

Não poderia se comparar à sua verdadeira forma, e o poder da Chama Espiritual que conseguia evocar era limitado.

Manter uma manifestação tão grande por muito tempo era impossível.

Mas mesmo um breve instante dessa ‘recriação’ foi suficiente para revelar um detalhe crucial.

“Então houve um incêndio… Eu sabia que não estava errada”, Shirley murmurou para si mesma, sua voz carregada de incredulidade. “Passei onze anos procurando por ele… e estava aqui o tempo todo.”

“Mas esse incêndio foi apagado”, o Cão falou em um tom mais baixo. “Alguma força criou uma cortina sobre a realidade, filtrando todos os vestígios do ‘fogo’… Mesmo um Demônio Abissal não poderia enxergá-los.”

“Foi o Fragmento do Sol?” Shirley franziu o cenho. “Ou foi quem trouxe o Fragmento do Sol para a cidade-estado?”

Mas então, ela percebeu algo estranho.

Duncan, que até então sempre comentava ou fazia perguntas, permaneceu em um silêncio incomum.

Ela instintivamente olhou para ele.

“O que o senhor acha—”

“Não é o mesmo incêndio que eu me lembro.” Antes que ela pudesse terminar, Duncan a interrompeu com um leve movimento de cabeça.

Seus olhos varreram o espaço ao redor, analisando cada detalhe do que havia sido revelado quando a cortina foi erguida.

Ele comparava aquilo com suas próprias memórias.

As imagens de quando ele fugiu do incêndio com Nina ainda estavam claras em sua mente.

A estrutura do prédio, o ambiente ao redor, as ruas próximas—não combinavam com esse local.

Afinal, esse não era o lugar certo.

“Não é aqui.”

Shirley congelou.

“O quê?” Seus olhos se arregalaram ligeiramente. “O incêndio que o senhor se lembra… não aconteceu aqui?”

“Os detalhes são muito diferentes.”

Duncan falou em um tom grave, enquanto caminhava lentamente para fora do galpão.

Seus olhos passaram pelo portão derrubado, observando as ruas decadentes ao longe.

“Ou melhor dizendo, todo o Sexto Distrito… parece errado.”

Shirley instintivamente trocou olhares com o Cão, então perguntou em um tom mais baixo:

“O que você acha que está acontecendo?”

“E eu lá sei? Eu sou só um cachorro.” O Cão sacudiu a cabeça. “Além disso, há onze anos, eu era ainda mais confuso que você.”

Duncan ouviu a conversa dos dois atrás dele e inclinou levemente a cabeça.

“Essa fábrica é o único local suspeito?”

“Acho que… sim?” Shirley não parecia completamente segura de sua resposta. “Pelo que descobri, essa fábrica era o centro do caos de onze anos atrás.”

Duncan não expressou sua opinião, mas nas próximas duas horas, ele, Shirley e o Cão de Caça Abissal vasculharam cada canto acessível da fábrica abandonada.

O estranho era que, fora aquela ‘cortina’ cobrindo a realidade, não havia sinais de qualquer outra força sobrenatural ou objeto anômalo.

“Isso não faz sentido…” Após finalizarem a última inspeção, o Cão finalmente expressou suas dúvidas. “Essa cortina que cobre os vestígios do incêndio definitivamente é obra de um poder sobrenatural. Mas nós examinamos o lugar inteiro e não encontramos sua ‘origem’… Isso não é lógico.”

“Precisa haver uma origem?” Shirley perguntou, curiosa.

Duncan também se questionava o mesmo, mas não demonstrou sua curiosidade, apenas manteve a expressão séria, esperando que o Cão explicasse.

Afinal, quem imaginaria que, entre os três presentes, o maior especialista em forças sobrenaturais era um cachorro?

O Cão, no entanto, não refletiu muito sobre isso.

Sendo um Demônio Abissal, muito do que dizia sobre o sobrenatural era apenas conhecimento básico para ele.

Então, começou a explicar sem hesitação:

“O poder que encobre as marcas do incêndio claramente é uma força contínua. Para que continue existindo por tanto tempo, precisa de uma ‘origem’. Além disso, quando o fogo do Senhor Duncan desapareceu, a cortina voltou a se fechar. Isso prova que existe algo mantendo essa cortina ativa… Pode ser um artefato anômalo extremamente poderoso. Ou um ser transcendente de imenso poder. De qualquer forma, seja o que for… ainda está em algum lugar desta cidade-estado.” 

Enquanto falava, o Cão de Caça Abissal levantou a cabeça, suas órbitas vazias varrendo as ruas distantes—e então, o horizonte da cidade além delas. 

“Não encontramos a origem da cortina dentro da fábrica. Isso significa que ou a fonte desse fenômeno está projetando sua influência de um local distante… ou…” O Cão de Caça Abissal fez uma pausa, então baixou ligeiramente a voz, um pouco tenso, “Ou essa cortina é muito maior do que imaginamos. Talvez… o que vimos seja apenas um pequeno pedaço dela. E se for esse o caso…”

O Cão hesitou por um momento, antes de finalmente acrescentar:

“Então temos um problema maior. Porque uma ‘anomalia comum’ jamais teria um alcance tão grande! Isso provavelmente significa que estamos lidando com um Fenômeno—um Fenômeno desconhecido. O Fragmento do Sol não pode ser considerado uma ‘anomalia comum’.”

Shirley falou de repente.

“De acordo com aqueles cultistas, ele é o próprio cadáver do Deus do Sol. Talvez essa seja a maneira do Fragmento esconder sua existência.”

“… Uma anomalia superior com consciência própria?” O Cão murmurou, parecendo refletir sobre essa possibilidade. “Para evitar ser capturado, criou uma cortina para apagar todos os rastros de sua existência, escondendo-se atrás dela? Se for realmente um fragmento do corpo de um deus, é possível que ele já possua alguma forma rudimentar de consciência mesmo antes de despertar.”

Shirley apertou o queixo, parecendo profundamente pensativa.

Mas então, um pensamento repentino cruzou sua mente.

Ela olhou para o Cão com uma expressão surpresa.

“Espera aí… desde quando você é tão culto? Você nem sabe ler!”

“Eu sou um Demônio Abissal!” 

O Cão se agitou impaciente, as correntes chacoalhando.

“Eu fui gerado a partir da carne do Senhor Sagrado das Profundezas! Esse conhecimento foi impresso na minha memória desde o momento em que nasci! E falando em não saber ler… Você tem moral pra me julgar?”

Duncan assistiu à troca entre Shirley e o Cão com interesse.

Esse estranho par de companheiros estava claramente cheio de segredos, e isso o intrigava profundamente.

Mas antes que pudesse fazer mais perguntas, Shirley pareceu lembrar-se de algo.

Ela levantou os olhos para o céu, vendo o sol se aproximando do ponto mais alto, e de repente, soltou um grito:

“Ah! Já é meio-dia?!”

Duncan ergueu uma sobrancelha.

“Vocês têm outro compromisso?”

“Eu…” Shirley parecia apreensiva. “Eu preciso voltar para casa antes do meio-dia!”

Duncan a observou em silêncio por um momento.

“Você não disse que seus pais não estão mais vivos? Alguém ainda te dá bronca por chegar tarde?”

“Não é bronca!” Shirley acenou as mãos rapidamente, tentando explicar. “Eu… marquei um compromisso com alguém!”

Ela parecia inquieta, mas talvez por terem acabado de passar tanto tempo explorando a fábrica juntos, ela estava um pouco mais confortável na presença de Duncan.

“Podemos continuar isso outra hora?”

Duncan olhou para o Cão, que imediatamente recuou ligeiramente, abaixando a cabeça.

“O senhor decide… Se quiser continuar explorando, eu e Shirley…”

“Não precisa.” Duncan balançou a cabeça. “Continuar aqui não nos trará mais respostas. Vamos esperar até encontrarmos novas pistas.”

Shirley pareceu surpresa—quase como se não esperasse que ele os deixasse ir tão facilmente.

Mas ela não teve coragem de sair correndo imediatamente, então confirmou com cautela:

“Então… eu e o Cão podemos ir agora? E se o senhor quiser nos encontrar depois…?”

Duncan sorriu.

“Se estivermos destinados, nos encontraremos de novo.”

Seu sorriso era calmo e amigável, mas Shirley sentiu um calafrio percorrer sua espinha.

Naquele exato momento, em sua visão, a corrente negra que conectava o Cão de Caça Abissal brilhou com um sutil fogo esverdeado—ardendo silenciosamente.

Este era um novo experimento de Duncan.

Desde que havia criado uma conexão involuntária com Vanna, ele começou a entender melhor as Chamas Espirituais.

Este era um pequeno teste.

Diferente da chama que deixara em Vanna, esta marca era muito mais forte… mas completamente inofensiva.

Shirley não sabia por quê, mas sentiu um arrepio inexplicável.

O sorriso de Duncan era tão caloroso… e ainda assim, algo nela queria tremer.

Mas, no fim, ela conseguiu conter sua expressão, fez uma despedida o mais educada possível…

E então, fugiu o mais rápido que pôde, arrastando o Cão com ela.